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Fortaleza registra apenas quatro multas por uso de fogos barulhentos desde 2022
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Fortaleza registra apenas quatro multas por uso de fogos barulhentos desde 2022

Queima de rojões com barulho é proibida por lei em Fortaleza há quatro anos; brechas na legislação e falta de fiscalização propiciam o descumprimento da norma na Capital
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Fiscalização não consegue chegar a infratores que soltam fogos de artifício com barulho em Fortaleza (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Fiscalização não consegue chegar a infratores que soltam fogos de artifício com barulho em Fortaleza

Os estrondos dos fogos de artifício seguem fazendo mais alarde em Fortaleza do que a legislação que os regula. Criada em julho de 2021, a Lei Municipal 11.140, que proíbe o uso de foguetes com barulho na Cidade, resultou na aplicação de apenas quatro multas, todas a pessoas jurídicas.

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A lei foi aprovada em maio de 2021, mas o decreto nº 15.077/2021, de agosto do mesmo ano, estabeleceu um período de adaptação até 31 de janeiro de 2022. As quatro sanções ocorreram entre novembro de 2022 e outubro de 2023. Ou seja, depois que começou a possibilidade de aplicação de multa, a lei levou quase um ano para autuar a primeira empresa e hoje, em junho de 2025, está há 20 meses sem resultar em multa. Os valores vão de R$ 985 a até R$ 11.520, e de acordo com o Código da Cidade, podem chegar a R$ 14 mil, a depender se o rojão foi solto em local público ou privado.

O dado foi obtido pelo O POVO via Lei de Acesso à Informação (LAI) e demonstra que, apesar dos frequentes ruídos ouvidos na Cidade, os infratores ainda passam despercebidos pela fiscalização.  

As situações relacionadas a esses estrondos são vários, desde jogos de futebol até eventos políticos, mas todos com uma característica comum, os transtornos para a população que reside no entorno.

Déborah Morais, 27, mora próximo à Arena Castelão, principal polo esportivo do Estado, e que vez ou outra sedia shows e festivais de música. Tutora de dois cachorros, a jornalista diz ouvir os fogos sempre que Ceará ou Fortaleza jogam no estádio, com ruídos que começam horas antes do jogo, e se intensificam sempre que um dos times faz um gol ou vence a partida.

“Eles têm muito medo dos fogos. Se assustam bastante. Zoe, minha cachorrinha, se treme de medo, vai para debaixo da cama e só consegue sair depois que para o barulho. O outro cachorro, que é um filhote, tem se assustado bastante porque nunca tinha ouvido até vir morar aqui com a gente. É um caos que faz mal para quem é morador e principalmente para os animais”, relata.

Além dos animais, Pessoas com Deficiência (PcDs), em especial as que possuem alguma divergência mental, estão entre os prejudicados pelo uso desses fogos. Dona Antônia (nome fictício) Dois dos personagens citados nessa reportagem tiveram os nomes ocultados devido a falas sobre uso de fogos por parte de facções criminosas e por solicitação dos mesmos.  mora junto à filha, que possui deficiência cromossômica e é frequentemente afetada pelos altos ruídos

Residente do bairro Cristo Redentor há 4 anos, ela conta que nas épocas festivas, como São João, data comemorada nesta terça-feira, 24,  e fim de ano, os fogos geram grande preocupação nela e em outros moradores que convivem com PcDs em casa.

“Quando ela escuta os fogos, ela fica muito nervosa. Chora, bota as mãos nos ouvidos… é uma agonia com ela. Agora não mais porque ela não pode mais sair da cama, mas antigamente ela corria quando escutava os fogos. A gente precisava segurar para ela não ir para fora para não fazer uma besteira”, conta.

O incômodo com os foguetórios alcança também a população geral. Alfredo, também morador do bairro Cristo Redentor, conta que já perdeu noites de sono, após acordar assustado com o barulho dos rojões.

“Há uns dois, três meses houve uma queima de fogos meio alta aqui de madrugada e todo mundo acordou assustado, desnorteado e sem entender o que aconteceu, Você acorda no susto. Uma pessoa que tem problemas cardíacos pode passar mal, uma pessoa com autismo passar mal, um animal fugir e chegar a óbito. Negócio complicado”, relata.

Para a especialista em direito processual civil e membro da Comissão de Advocacia Pública da Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará (OAB-CE) Izabel Dourado, é preciso mudar mais do que a lei para acabar com o uso de fogos com estampido na Cidade.

A advogada ressalta que o Brasil é um país tradicionalmente barulhento, e que antes mesmo da sanção, é preciso mostrar à população os prejuízos causados pelos rojões.

“Uma das questões importantes para essa lei ter eficácia, em primeiro lugar, é a sensibilização e a educação da sociedade em relação a lei e sua justificativa. A gente sabe que o Brasil é um país de tradição de barulho, somos um povo mais barulhento que outros povos. A gente tem uma ligação com essa questão do barulho. Essa educação, a campanha permanente e contínua, é necessária. Uma parcela importante da população compreende essa lei e é capaz de cumpri-la”, pontua a também mestra em Direito e Ciência jurídica.

Os riscos dos fogos de artifício se estendem também a acidentes físicos, como entrada de rojões em casas, colisão com fiações elétricas e até mesmo ferimento dos próprios usuários, devido ao uso incorreto.

Segundo dados do Sistema Único de Saúde (SUS) divulgados pela Agência Brasil em dezembro do ano passado, 1.548 pessoas foram internadas no País com ferimentos causados por fogos de artifício entre 2019 e 2022, média superior a um caso por dia. (colaborou Cláudio Ribeiro)

Brechas na lei e fiscalização impedem autuação depessoas físicas

Em quatro anos, nenhum morador de Fortaleza foi autuado pelo uso de fogos de artifício com estampido. Isso porque, todas as multas aplicadas foram em nome de pessoas jurídicas, ou seja, empresas que funcionam na Capital.

O POVO solicitou entrevista com fonte da Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) para debater os resultados gerados até aqui pela legislação. A pasta, que optou por responder por nota, afirmou que a maior barreira para que mais usuários dos fogos com estampido sejam multados é a identificação do responsável pela soltura.

Segundo a Agefis, para ser autuada a pessoa precisa ser pega enquanto prepara ou solta os fogos. Esses momentos, entretanto, são rápidos e muitas vezes não deixam vestígios, o que dificulta o flagrante.

O texto original da Lei, de autoria da ex-vereadora e hoje deputada estadual Larissa Gaspar (PT), previa que fotos e vídeos do uso dos rojões fossem utilizados como provas em eventuais denúncias. Entretanto, o artigo que estabelecia essa possibilidade foi vetado pelo ex-prefeito José Sarto (PDT).

Outro ponto que dificulta a eficácia da lei é o olhar apenas sobre o uso dos fogos, mas não de sua comercialização. Em outros locais do País, como os estados do Acre e Alagoas, as leis proíbem também a compra e venda desses materiais, enquanto Fortaleza impede apenas a soltura dos fogos.

Desse modo, parte das denúncias enviadas para a Agefis terminam descartadas, já que alertam para a venda dos fogos com estampido, o que segundo a legislação municipal, não configura infração.

Procurada pelo O POVO, Larissa lembrou que o Projeto de Lei (PL) apresentado por ela incluía a proibição da compra e venda desses materiais. O impedimento foi retirado durante a apreciação do texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor).

"A iniciativa se destinava inicialmente a proibir a comercialização, a fabricação e o uso. Porém, na CCJ os vereadores aprovaram uma emenda supressiva retirando a fabricação e comercialização para permitir, portanto, essas práticas. E deixaram somente a proibição do uso dos fogos barulhentos", disse a parlamentar.

O especialista em Direito Público Antônio José Maia, destaca que a venda de produtos com estampido dificilmente seria interrompida apenas com a mudança da lei. Para ele, é necessário que os fabricantes dos produtos sejam convencidos para tal, assim como houve com os cintos de segurança nas montadoras de carros.

"Eu lembro da lei dos cintos de segurança, que todo mundo dizia 'isso aí não vai pegar'. Mas foi feito campanha, mostrados os resultados, os próprios veículos passaram a vir com aviso sonoro quando você não utiliza o cinto. Para a gente chegar nisso, é necessário que haja o entendimento por parte de quem faz a lei de que, para além da questão jurídica, há uma questão social", pontua Maia.

Com a obrigatoriedade do flagrante e sem restrição da venda, os resultados são os vistos nos últimos anos. Essas brechas na fiscalização permitem que pessoas físicas soltem fogos à vontade pela Capital e tornam comum o pensamento de "nunca vi alguém ser multado".

Há relatos inclusive de que entre os usuários desses fogos estão membros de grupos criminosos, que usam os rojões para comemorar alguma "vitória" da facção.

"A confusão de fogos é grande por aqui. Tem fogos que é quase que diariamente que eu não sabia de que era, mas minha filha diz que é a chegada das drogas. Isso é de três em três dias, dois em dois dias", afirma dona Antônia.

A cobertura feita na Cidade sobre esses fogos ainda não chega aos locais de maior criminalidade, o que propicia essa sensação de liberdade para uso desses materiais por parte dos grupos. Em 2024, o bairro com mais denúncias foi o Meireles, na área nobre de Fortaleza.

Denúncias de uso de fogos por bairro de Fortaleza em 2024

Desconhecimento dos canais de denúncia dificulta repasse de informações

Junto às brechas na legislação e os problemas na fiscalização da soltura de fogos com estampido, outro agravante é o desconhecimento dos canais de denúncia por parte da população. Sem ampla divulgação ou debate da questão, alertar sobre a soltura de fogos se torna uma tarefa mais difícil para os moradores da Cidade.

Um comerciante e morador do Cristo Redentor ouvido pelo O POVO, que optou por não se identificar, até hoje não denunciou os fogos que costumam acordá-lo de madrugada por não saber onde ou como fazer esse processo.

"A gente não sabe como denuncia e a gente nunca viu ninguém ser multado por isso. Mais difícil que orelha de freira. Não tem a informação 'você quer denunciar? É pelo número tal'. Não existe essa divulgação. A gente sabe da lei, mas o que adianta ter lei se a gente não sabe para quem reclamar?", questiona.

Questionada sobre a divulgação dos canais de denúncia, a Agefis afirmou que o site para envio de denúncias está disponível na capa do portal da Prefeitura e é frequentemente divulgado tanto nas matérias do site quanto pela imprensa.

SERVIÇO

As denúncias de uso de fogos com estampido em Fortaleza podem ser feitas via telefone, através da Central 156, pelo aplicativo Fiscalize Fortaleza (disponível para Android e iOS) e no site da Agefis.

 

Lei que busca proibir uso de fogos com estampido tramita no Congresso

A queima de rojões com estampido é proibida em quase todas as capitais do País, seja por leis municipais ou estaduais. Apenas Manaus, no Amazonas, não possui norma específica sobre os foguetes. O estado até possui a Lei N° 6.997/24, que proíbe a emissão de ruídos que perturbem o bem-estar público, mas libera o uso de fogos, desde que com autorização prévia do poder público.

Todas essas, porém, deverão ser substituídas caso seja aprovado o PL N° 5/2022, que busca proibir a fabricação, comércio, transporte, manuseio e uso de fogos de artifício de estampido.

De autoria do senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), a proposta majora as proibições e também a multa a ser paga pelos infratores, com teto de R$ 50 mil reais ou 20% do faturamento, para lojas que vendam os materiais. Com o projeto em vigência, seriam permitidas apenas a fabricação dos fogos com estampido para exportação.

O texto já passou pelo Senado Federal e desde novembro está sob apreciação da Câmara dos Deputados. Caso seja aprovado também na casa legislativa, seguirá para sanção presidencial.

"A lei é nacional e as sanções vão valer para o território nacional. Uma iniciativa muito boa do Congresso Nacional porque unifica essa questão no País inteiro", pontua a advogada Izabel Dourado.

 

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