Expectativa de uma solução amistosa para o embaraço surgido na vila de Jericoacoara, a 282 km de Fortaleza, no litoral oeste cearense, desde que uma mulher apresentou a escritura de uma propriedade sua que supostamente estaria sobreposta àquela terra toda? Oito meses depois de o caso ter virado manchete e polêmica, a possibilidade de os ânimos se apaziguarem em um dos principais ativos turísticos do Estado é improvável. Ninguém está cedendo e a tendência não parece ser a de um acerto.
Pelo contrário, os indicativos são de que a disputa pela área fique ainda mais tensionada e se encaminhe para uma batalha judicial acirrada adeduzir das declarações dadas ao O POVO, tanto pelos representantes da empresária Iracema Correia São Tiago, hoje com 79 anos quanto por quem se pronuncia em nome dos moradores e empresários locais. Armando-se de argumentos técnicos, documentais e jurídicos, as partes admitem que a judicialização é uma briga a ser comprada, caso sejam contrariadas no desfecho da história.
"Pela documentação que se tem, por todas as perícias que a gente fez, pelos estudos da documentação, não consigo enxergar [solução amistosa]. O que iria acontecer, se esse acordo fosse desfeito, seria uma judicialização. Nessa judicialização iria se questionar tudo, porque não há acordo, não há questão de prescrição. E numa judicialização iria se questionar realmente a área toda", diz Yasser Holanda, um dos nomes da banca de advogados que representa a empresária Iracema.
Pelo lado oposto, o diretor adjunto do Conselho de Empresários de Jeri, Fábio Nobre, também confirma que acionar a Justiça é uma possibilidade. "A gente está muito tranquilo com os fatos e os desenrolares, tendo a certeza que isso vai terminar com o não reconhecimento da propriedade. Obviamente, na improvável situação que você descreve, da PGE (Procuradoria Geral do Estado) reconhecer o assunto, a gente teria que recorrer à Justiça. É o único caminho para anular esse acordo."
A entidade passou a atuar e a se manifestar publicamente na causa ao lado do Conselho Comunitário da localidade, que representa os moradores. A estimativa hoje, da administração municipal e das duas entidades, é de cerca de 3 mil imóveis existentes dentro da vila.
A conclusão das investigações que estão sendo tocadas simultaneamente pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) e pelo Ministério Público Estadual (MPCE) poderá definir a nova fase do conflito. Representantes dos órgãos e das partes fizeram incursões nos cartórios da região, em dezembro último, para tentar rastrear a história documental mais antiga possível da fazenda, antes de ela pertencer à família da empresária. A previsão era de que o trabalho terminasse em novembro, mas o prazo foi se estendendo e hoje segue indefinido.
Teriam retroagido a uma matrícula do ano 1941. Foram obrigados a interromper o manuseio pelo desgaste dos papéis quase centenários no Cartório de Acaraú. O levantamento segue em andamento, agora em arquivos ainda mais antigos, porém digitalizados, mantidos no acervo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Iracema havia fechado um acordo com o Estado, em maio de 2024, para que recebesse 19 lotes não ocupados da vila - equivalentes a 3,47 hectares. O recorte não atingiria nenhum imóvel já ocupado nem terrenos de interesse público. A reivindicação inicial dela, feita ainda em julho de 2023, havia sido de quase 18 hectares.
Foi um acerto feito sem alarde, puxado pela PGE e órgãos fundiários locais, que reconheceram como válidos os documentos apresentados. Prestes a haver o repasse dos terrenos à empresária, o combinado foi descoberto pela comunidade, em outubro do ano passado, e o caso se agigantou como controvérsia.
Apenas dez dias depois, ainda no fim de outubro, a PGE suspendeu o acordo após a ampla repercussão do que poderá acontecer com o redesenho privado da vila famosa. A decisão foi para um novo levantamento, mais minucioso da cadeia dominial da fazenda Junco I, a propriedade de Iracema. Buscar os registros cartoriais mais antigos possíveis, que provem que não houve irregularidade documental sobre aquelas terras.
O imóvel chegou a ter as medidas de sua área atualizadas em cartório, passando a estar duas vezes maiores que a do registro inicial. É um dos principais pontos contestados pela comunidade. A família de Iracema nega ter cometido grilagem na região.
Com aproximadamente 73,5 hectares, a Junco I abrange parte da vila e do Parque Nacional de Jericoacoara (Parna Jeri) - onde ela também reivindica indenização por área desapropriada. Só da vila estariam coincidentes 55 hectares, segundo os documentos apresentados. A fazenda foi registrada em cartório em 1983, pelo então marido da empresária, José Maria de Morais Machado.
À época, ele adquiriu três propriedades para formar o imóvel, que na região era conhecida como Firma Machado. Cultivava cajueiros e coqueirais. O casal se divorciou em 1995 e Iracema recebeu a terra na partilha de bens. Zé Maria morreu em 2008.
O POVO voltou a insistir sobre uma entrevista com a empresária, mas, segundo seus advogados, ela evita se expor por ter sofrido ataques diversos, principalmente no meio digital, desde que o caso veio à tona.
Duas investigações correm em paralelo, hoje, para tentar esclarecer as medidas originais da fazenda Junco I e sua suposta sobreposição à vila de Jeri. E também apurar se a documentação apresentada pela empresária Iracema Correia São Tiago sobre o imóvel é legítima. Ambas ainda não deram luz às dúvidas, pelo menos oficialmente.
A que é mediada pela Procuradoria Geral do Estado (PGE) é formada por um grupo de trabalho interinstitucional. Nele, o Incra tem sido o principal executor das buscas pelos documentos que levantem a cadeia dominial da propriedade. Também fazem parte o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), representantes da empresária, da comunidade e dos empresários e Ministério Público.
O POVO apurou que dois servidores do Incra , entre os mais experientes em querelas fundiárias semelhantes, foram ao Distrito Federal, no início de 2025, para uma nova etapa do trabalho: garimpar matrículas cartorárias digitalizadas da região de Acaraú anteriores à década de 1940. A medida se deu após as checagens feitas no cartório de Acaraú, em dezembro passado.
A informação, colhida junto a fontes que acompanham o caso de perto, é que os servidores teriam voltado de Brasília com novos arquivos em mãos. O material é microfilmado e com caligrafia antiga, até com escritas a bico de pena. Os detalhes, ainda não compartilhados entre as partes da empresária e da comunidade de Jeri, deverão constar no relatório final do caso.
A reportagem procurou o Incra, mas ninguém foi disponibilizado para se manifestar a respeito. O órgão federal informou que as declarações sobre o trabalho deverão ser dadas pelo Governo do Estado, que é responsável pela ação.
Procurada, a PGE reafirmou que o acordo com a empresária segue suspenso, sem prazo determinado, até o esclarecimento da cadeia dominial da fazenda e que aguarda a conclusão das buscas e o relatório final a ser apresentado pelo Incra. A superintendência do Incra ratificou que não há um prazo final para a conclusão do documento.
A outra investigação é tocada pelo Ministério Público Estadual (MPCE), através da promotoria da comarca de Jijoca de Jericoacoara. O POVO tentou falar com a promotora responsável, Laura de Figueiredo Uchôa. A assessoria do órgão retornou que ela não estaria disponível para atender à demanda.
Em 25 de outubro de 2024, a promotora expediu recomendação para que o acordo entre o Estado do Ceará e a empresária fosse suspenso "de imediato", naquele momento. A medida "foi motivada pela necessidade de investigar o histórico do imóvel, uma vez que a matrícula apresentou aumento significativo de área, passando de 441,04 hectares para 924,49 hectares".
"O que nós já sabemos das informações de uma cidade pequena é que já aconteceram depoimentos de pessoas que, por exemplo, eram residentes nesse vilarejo Junco, inclusive com pagamento de taxa do Incra do seu próprio terreno ali, proprietário legítimo na época, testemunhando que a firma Machado nunca passou pelo Junco", afirmou Fábio Nobre, do conselho empresarial de Jeri.
No Ministério Público Federal (MPF), uma notícia de fato foi protocolada em 7 de maio último, pelos advogados da empresária, sobre possíveis invasões que estariam ocorrendo dentro da vila de Jeri. Inclusive em terrenos descritos no acordo, a serem incluídos na possível transferência.
O caso estava em "análise de possível prevento" no órgão, para saber se será juntado a alguma investigação já em andamento. Fábio Nobre disse desconhecer a ocorrência de invasões na região.
Durante as buscas documentais feitas no cartório de Acaraú, em dezembro do ano passado, a tabeliã chegou a exigir uma ordem judicial que autorizasse a procura pelas três matrículas embrionárias da fazenda Junco I. O pedido foi deferido pelo juiz local, mas reduziu o número dos que poderiam acompanhar a vistoria presencialmente. Por conta da privacidade e proteção de dados.
Na análise dos livros cartorários, foi localizada uma planta da área da propriedade, datada de 1981, que até então era desconhecida inclusive pelos advogados da empresária. Estava anexada à matrícula do imóvel "mostrando onde era a localização do terreno, a extensão, os marcos físicos, os limites", segundo o advogado Marcellus Melo Silva.
O mapa teria servido de referência para a aquisição pelo ex-marido de Iracema. "Qualquer dúvida em relação à extensão, ao limite, ela deixa de haver nesse momento, porque o mar e o travessão não mudam de lugar", afirma.
O prefeito de Jijoca de Jericoacoara, Leandro Cézar, diz que também entrará numa briga judicial, que parece cada vez mais iminente, caso os terrenos da vila de Jeri sejam repassados à empresária Iracema Correia São Tiago.
"Se a parte autora lá chegar a ter acesso a esses documentos, nós também da prefeitura vamos judicializar porque não aceitamos em nenhuma forma e não vamos reconhecer esse processo porque nunca vimos essas pessoas. A prefeitura vai judicializar o processo no exato momento que houver essa situação", afirmou ao O POVO.
Cézar recebeu o problema no colo poucos dias depois de ser eleito, em outubro de 2024. Disse ter sido surpreendido como todos na localidade, mas não demorou em escolher um lado da disputa.
"A minha posição e a posição do governo municipal de Jijoca é que não vamos compactuar com esse processo da Iracema. As terras de Jericoacoara pertencem à população de Jericoacoara que está ali há muito tempo". Desde que assumiu o cargo, em janeiro, ele tem se manifestado contra o acordo firmado com a empresária.
Em 30 de abril deste ano, os vereadores de Jijoca aprovaram a lei nº 020/2025, que permite à administração municipal regularizar construções consideradas irregulares. O prefeito afirma que a nova legislação não está associada ao caso da empresária Iracema e que é um ajustamento necessário ao plano diretor local.
A demanda maior estaria na sede municipal e não na vila, segundo ele. Em 2018, o Instituto do Desenvolvimento Agrário (Idace) emitiu um relatório que apontava 11 mil m² de ocupações irregulares em Jericoacoara. É o levantamento mais atual da região divulgado.
"É uma lei transitória. Ela não vem para passar a mão na cabeça de ninguém, vem para poder fazer uma regularização de pessoas que não tinham condição. As leis anteriores chegavam a multar as pessoas em 200, 300, 400 mil reais e as pessoas não poderiam pagar. Só os grandes empresários que têm poder financeiro conseguiram se regularizar. O pequeno e médio empresário, que é aquele morador de Jijoca, nativo da vila, ele não conseguiu se regularizar", justifica Leandro Cézar.
O gestor promete endurecer o tratamento ao ponto de até não regularizar lotes que possam ser repassados pelo Estado à empresária. "Não vamos liberar nenhum tipo de aprovação com relação a esse processo da Iracema por parte do governo na nossa gestão".
O prefeito acusa que os redimensionamentos da área total da fazenda Junco I foram "alargamentos de terra sem ter documentação" e que a propriedade de Iracema não estaria sobreposta à vila. "Até hoje não sei quem é essa Iracema. Não sei quem é que está por trás desse processo".
> 1981 - O empresário José Maria Morais Machado, então marido da empresária Iracema Correia São Tiago, adquire três imóveis na região. Ele forma a fazenda Junco I, para plantio de coco e caju. Entre moradores de Jeri é conhecida como "Firma Machado".
> 1982 - Aquisição das terras da firma Machado, regularizada no cartório de Acaraú em janeiro de 1983.
> Entre 1995 e 2000 - O governo estadual, através do Idace, promove a regularização fundiária na região. O processo foi acompanhado por comitê local de moradores. Houve desde titulação de ocupantes a arrecadação sumária de terras devolutas pelo Estado.
> Julho 2023 - Advogados da empresária Iracema apresentam ao Idace a escritura da fazenda Junco I, reivindicando terrenos em Jeri pela sobreposição de área - cerca de 80% coincidentes. O documento não havia sido mostrado no período de regularização fundiária.
> Maio 2024 - Após análise, o Estado e pareceres de órgãos fundiários e ambientais reconhecem a validade dos documentos de Iracema. É fechado um acordo com a empresária, mediado pela PGE. Em vez de 18 ha, seriam transferidos 3,47 ha em 19 lotes, somente de áreas não ocupadas por construções nem as de interesse público.
> Outubro 2024 - A notícia do acordo é descoberta pela comunidade e vira polêmica. Moradores e empresários passam a temer a perda de seus imóveis. Poucos dias depois, o MPCE recomenda a suspensão do acordo para análise mais minuciosa dos registros cartorários. A PGE segue o pedido e suspende o acordo por tempo indeterminado para essa apuração.
> Novembro 2024 - Conselho Comunitário de Jeri apresenta novo laudo técnico, feito por engenheiro cartógrafo, questionando tamanho de terras da empresária
> Dezembro 2024 - Cartório de Acaraú é visitado na investigação conduzida pela PGE, junto com órgãos fundiários, ambientais e representantes da empresária e dos moradores e donos de hotéis de Jeri. É identificada uma escritura de 1941, associada à cadeia dominial dos terrenos onde está a fazenda Junco I. Papéis mais antigos não puderam ser manuseados.
> Janeiro 2025 - Técnicos do Incra vão ao acervo do órgão, em Brasília, analisar registros cartorários microfilmados da comarca de Acaraú.
> Junho 2025 - O caso segue indefinido e as partes cogitam a judicialização.