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Os desafios da dignidade menstrual no Ceará
Reportagem

Os desafios da dignidade menstrual no Ceará

| 28 de maio | Dia Internacional da Dignidade Menstrual promove debate sobre saúde e combate à pobreza menstrual. Brasil e Ceará têm leis para fornecimento de produtos de higiene
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Estima-se que pessoas que menstruam tenham um gasto médio extra de pelo menos R$4,5 mil na compra de absorventes durante a vida (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Estima-se que pessoas que menstruam tenham um gasto médio extra de pelo menos R$4,5 mil na compra de absorventes durante a vida

O Dia Internacional da Dignidade Menstrual, comemorado nesta quarta-feira, 28 de maio, chama atenção para os desafios enfrentados por cerca de 2 bilhões de pessoas que menstruam em todo o mundo, conforme dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Organização Mundial da Saúde (OMS).

A data, celebrada em mais de 50 países, foi criada na Alemanha em 2014 com o objetivo de promover o debate sobre saúde menstrual e combater a pobreza menstrual — condição que afeta principalmente pessoas em situação de vulnerabilidade.

“Todas as pessoas que menstruam têm direito à dignidade menstrual, o que significa ter acesso a produtos e condições de higiene adequados”, comunica o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

De acordo com o relatório Pobreza Menstrual no Brasil, divulgado pela Unicef e pelo Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), com dados de 2021, estima-se que cerca de 60 milhões de pessoas menstruam no Brasil.

Para atender essa demanda, a legislação brasileira prevê a distribuição gratuita de absorventes para mulheres cisgênero, homens trans, pessoas transmasculinas, pessoas não binárias e intersexo que menstruem e estejam em situação de vulnerabilidade social, em conformidade com os critérios do Programa Dignidade Menstrual.

Implementado pelo Decreto nº 11.432, publicado em 8 de março de 2023, no Dia Internacional da Mulher, o Programa conta com o investimento anual de R$ 418 milhões. Segundo o Governo Federal, sob gestão do presidente Lula (PT), a medida foi instituída para “promover a conscientização sobre a naturalidade do ciclo menstrual e a oferta gratuita de absorventes higiênicos”.

A iniciativa, de acordo com o Ministério da Saúde, busca assegurar a distribuição gratuita e continuada de absorventes higiênicos para cerca de 24 milhões de pessoas beneficiadas, com idades entre 10 e 49 anos, e que estejam desprovidas do acesso aos itens durante o ciclo menstrual.

No Ceará, a entrega de 28 milhões de absorventes, por meio do Programa Dignidade Menstrual, atendeu 245 mil pessoas e teve um investimento total de R$14 milhões. Os dados são do balanço do Ministério da Saúde, de 2024, que abrange o período de 17 de janeiro, data de lançamento do programa e da primeira entrega, até 31 de dezembro.

Para retirar os absorventes por meio do programa é preciso apresentar, nas farmácias credenciadas, a autorização - emitida no celular por meio do aplicativo Meu SUS Digital - que é válida por apenas 180 dias. Além disso, é necessário levar um documento de identidade com foto e o CPF. Para menores de 16 anos, a retirada deve ser feita por um de seus responsáveis.

Thais Moraes, integrante do Projeto Deixa Fluir, comenta que "algumas pessoas não sabem o que é a lei nem sabem porque foi criada". Ela considera que as exigências para retirar o absorvente das farmácias, que precisa de internet, pode ser um empecilho para as pessoas de baixa renda.

“Essa lei ainda tem muitos gargalos. É uma burocracia, porque está lidando com pessoas sem condições de comprar um pacote absorvente, que custa cerca de R$ 8 no supermercado. Então, como elas vão ter acesso a um telefone com internet e com informação? Celular é caro e tem que ter internet”, explica Thais.

Por meio do Projeto Deixa Fluir - criado em 2021 e que distribui absorventes e realiza palestras sobre educação sexual e reprodutiva - Thais visita escolas e comunidades periféricas de Fortaleza para debater sobre dignidade menstrual. 

Thais explica que o Deixa Fluir continuou sendo necessário, mesmo depois do Programa Dignidade Menstrual ser instituído pelo Governo Federal, porque a medida não repassa informações sobre pobreza menstrual.

"Na farmácia, ninguém vai explicar sobre a menstruação, que é normal, que ciclo a partir de tantos dias não é normal, que precisa fazer prevenção. A farmácia não vai fazer isso. O Deixa Fluir trabalha a conscientização, promove debates e no fim entrega absorventes".

Os itens menstruais só podem ser retirados em farmácias credenciadas no Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB).

No Ceará, há 570 drogarias credenciadas, em 170 dos 184 municípios. Ou seja, há 14 cidades cearenses ainda sem acesso ao Programa Dignidade Menstrual por falta de credenciamento no PFPB. 

A Capital concentra 157 das 570 drogarias credenciadas de todo o Estado, de acordo com a lista de farmácias do PFPB, de 28 de fevereiro de 2025, publicada pelo Ministério da Saúde.

Confira as cidades cearenses sem farmácias credenciadas no Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB):

Atenção à Higiene Íntima nas escolas do Ceará

Ainda no panorama cearense, as estudantes da rede pública estadual podem ser beneficiadas com a Política de Atenção à Higiene Íntima. A Secretaria de Educação do Estado do Ceará (Seduc) estima que, neste ano, 196.851 alunas cearenses devem ser contempladas pela iniciativa - instituída pela Lei nº 17.574, de 27 de julho de 2021.

A Política de Atenção à Higiene Íntima visa promover a saúde e o pleno acesso à educação de estudantes, mediante o desenvolvimento de ações de conscientização sobre a adequada higiene menstrual e a distribuição de absorventes higiênicos, conforme a Seduc. 

A ação atende estudantes da rede pública estadual, em que cada uma recebe três kits, na própria escola, contendo dois pacotes de absorventes íntimos, para atender ao trimestre. Em 2024, foram distribuídos 1.418.664 kits. Segundo a pasta, a previsão para 2025 é que 2.550.528 kits sejam distribuídos.

Em nota, a Seduc informou que a política pública tem como objetivo “assegurar o direito constitucional à Educação e amenizar o impacto social e pedagógico decorrente da ausência de condições básicas para a adequada higiene menstrual, que, dentre outras consequências, acarreta a infrequência e o abandono escolar”.

Acerca da iniciativa, a estudante Larah Lima, de 15 anos, reclama: “não tem distribuição de absorvente na minha escola”. Larah é aluna do ensino médio na rede pública de Itapipoca e também relata o desconforto de ir à escola durante o período menstrual. Um dos motivos citados por ela é a falta de papel higiênico nos banheiros.

“A menstruação afeta minha rotina porque requer tempo e me deixa limitada de fazer algumas coisas. Isso me incomoda e é desconfortável, já que não é fácil se limpar porque não tem papel higiênico. Algumas vezes tem, mas nem sempre. No caso, tem que levar para a escola". 

Já Ana Flávia Pereira, de 17 anos, que também é estudante da rede pública, mas estuda em Fortaleza, diz que recebe quatro ou cinco pacotes de absorventes na escola a cada três meses, e que alguns são disponibilizados nos banheiros.

"Tem essa distribuição, mas não é sempre. As mulheres menstruam todo mês e não a cada dois ou três meses. E muitas que necessitam porque não têm em casa. Às vezes acaba e demoram a fazer o abastecimento", explica Ana Flávia.  A estudante menciona problemas de infraestrutura como descargas quebradas e até sujeira que nos banheiros: "às vezes falta papel higiênico e os banheiros estão sujos e não tem como utilizar".

Conheça algumas políticas públicas que buscam fomentar à dignidade menstrual no Ceará:

Pobreza menstrual, população em situação de rua e pessoas encarceradas 

A falta de acesso a recursos, conhecimento e infraestrutura necessários para garantir a plena capacidade de cuidados com a saúde íntima às pessoas que menstruam caracteriza o fenômeno chamado de pobreza menstrual.

Médica Sexóloga da Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (Meac), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Débora Britto explica que a pobreza menstrual é evidenciada quando “devido à situação econômica, à falta de acesso a saneamento básico, à falta de acesso à educação e conhecimento, se leva à falta de acesso a produtos de higiene menstrual, como absorventes". 

Ela menciona ainda que é preciso oferecer condições adequadas às pessoas que menstruam para que possam lidar com esse período. Sem isso, segundo a médica, as consequências "vão desde vergonha e constrangimento até a ausência escolar, trabalho e problemas de saúde”. A pobreza menstrual atinge especialmente as pessoas que menstruam e estão em situação de vulnerabilidade.

A mudança na rotina durante o período menstrual acompanha Antônia Rocha desde oito anos, quando começou a viver em situação de rua. Hoje, aos 42 anos, é uma das 110 pessoas que ocupam a Praça do Ferreira, no Centro de Fortaleza, como moradia, conforme levantamento da Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS).

Para conseguir um banho, Antônia é preciso pagar. “A gente paga um canto para tomar banho, ali na Praça da Polícia. R$2. Sempre consegue [o dinheiro]. Às vezes, nós vendemos alguma coisa, faz um favor para um, faz um favor para outro, aí pega R$10, guarda e quando quer, vai tomar banho”, explica.

Procurada pelo O POVO, a Secretaria da Proteção Social (SPS) informou, em nota, que conta com um espaço voltado à higiene pessoal de pessoas em situação de rua. A Estação do Cuidado, localizada no bairro Moura Brasil, “oferece espaço para banho e lavagem de roupas, além de uma série de atividades e atendimentos que visam à redução de danos”.

A Praça do Ferreira também é morada para Antonilda Fonseca, de 43 anos. Vivendo há 16 anos em situação de rua, ela explica que o acesso aos absorventes depende de doações. 

“É chato demais, quando a pessoa quer ir ao banheiro, precisa fazer sua necessidade, aí não tem. É chato demais. Eu me sinto mal, porque não tem um canto para a pessoa urinar e a gente tem que fazer aqui na frente dos outros. Às vezes eu pego uma roupa minha e coloco, para não ficar aquela sujeira. É chato demais a pessoa ficar suja na rua”, relata Antonilda, enquanto embarga a voz. Ela também relata sofrer com cólicas durante o período.

Em 2024 e 2025, conforme a SPS, foram distribuídos 2.478 e 987 absorventes, respectivamente, durante atendimentos voltados à população em situação de rua e pessoas com problemas relacionados ao uso e abuso de drogas. A distribuição ocorreu por meio de ações realizadas no Centro de Referência sobre Drogas, na Estação do Cuidado e no projeto Acolher.

Ainda de acordo com a SPS, o atendimento à população em situação de rua e com problemas relacionados ao uso abusivo de drogas é realizado pela pasta a partir de ações de redução de danos e encaminhamentos à rede de saúde e socioassistencial, quando necessário.

As consequências da pobreza menstrual também são sentidas por pessoas que menstruam e vivem em situação carcerária. De acordo com a 6ª edição da Lista Mundial de Prisão Feminina, publicada em fevereiro deste ano, mais de 733 mil meninas e mulheres vivem em situação carcerária em todo o mundo.

No Brasil, esse número chega a 50.441, colocando o País na 3ª posição do ranking mundial de populações carcerárias femininas, atrás apenas dos Estados Unidos da América (174.607) e da China (145.000).

No Ceará, a população de mulheres privadas de liberdade é de 1.015, de acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP). Ao O POVO, a pasta informou, em nota, que todas recebem dois pacotes de absorventes a cada mês nas três unidades femininas do Estado.

A pasta também afirmou, sem divulgar números, que “mantém um bom estoque de reserva desse item para garantir a entrega de mais pacotes para mulheres que apresentem necessidade de recebimento excedente”.

Com o objetivo de promover a ressocialização e garantir a autossuficiência na oferta de desse item para as mulheres em regime fechado do sistema prisional cearense, a pasta informou que a obra para operar a primeira fábrica de absorventes dentro de uma unidade prisional do Estado do Ceará com mão de obra de mulheres privadas de liberdade está em fase final e deve ficar pronta até julho.

Após a inauguração, a ação deve ser ofertada de forma permanente.

Os desafios fisiológicos, sociais, econômicos e ambientais para garantir dignidade menstrual

Discussões sobre experiências relacionadas à saúde sexual e reprodutiva são atravessadas por combinações de fatores culturais e sociais, fazendo com que o tema seja visto ainda como um tabu, destaca Débora Britto.


“Para mim, menstruação é algo pavoroso, porque eu tenho endometriose, daí meu fluxo é muito intenso, e por isso eu gasto em torno de 5 a 6 absorventes noturnos por dia. É agoniante ficar o tempo todo com medo de se sujar. E o absorvente noturno está caro”, diz a servidora Juciane Pereira, de 21 anos, que reside em Fortaleza.

Em relação às condições clínicas relacionadas ao período menstrual, Débora Britto ressalta que, ao tempo que grande parte da população atravessa o período menstrual sem maiores desconfortos, uma outra parcela pode experienciar dores de leves a incapacitantes, sintomas chamados de dismenorreia.

“Alterações de humor, emocionais e físicas nos período que antecede a menstruação; sangramentos disfuncionais com fluxo muito aumentado que dificulta e às vezes impede a realização das atividades do cotidiano. Tais sintomas precisam ser avaliados para que se chegue ao diagnóstico e se organize uma planejamento terapêutico”.

As consequências fisiológicas de um manejo inadequado ou insuficiente da menstruação vão desde alergias, irritações na pele e nas mucosas até infecções e, em casos mais graves, condições como a Síndrome do Choque Tóxico Um grupo de sintomas graves e rapidamente progressivos que inclui febre, erupção cutânea, pressão arterial perigosamente baixa e insuficiência de vários órgãos. É causada por toxinas produzidas por estreptococos do grupo Agram-positivos ou Staphylococcus aureus. .

No campo da saúde emocional, a ausência de dignidade menstrual pode gerar desconforto, insegurança e estresse, agravando ainda mais a exclusão e a discriminação enfrentadas por meninas, mulheres e outras pessoas que menstruam.

A médica alerta que os desafios podem ser ainda maiores quando se fala de menstruação em pessoas transmasculinas. “Por questões que vão desde possíveis sentimentos disfóricos em relação à menstruação por parte dessa população, até os riscos maiores de sofrerem violência nos espaços de banheiros coletivos que, muitas vezes, não tem a menor estrutura para garantir o mínimo conforto ao manejo do autocuidado nesta fase”, avalia.

A falta de acesso a saneamento básico e outros fatores ambientais, como a garantia de local adequado para o descarte de absorventes e outros itens de higiene, destacam-se como desafios a serem superados para garantir a dignidade menstrual no Brasil.

Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o direito à higiene menstrual como uma questão de saúde pública e de direitos humanos. Apesar disso, estima-se que pessoas que menstruam tenham um gasto médio extra de pelo menos R$4,5 mil na compra de absorventes.

O valor considera custo médio de R$ 0,50 por absorvente de marca popular no Ceará, e cerca de 450 ciclos menstruais durante toda a idade fértil, com pelo menos 20 absorventes por ciclo menstrual, que dura aproximadamente 37 anos (desde a menarca até a menopausa). Os custos não incluem outros gastos adicionais, como medicamentos para tratar sintomas menstruais e outros insumos de higiene pessoal.

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A médica destaca ainda o cenário desafiador para desconstruir as desigualdades de gênero que desafiam a estruturação de estratégias para o acesso à equidade no acesso ao cuidado em saúde.

“Para muitas pessoas a menstruação ainda é compreendida como algo sujo ou impuro, existe estigma em levantar as questões pessoais relacionadas à pobreza ou falta de acessos, existe ainda muita invisibilidade relacionada à experiência dos corpos que menstruam e discutir esses temas em espaços de tomada de decisão que majoritariamente são ocupados por homens cisgênereo pode ser ainda muito desafiador”, ressalta.

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