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Mar em avanço: Ceará tem 20 municípios com pontos sob erosão crítica
Reportagem

Mar em avanço: Ceará tem 20 municípios com pontos sob erosão crítica

Ações humanas, aliadas a fatores climáticos, têm intensificado o avanço do mar no litoral cearense, trazendo prejuízos sociais, ambientais e econômicos
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 (Foto: fotos FERNANDA BARROS)
Foto: fotos FERNANDA BARROS

No litoral cearense, a distância entre a urbanização e o mar tem ficado mais curta. Casas de veraneio fechadas, barracas abandonadas e edificações cercadas por pedras pintam a identidade visual de praias no Estado. Em algumas o cenário é quase de abandono, retrato forjado pela água que avança cada dia mais atrevida e feroz sobre a areia— comprometendo dinâmicas sociais e atividades econômicas. 

Leia também: Maior em oito anos: 1.351 autos de infração ambiental registrados no CE em 2024

De acordo com o Plano de Ações de Contingência para Processos de Erosão Costeira do Ceará (PCEC), lançado em março recente, a unidade federativa registra erosão em aproximadamente 48% da sua linha de costa e tem 20 municípios costeiros (defrontes para o mar) com pontos sob erosão crítica. 

Levantamento, inédito no Ceará, é um produto da Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), no âmbito do Programa Cientista Chefe Meio Ambiente (CCMA/Sema/Funcap), e analisou alterações que ocorreram no litoral cearense entre 2016-2024, monitorando um total de 533 trechos.

Processo identificou 48 pontos de erosão (quando há perdas de sedimentos entre -0,5 e -1 m/ano), e 214 trechos de erosão crítica (quando há perdas acima de -1 m/ano), divididos em cidades da costa. Estudo considera tanto passagens que ficam localizadas em áreas de urbanização como aquelas que não estão perto de edificações, apontando que o litoral Oeste concentra o maior número de partes em erosão crítica. 

Municípios com pontos de erosão crítica: 

  • Icapuí: 8 
  • Aracati: 9 
  • Fortim: 4 
  • Beberibe: 12 
  • Cascavel: 4
  • Aquiraz:6
  • Fortaleza: 3
  • Caucaia: 24
  • São Gonçalo do Amarante: 10
  • Paracuru: 13
  • Paraipaba: 4
  • Trairi: 9
  • Itapipoca: 13
  • Amontada: 13
  • Itarema: 9
  • Acaraú: 38
  • Cruz: 6
  • Jijoca de Jericoacoara: 10
  • Camocim: 15
  • Barroquinha: 4

Documento também analisa áreas onde o processo erosivo é intenso e exige intervenção imediata, classificando as mesmas como "núcleo de erosão". Entre elas estão: Praia de Arpoeiras (Acaraú), Praia do Espraiado (Acaraú), Praia da Tabuba (Caucaia), Praia do Icaraí (Caucaia) e Praia do Iguape (Aquiraz).

Praias dentro de núcleos de erosão:

  • Praia de Arpoeiras (Acaraú)
  • Praia do Espraiado (Acaraú)
  • Praia da Baleia (Itapipoca)
  • Praia da Taiba (São Gonçalo do Amarante)
  • Praia da Tabuba (Caucaia)
  • Praia do Icaraí (Caucaia)
  • Praia do Iguape (Aquiraz)
  • Prainha do Canto Verde (Beberibe)
  • Praia Canoé/ Canto da Barra (Fortim)
  • Praia de Peroba (Icapuí)
  • Praia de Picos (Icapuí)

Já as praias de Tatajuba (Camocim), Jericoacora (Jericoacoara), Lagoinha (Paraipaba), Balbino/Caponga Roseira (Cascavel) e Pontal do Maceió (Fortim), são inseridas dentro de "núcleos de atenção", que  correspondem a áreas com processos erosivos em fases iniciais, mas que podem causar danos futuros.

Conforme Davis de Paula, do Programa Cientista Chefe Meio Ambiente e que coordenou o estudo, o processo erosivo é um fenômeno natural que acontece quando o mar avança sobre a terra, sendo causado principalmente pela ação das ondas, das correntes marinhas e da elevação marítima. 

Essa movimentação degrada praias, dunas e falésias. "Com o tempo, (a erosão) pode reduzir a faixa de areia e causar danos a casas, estradas, portos naturais, postes de iluminação e outras infraestruturas", explica o profissional, que é ainda geógrafo da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

Nesse cenário, contudo, o mar não é o "vilão", pois esse processo tem se intensificado nos últimos anos devido aos efeitos das mudanças climáticas e de ações humanas que interrompem a reposição natural de areia, levando praias a perder mais do que a ganhar sedimentos. Davis cita como exemplo as construções muito próximas da linha da praia, a retirada da vegetação nativa e a degradação de sistemas naturais.

"Os espigões construídos entre a Praia da Leste-Oeste e a foz do rio Ceará influenciaram nos processos erosivos em Caucaia, mas não foram os únicos responsáveis por sua intensificação. As obras de engenharia costeira introduzem uma nova dinâmica no sistema litorâneo (...) Esses impactos, quando não antecipados por estudos integrados, tendem a se manifestar em forma de erosão em trechos vizinhos", pontua.

Impacto

Sema pede estudo sobre praias mais afetadas

É perto das 15 horas de uma quarta-feira quando o silêncio toma uma extensa parte do litoral de Aquiraz, a 29,07 km de Fortaleza. Espaço é preenchido somente pelo barulho do mar, que em dia de maré cheia avança mais faminto pela areia e chega a lamber muros de edificações, "engolindo" o que vê pela frente. 

O POVO esteve semana passada no município e visitou a orla da cidade, que segundo Plano de Ações de Contingência é uma das mais afetadas pela erosão. Nesse período uma audiência pública chegou a ser realizada pela Câmara de Vereadores para debater os impactos erosivos no litoral do município.

Além disso, a Sema solicitou um estudo ao Instituto de Ciência do Mar (Labomar/UFC) sobre as praias de Iguape, Icapuí e Jericoacoara. Intuito é analisar condições físicas, geológicas, oceanográficas e sociais das áreas, para elaborar ações a serem adotadas nesses setores, que apresentam degradação mais intensa. 

Conforme Luis Ernesto Arruda, Cientista Chefe do Meio Ambiente, essas regiões são alvos do estudo devido ao fato de acumularem mais pontos erosivos próximos à urbanização. Ele explica que quando a erosão ocorre em áreas onde não há construções o ambiente consegue se recuperar naturalmente. No caso contrário, "além da perda da praia, perde-se as estruturas urbanas, como ruas, estradas e casas".

Em Aquiraz, por exemplo, o cenário de degradação fica perceptível quando se anda nas proximidades ou pela longa faixa de areia que compreende as praias do Presidio, do Iguape e do Barro Preto.

Na região, casas de veraneio fechadas e edificações cercadas por engenhocas como sacos e pedras dão o tom de que natureza e ser humano "estão brigando por espaço". Uma luta nem sempre justa e aparentemente longe de um fim. Por lá, não é difícil achar quem tenha uma história sobre essa disputa. 

É o caso de José Carvalho, de 28 anos. Morador do Iguape, ele conta que a água já chegou a invadir uma barraca de praia da área, levando parte da piscina e da mureta de pedra. Há cerca de um ano o jovem vive sob risco de que algo semelhante aconteça no local onde trabalha como garçom: um hotel no Barro Preto, também em Aquiraz. 

Entre a edificação e o mar há somente uma faixa de areia de pouco mais de dez metros. Quando a maré está alta, ele conta que a água chega a ficar muito perto da porta do imóvel, restringindo a movimentação.

"(Impacta) Tanto na questão dos clientes quanto na população. (...) Nessa nossa parte aqui quando está mais cheio (de água) não vem tanta gente, (ninguém) frequenta tanto porque não tem nem como," diz, lembrando que, quando começou a trabalhar no local há um ano, a faixa de areia era muito maior.

Intensidade em que a erosão acontece afeta também a atividade de bugueiros que atuam na área, como João Carlos, 32. "A gente quer ir para os trechos (do outro lado), mas a gente só tem acesso lá se a maré estiver grande, mas seca. Se a maré estiver cheia, a gente não consegue", conta, dizendo perder clientes.

Perto dali, na Praia do Presídio, algumas edificações já adotam estratégias de proteção contra o avanço da água. Em um condomínio de veraneio, situado muito perto do mar, sacolas de areias e pedras rodeiam o espaço como uma espécie de contenção à fúria marítima. Cenário que nem sempre foi assim. 

Antônio Clamentino, 48, trabalha como zelador na estrutura e conta que a engenhoca foi colocada depois que a água invadiu o espaço, chegando a alcançar a grama. Ele relata que há vinte anos a faixa de areia entre a edificação e o mar chegava a ser de 100 metros, mas que foi encurtada de forma muito acelerada durante o passar do tempo. "O mar deu uma avançada e não voltou mais. Não recuou mais", diz.

Em meio as edificações que resistem, há aquelas que encerraram ciclos e fecharam suas portas— seja pelo avanço do mar ou por outros motivos. Na região é possível observar vários imóveis com arquitetura desgastada, transparecendo abandono, ou ainda outros com placas de "aluga-se". Entre eles uma barraca a beira mar, deteriorada e isolada quase de forma desértica. Cena é digna de filme, assusta. 

Risco ambiental

Erosão traz consequência sobre a pesca 

Além de causar impactos sociais e econômicos, a erosão também afeta dinâmicas ambientais. De acordo com o geógrafo Davis de Paula, o processo erosivo resulta na diminuição da qualidade da água do mar, na salinização de aquíferos costeiros, na ⁠perda de resiliência ambiental e de habitats e também na redução da diversidade e deslocamento de espécies— que acabam migrando para outras áreas. 

Processo ameaça ainda culturas seculares, como a da pesca artesanal. De acordo com o integrante do Programa Cientista Chefe Meio Ambiente, muitos pescadores acabam tendo a atividade prejudicada pois não conseguem mais ancorar embarcações, devido ao fato do mar tomar grande parte da areia.

Em Icapuí, Francisco Alciano, 53, vive problemática na pele. Desde menino pescando na Praia da Peroba, ele conta que já há algum tempo precisa ancorar o barco em outra regiões, por causa do avanço da água. 

"As vezes a maré tá alta e (...) as pessoas que fazem o embarco da gente até os barcos não têm como eles chegarem com a jangada para levar a gente até o barco da gente", explica. Ele também relata que têm ficado mais difícil de pescar muitas espécies de animais como peixes e lagostas, citando que na área, além da erosão intensificada, há também uma pesca desenfreada e poluição do meio ambiente. 

A peleja de Francisco é a mesma de pescadores que vivem há mais de 800 km dali, na Praia do Barro Preto, em Aquiraz. Francisco Vieira, 59, por exemplo, desde criança pesca por lazer na área, como muito dos meninos que crescem a beira da água e cedo aprendem a manejar jangadas, redes e tarrafas.

Em mais de quatro décadas de relação com o mar, ele viu o litoral se aproximar intensamente da urbanização. Hoje, o pescador diz que em dia de maré cheia a água chega a crescer cerca de 20 metros sobre a areia e alega que a quantidade de peixes pescados já não é a mesma de antes. "(O avanço do mar) Tem afetado muito, deu uma caída (no número de peixes). (O mar) avançou muito", relata. 

Resolução

Comitê deve ser criado para solucionar problema 

Métodos de contenção a erosão têm sido tema de discussões e fomentado imbróglios em municípios cearenses, mas resolução não parece tão simples. De acordo com o coordenador do Plano de Ações de Contingência, Davis de Paula, a primeira coisa a se fazer em caso de erosão sob núcleos urbanos é saber se há possibilidade de recuar essa ocupação e realocar as pessoas que vivem ali para outros espaços.

"A última saída é você construir uma obra costeira, como espigão, porque o espigão vai potencializar o processo de erosão na praia vizinha. (...) Espigões são soluções adotadas emergencialmente mas que trazem um novo ciclo problemático", destaca, explicando que estruturas do tipo ajudam a conter a areia na praia, mas em contraponto evita que sedimentos sigam para a praia seguinte, impactando a mesma. 

Nesse sentido, o profissional pontua que cada trecho do litoral apresenta uma característica diferente e por esse motivo todos os pontos precisam de soluções específicas contra o processo erosivo.

Visando subsidiar ações para combater a erosão, o Governo do Ceará pretende criar o Comitê Estadual de Planejamento e Respostas à Erosão Costeira (CEPREC), sob coordenação da Sema, órgão vai envolver, entre outros, prefeituras, sociedade civil, universidades e Organizações Não Governamental (ONGs).

Em nota encaminhada ao O POVO, a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima destacou que já começou o trabalho contra a erosão da costa, citando a realização de um levantamento da linha de costa entre os municípios de Icapuí e São Gonçalo do Amarante, como resposta ao Plano de Contingência.

A segunda fase de ações é a montagem do comitê, que deve promover debates visando a educação e a conscientização ambiental. "A partir daí, vai ser possível revisar e atualizar periodicamente esse grande diagnóstico realizado na escala do estado do Ceará. Agora, nós precisamos realizar o mesmo diagnóstico numa escala menor, numa escala de detalhe, pensando no município como área fronteira", destaca Sema. 

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