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"Vivíamos no esgoto": invasões no Parque do Cocó expõem problemas de habitação em Fortaleza
Reportagem Seriada

"Vivíamos no esgoto": invasões no Parque do Cocó expõem problemas de habitação em Fortaleza

Caso de conjunto irregular no Jardim das Oliveiras expõe a delicadeza nos pelo menos 25 pontos de invasão que permeiam a área protegida do Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza. Grande parte das ocupações irregulares trata-se de pequenos comércios e casas em comunidades periféricas. Entre interesses ambientais e comunitários, há o abandono em comum
Episódio 4

"Vivíamos no esgoto": invasões no Parque do Cocó expõem problemas de habitação em Fortaleza

Caso de conjunto irregular no Jardim das Oliveiras expõe a delicadeza nos pelo menos 25 pontos de invasão que permeiam a área protegida do Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza. Grande parte das ocupações irregulares trata-se de pequenos comércios e casas em comunidades periféricas. Entre interesses ambientais e comunitários, há o abandono em comum Episódio 4
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Encostada na porta aberta, a moça "Os moradores do conjunto não foram identificados, apenas os líderes comunitários" imaginava o futuro. Aos 25 anos, está grávida pela terceira vez e mora sozinha com as duas filhas em uma construção frágil de madeira. Uma das meninas assiste a vídeos em um celular, no único quarto do espaço. A outra, falante, faz companhia à mãe no observar. Sobe na porta e aponta.

Ali perto será a futura morada da família, esta sim com fortes alicerces, a qual a dona de casa destina R$ 100 do auxílio mensal para ver finalizada em um ano. O dinheiro vai para materiais de construção, explica, já que a mão-de-obra e o terreno ficam a cargo da comunidade. “Esta situação de hoje é melhor do que onde você morava antes?”, perguntamos. “Ora, muito!”, disse ela, com um sorriso de obviedade.

ParaTodosVerem: silhuetas de mãe e filha em casa em ocupação no Jardim das Oliveiras. Elas estão em primeiro plano e observam as construções(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: silhuetas de mãe e filha em casa em ocupação no Jardim das Oliveiras. Elas estão em primeiro plano e observam as construções

A casa da mulher fará companhia às 70 já erguidas no conjunto habitacional Cajado, no bairro Jardim das Oliveiras, em Fortaleza. Serão 450 no total. Sem apoio governamental, os materiais são todos conseguidos pela comunidade ou via doações e o maquinário é alugado ou emprestado da Prefeitura de Fortaleza.

Mesmo cinco anos após o início das construções, tudo se movimenta. O trabalho não para e a promessa anima. O mais impressionante, no entanto, é o que poucos reparariam se não soubessem da história: o chão. O conjunto firma-se sobre um aterro de três metros de profundidade, feito 100% pelos futuros moradores.


 


E a grande contradição está aí. O alicerce não foi feito em qualquer lugar, mas em território protegido. A área de cinco hectares integra o Parque Estadual do Cocó (PEC), quarto maior parque natural em área urbana da América Latina.

No trecho, funcionava uma lagoa de estabilização de resíduos da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), que foi desativada e acumulou lixo. O terreno dela foi integrado ao Plano de Manejo do Cocó, de 2020. Como se trata de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral (UC/PI), não são permitidas quaisquer intervenções urbanas naquele local. Ou seja, tudo ali está irregular.

ParaTodosVerem: visão aérea do local do aterro no Jardim das Oliveiras. A imagem apresenta um quadro que indica 46 mil metros quadrados de áreea. Reprodução é de 2024(Foto: Reprodução/Google Maps)
Foto: Reprodução/Google Maps ParaTodosVerem: visão aérea do local do aterro no Jardim das Oliveiras. A imagem apresenta um quadro que indica 46 mil metros quadrados de áreea. Reprodução é de 2024

O caso não é solitário. O corpo do Cocó está bem violado, conforme apontou levantamento inédito do O POVO+ em parceria com equipes da Universidade Federal do Ceará (UFC). Feridas vermelhas, indicando falta de vegetação, se estendem da Sabiaguaba, passando pelos contornos de prédios ricos do Edson Queiroz e Manuel Dias Branco até se intensificarem nos bairros ao sul da Capital.

Seria fácil apontar o dedo aos invasores. Segundo a proteção, é simples: o território é vetado e precisa ser esvaziado. No entanto, várias das construções ilegais não se tratam de empreendimentos milionários. São habitações pequenas, comércios ou moradias. Como explicar para estas pessoas que elas não deveriam ocupar aquele local?

 

Pontos vermelhos indicam falta de vegetação. Clique e arraste para conferir todo o curso do Parque

 

A delicadeza predomina. No Jardim das Oliveiras, Paulo Brito, líder comunitário, disse não conseguir entender como deixaram um “esgoto” lá por tanto tempo e agora a comunidade não pode fazer nada a respeito. Não entende como a antiga lagoa, para eles sinônimo de lixo e doenças, estava sob proteção.

Qual o prejuízo maior para você? Degradar o meio ambiente mediante ao conjunto habitacional ou urbanizar uma área destruída e contaminada para poder transformar e urbanizar num meio comum para a comunidade?”, questionou ele, em uma contradição que, segundo especialistas, não deveria existir.

O meio ambiente precisa caminhar com o desenvolvimento, defendem. Águas fluviais não deveriam correr com o temor da inundação. O verde não deveria ser sinônimo de “matagal” ou “desperdício” de espaço.

Os problemas urbanos em Fortaleza afetam a relação da população com a natureza e, se ambos - o Cocó e a comunidade - são considerados nativos da terra, as invasões tornam-se quase um crime contra nós mesmos.

 

 

Como O POVO+ flagrou o “sumiço” da lagoa no Jardim das Oliveiras

As imagens de satélites são uma nova versão de álbuns de fotografias: denunciam o passar do tempo. Através de um passeio habitual por elas, uma colaboradora do O POVO percebeu assustada que um enorme corpo d’água no Jardim das Oliveiras, de repente, havia sumido.

Após análises, Ayuri Reis, estagiário de Ciência de Dados da Central de Dados do O POVO+, verificou que o aterramento se deu entre 2020 e 2024, ou seja, na pandemia de Covid-19. O que aparentava ser um viveiro de flora local foi consumido por terra e areia em anos de quarentena.


 

A reportagem entrou em contato com comércios locais, cujos telefones estão disponíveis online. Nos deparamos com Paulo Brito, vinculado ao Serviços de Entregas Rápidas - Pbrepres. “Vocês estão falando com a pessoa certa!”, disse, se identificando como vice-presidente da Associação Cajado, responsável pelo aterro.

A hipótese de “flora local destruída” foi estremecida pelo relato dele. Paulo não chamou o conteúdo da extinta lagoa de “água”, mas “esgoto”. Narrou acúmulo de lixo, “doenças, sujeira, ratos” existentes até que os moradores “se mobilizaram para limpar e cuidar do espaço”.

ParaTodosVerem: Paulo Brito, vice-presidente associação Cajado e responsável pelas relações públicas. É um homem pardo. Usa óculos escuros, calça e camisa bege. Está no centro de uma construção(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: Paulo Brito, vice-presidente associação Cajado e responsável pelas relações públicas. É um homem pardo. Usa óculos escuros, calça e camisa bege. Está no centro de uma construção

Outros foram na mesma toada ao defender o que aconteceu depois. “Esgoto estava há anos, sem nada. Hoje em dia pelo menos a população tem casa. Para mim deixa como está, para o povo morar”, disse um morador antigo dos arredores, que preferiu não ser identificado.

O cheiro dos dejetos em épocas de chuva circulava uma população atingida pelos efeitos da pandemia. Foi quando o espaço teria deixado de ser visto como algo a ser evitado e passou a abrigar projetos. “Muita gente ficou desempregada, sem ter o que comer e sem ter como pagar aluguel. Ao ver o espaço, as pessoas queriam adentrar”, disse Paulo.

Para fins de organização, a Associação Cajado surgiu. Conforme José Sales, presidente do grupo, as construções dividem-se por etapas: conforme a vulnerabilidade dos habitantes é montada a lista de prioridades. “Era bomba atômica aqui, com resíduos e incêndios. Resolvemos nos movimentar. É uma luta”, disse.

O antigo “esgoto” tratava-se, na verdade, de uma lagoa de estabilização - sistema de 1982, segundo a Cagece. O modelo de drenagem era relativamente comum à época, apesar de contestado por ambientalistas, como um dos fundadores do Movimento SOS Cocó, João Saraiva. “(A lagoa de estabilização) destrói completamente a vegetação nativa. Aprendemos a aceitar mais porque era menos danoso do que jogar diretamente ao rio”, disse.

O modelo é obsoleto. Hoje, a coleta e o tratamento de esgoto do bairro Jardim das Oliveiras são realizados “por meio do sistema da sub-bacia da margem direita do rio Cocó, integrado ao macrossistema de esgoto da capital”, indica a Cagece. É canalizado. A desativação da lagoa teria ocorrido “devido à reclassificação da área, que passou a ser considerada de proteção ambiental”, por volta de 2017.

Ou seja, mesmo antes de virar conjunto, a lagoa artificial não apenas não servia mais, como já degradava a área por quase 40 anos, sem parar, com baixas possibilidades de retorno à flora nativa. Ainda assim, virou parte do Cocó. Por que?




Houve uma dificuldade de contato com os ex-secretários ou técnicos envolvidos na montagem do Plano de Manejo do Parque, feito em 2020. Eles se recusaram a falar. Cada um indicava um colega que, por sua vez, indicava outro.

A resposta oficial da Sema indicou a inclusão pelo fato de ser uma lagoa de estabilização, além de uma promessa de reflorestamento feita pela Cagece. A Companhia informou ter elaborado um Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD) para regeneração e manutenção de vegetação nativa na região.



A Semace disse ter aprovado a área proposta, dando andamento à reposição florestal. No entanto, durante o monitoramento, foram identificadas “perdas no plantio”, o que exigiu a readequação do projeto. A Cagece propôs uma nova área, aprovada por uma nova vistoria.

Nada foi feito depois disso. Segundo a Semace, o projeto dessa nova área não foi formalizado pela Companhia. “Estamos aguardando a apresentação dessa nova proposta para dar seguimento”, foi o comentário sobre um terreno há, pelo menos, sete anos desativado e com 70 construções levantadas. A Superintendência diz manter o “monitoramento atento da situação”.

ParaTodosVerem: de costas, José Sales, Presidente da associação Cajado. Ele observa as construções. Usa uma camisa xadrez vermelha e calças jeans(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: de costas, José Sales, Presidente da associação Cajado. Ele observa as construções. Usa uma camisa xadrez vermelha e calças jeans

José Sales diz com todas as letras: “Daqui ninguém nos tira”. Já Paulo Brito defende-se fortemente quando questionado se teme pelo despejo das pessoas do conjunto. Acha inaceitável o argumento da proteção ambiental: conhecia a área antiga e, nela, não enxergava natureza, mas destruição.

É no nome do vice-presidente que correm processos para regularização do conjunto. Disse ter apresentado em âmbito municipal, estadual e federal. “Estão todos cientes”, afirmou, com esperança de ajuda financeira e de infraestrutura, apesar das complicações legais.

Ao caminhar pelo conjunto, as pessoas acenam. Os líderes conhecem até o lado da sombra das casas e o horário que os moradores chegam e saem. A terra elevada abriga famílias com nomes e sobrenomes, rodeados por materiais de construção.

Em paralelo, o Cocó corre em uma imensidão silenciosa. É preciso andar 300 metros até avistá-lo. Moradores relatam não haver inundações, apesar da proximidade. De fato, o rio está em um nível abaixo: camadas de entulhos com uma “cobertura” de arisco elevaram as casas. De baixo, a água observa a “invasão” dos irmãos junto ao leito, não só naquele ponto, mas da nascente à foz.

 

 

As violações no curso do Cocó

“Tão Verde Quanto Possível” é o nome de um estudo da UFC responsável por mapear todos os pontos verdes remanescentes em Fortaleza. O POVO+ destrinchou o mapeamento em reportagem especial sobre áreas verdes de Fortaleza. Agora, retomamos à pesquisa.

Cruzamos o levantamento da UFC com a área protegida do Cocó. Também consideramos um mapeamento de lagoas da plataforma Fortaleza em Mapas. Como resultado, foi possível verificar quais áreas estão sem vegetação, quando deveriam estar intocadas - como é o caso do Jardim das Oliveiras.

Aqui cabem algumas observações: certos pontos se referem a áreas de dunas, ou seja, ainda que não haja vegetação, não significa que estejam desmatados - apenas é a flora local. Já no fim do mapa, a grande mancha vermelha se refere a zonas metropolitanas - nesta reportagem estamos considerando só Fortaleza. Mais informação estão no mapa abaixo.

 

Pontos amarelos indicam intervenções ao Parque Estadual do Cocó

 

Foi necessário, então, um passeio aéreo. Analisando as manchas vermelhas após o cruzamento de dados, O POVO+ catalogou pelo menos 25 pontos de intervenção urbana nas delimitações do Parque Estadual. Quanto mais ao sul, mais visíveis as interferências ficam. As datas estão explicitadas na visualização, tendo em vista que podem ter ocorrido modificações do momento em que a imagem foi feita à publicação da reportagem.

Na Sabiaguaba, Edson Queiroz e Manuel Dias Branco, a maior parte das “invasões” diz respeito a aparentes barracas, pequenos restaurantes e bares, incluindo o Complexo Ambiental e Gastronômico da Sabiaguaba e um resort.

 

O Cocó na Sabiaguaba: clique nos pontos amarelos e saiba mais

 

O território central do Parque divide espaço com borracharias, pequenos comércios - oficinas, lanchonetes, casas e o conjunto habitacional citado acima, nos bairros Aerolândia, Tancredo Neves, Dias Macedo, Boa Vista e, claro, Jardim das Oliveiras. Nestes locais, há ainda as areninhas e polos esportivos - construções públicas.

 

O Cocó central: clique nos pontos amarelos e saiba mais

 

Por fim, os limites ao sul apontam construções significativas nos bairros Mata Galinha (Castelão), Passaré e José Walter. Destaca-se ainda uma ampla tomada da comunidade à área protegida no Jangurussu: tem até posto de gasolina, dezenas de casas e comércios. O bairro também comporta uma comunidade cristã instalada bem em meio à densa floresta.

 

O Cocó ao Sul: clique nos pontos amarelos e saiba mais

 

 

“A vitimização da cidade entra pelo rio Cocó”, comenta João Saraiva, defensor da preservação do Parque, citado mais acima. Disse lidar com invasões ao Cocó desde o início do movimento, nos anos 1980.

As construções em locais protegidos, diz, afetam o curso do rio, levando a alagamentos. Além disso, acabam com a vegetação nativa. No caso do Cocó, os manguezais são cenário pela reprodução de espécies marinhas e a vegetação de copa e dunas ajudam na estabilidade do clima. “Nós ocupamos a cidade equivocadamente”, citou João.

Mais informações sobre o impacto da retirada de natureza podem ser encontradas na série de reportagens: Áreas Verdes de Fortaleza, do O POVO+.


 

 

Ambiental ou social? Por que a população ocupa áreas protegidas

O caso Jardim das Oliveiras exemplifica conflitos entre interesses ambientais e sociais ao longo do curso do Cocó. Por muitas vezes, as falas dos representantes de cada eixo colocam o outro lado como rival.

Sobre a comunidade, em específico, João Saraiva defende a readequação do terreno à uma área de convivência verde. Se disse preocupado pelo caráter definitivo das obras do conjunto, o que seria prejudicial para a própria população local. “Quando chove eles vão ser atingidos”, disse.

ParaTodosVerem: João Saraiva, fundador do movimento SOS Cocó. É um homem branco, de barba branca, sem cabelos. Usa óculos pretos e segura um copo branco. Usa uma camisa vermelha com um colete azul(Foto: Arquivo Pessoal/João Saraiva)
Foto: Arquivo Pessoal/João Saraiva ParaTodosVerem: João Saraiva, fundador do movimento SOS Cocó. É um homem branco, de barba branca, sem cabelos. Usa óculos pretos e segura um copo branco. Usa uma camisa vermelha com um colete azul

Segundo ele, “meio ambiente não quer saber se está sendo agredido por pobre ou rico, embora eu sei que as pessoas humildes façam por necessidade”. E completou: “O que deve ser feito? Questionar. As pessoas podem pedir para questionar”.

Para os moradores, há outro olhar. Disseram entender a pauta ambiental, mas apresentaram ressalvas. “Na hora de defender um trabalho socioeducacional também, a gente tem que ter sensibilidade. Há termos e termos”, acrescenta Paulo Brito, do Jardim das Oliveiras.

Tão divergentes, um ponto em comum une os dois lados dessa história: abandono. No caso dos moradores, citaram falta de amparo do poder público durante a pandemia e ausência do direito à moradia.

Já os ambientalistas presenciaram descaso com a vegetação do Cocó, falta de manutenção e preservação, prevista em lei, do rio. “Quem são os culpados? O poder público, não tem outro”, disse João Saraiva.

O próprio bairro, cenário do caso, expressa isso. As construções “chiques” à beira da Av. Rogaciano Leite dão lugar a uma pavimentação precária e casas em processo de instalação de energia elétrica, após meses sem. A comunidade estima entre 1.000 e 1.500 famílias em insegurança alimentar, além de demais problemas urbanos e de segurança pública

Por lá, o Cocó é um susto. Esbarra-se no rio. Não há integração dos moradores com o leito azul ou a vegetação nativa. Em busca de uma porta de entrada para o Parque, em vez do belo Anfiteatro do bairro homônimo - em área nobre - há entulhos de lixo, muros ou escuridão.

Geógrafo, Jeovah Meireles trabalha com pesquisas e projetos da área ambiental em Fortaleza. Defende ser “necessário consolidar a participação das comunidades do entorno do parque, com parcerias com a secretaria de meio ambiente”. Uma convergência de interesses.

Cita as populações nativas como “elementos essenciais em uma ação continuada (e urgente)” para consolidar governança, desde os princípios da garantia dos direitos de convivência entre locais - pescadores, turismo ecológico, marisqueiras - à vigilância contra a invasão imobiliária e demais problemas urbanos.

ParaTodosVerem: Jeovah Meirelles, geólogo e professor da UFC. É um homem branco, de barba grisalha. Usa boné azul e camisa roxa(Foto: Arquivo Pessoal/Jeovah Meirelles)
Foto: Arquivo Pessoal/Jeovah Meirelles ParaTodosVerem: Jeovah Meirelles, geólogo e professor da UFC. É um homem branco, de barba grisalha. Usa boné azul e camisa roxa

“De acessibilidade e potencializar os projetos locais para recuperar as áreas degradadas. As comunidades também são fundamentais para materializar as ações propostas para o plano de manejo”, disse.

Jeovah considera a especulação um dos problemas que leva à ocupação popular, em primeiro lugar. “Da especulação e do mercado de terras urbanas, são as populações mais efetuadas”, considera.

E completa: “Lembro que o tipo de UC proíbe ocupações e a retirada daquelas que estão dentro da poligonal (...) O mercado vai pressionar sempre, entretanto, por ser uma unidade de proteção integral. É prudente licenciar levando em conta os possíveis impactos e de modo a amortecer danos socioambientais ao Parque”, afirma Meirelles.

 

 

Para onde apontam os binóculos do poder público

O Cocó é administrado por um Conselho Gestor, do qual fazem parte órgãos estaduais, federais, municipais e o setor privado. A reportagem questionou aos órgãos públicos sobre as invasões. Ainda que tenham adentrado território protegido, expõem problemas de moradia na Capital, de desamparo. Iniciativas de fiscalização e educação ambiental também foram cobradas.

ParaTodosVerem: vista do rio Cocó aos fundos da ocupação no Jardim das Oliveiras. Folhas emolduram o rio(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: vista do rio Cocó aos fundos da ocupação no Jardim das Oliveiras. Folhas emolduram o rio

Primeiro, o Estado, principal responsável pelo Parque. A Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema) indicou manter um sistema de vídeo monitoramento, com 35 câmeras para vigilância e fiscalização durante 24 horas no Cocó. Há ainda fiscalizações in loco, pela equipe gestora da UC.

“O sistema permite a fiscalização e a prevenção de eventuais crimes ambientais, como um incêndio, por exemplo. É mais uma ferramenta utilizada para garantir mais segurança aos frequentadores da Unidade de Conservação (UC) estadual”, informou a pasta.

As invasões, segundo a Sema, são acompanhadas por meio desse sistema de monitoramento. A partir da localização, são tomadas “as medidas cabíveis de acordo com cada caso encontrado”.

Questionada sobre programas de habitação para as áreas adjacentes ao PEC, a Secretaria de Cidades do Ceará citou o Projeto Rio Cocó, que visa melhorar as condições de habitabilidade da população que reside na faixa de alagamento em situação de alto risco. A execução é do Governo do Estado, com recursos do Governo Federal (Ministério das Cidades).

O Projeto teve seu início efetivo com a execução de obras em 2012, conforme a pasta. Outras iniciativas incluem a barragem de controle de cheias, a Barragem Cocó, serviços de dragagem, a margem direita do rio (no trecho da BR 116 à Av. Perimetral), e a urbanização da margem esquerda do rio entre a Av. Paulino Rocha e Av. Perimetral. Há ainda obras em execução.

 

Foram retiradas, até a presente data, 3.332 famílias que moravam nas margens do Rio Cocó. Destas 1.849 receberam uma Unidade Habitacional e 1.483 receberam indenização, segundo a Sema (Governo do Estado).

 

Quanto à Prefeitura de Fortaleza, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor) indicou estar disposta em contribuir com a população às margens do PEC.

Já a Seuma foi questionada se a Prefeitura estava ciente da expansão urbana de Fortaleza que invadia os limites protegidos do Cocó. Também perguntamos de que maneira os interesses ambientais e das comunidades eram dosados e de que forma a moradia dessas pessoas será preservada.

A pasta se recusou a responder, alegando que “Parque do Cocó é Estado”. A reportagem salientou a necessidade de pronunciamento e, de novo, foi negada a resposta. A Sema (pasta do Estado) foi contatada e indicou a gerência conjunta do Cocó, que não apenas envolvia a Prefeitura da Capital, mas as da Região Metropolitana.

Mesmo assim, a secretaria fortalezense - por meio da assessoria - não quis responder, por uma terceira vez. Solicitamos nota, reforçando questões sobre o papel da Seuma neste caso, sobre dosagem de interesses entre o urbano e ambiental e se há atividades de educação ambiental em Fortaleza.

A pasta respondeu, simplesmente: “A Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) esclarece que a área mencionada é uma zona de proteção ambiental, situada dentro dos limites do Parque do Cocó, sob a gestão estadual”.

Enquanto isso, vale ressaltar, moradores se organizam. O Centro de Educação e Cooperação Socioambiental do Ceará (Cecsa-CE), por exemplo, propôs uma categorização metodológica de cinco microterritórios (MT’s) que compreendem o curso do Rio Cocó: Rural, Industrial, Urbano, Unidade de Conservação e Turístico.

Em fóruns temáticos, os grupos estão organizando “ações cocriadas”, visando as necessidades de cada região. Cada microterritório optou por uma ação diferente, indo desde a criação de CNPJs para organizações locais até planos de ação para iniciativas, como foi o caso do Jardim das Oliveiras (MT Unidade de Conservação). Confira mais detalhes abaixo.

 

O que decidiu cada microterritório em reuniões com o Cecsa

 

Conforme Felipe Bottona, representante do Cecsa, “a voz dos territórios é preponderante nas tomadas de decisão”. O desencontro de opiniões com ambientalistas, segundo ele, não ocorreu até o momento e, caso haja, “o diálogo será incentivado e mediado”.

 


Oliveiras do Jardim

As 450 famílias dos lotes do Jardim das Oliveiras movem-se por expectativas: de oportunidades, de moradia e de ajuda. Ambientalistas olham com preocupação. Ambos miram um solo sem planos, ao menos por ora.

A Habitafor, da Prefeitura, informou que “não tem projetos desenvolvidos para a Comunidade Cajado, situada no Parque do Cocó, território de competência estadual, mas está aberta ao diálogo e à disposição para contribuir na busca por uma solução”. A Sema, do Estado, diz “monitorar a situação da comunidade”, enquanto a Semace citou o projeto da Cagece, conforme dito anteriormente.

ParaTodosVerem: homem mexe em entulhos em ocupação no Jardim das Oliveiras. Há outro ao fundo. Ele usa boné e veste uma camisa listrada azul(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: homem mexe em entulhos em ocupação no Jardim das Oliveiras. Há outro ao fundo. Ele usa boné e veste uma camisa listrada azul

Por fora, o Cecsa diz estar viabilizando encontros da comunidade com o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, com foco na assessoria jurídica popular.

Mas nem tudo é tensão e, no meio das discussões, encontra-se empatia. Os moradores compreendem a necessidade de preservação ambiental. Paulo Brito, da comunidade Cajado, elogiou a atuação de ambientalistas no caso das dunas de Aquiraz, alvo de outra reportagem investigativa do O POVO+. Dizem ainda querer ver o Parque bonito e bem cuidado.

João Saraiva, por outro lado, defende “aguardar uma posição da Prefeitura e do Estado”. Disse compreender que a comunidade “invade por vários aspectos” e citou especialmente dois: a necessidade por moradia e a pressão imobiliária, algo semelhante ao dito pelo geógrafo Jeovah.

Após comentar do sofrimento do meio ambiente e dos alagamentos causados em construções em locais protegidos, ele disse, pensativo: “Não é possível que uma cidade desse tamanho não tenha lugar seguro para abrigar as pessoas.”

A compreensão vem de um lugar comum. No fundo, ambos lutam pelo que lhes é direito por lei: a natureza plena e o teto sobre a cabeça. Ao observarmos a filha atenta da moradora grávida no Jardim das Oliveiras, surge o questionamento, de novo, sobre perspectivas.

Enquanto mira a construção rodeada pelo rio, nos perguntamos se, um dia, ela verá um cenário no qual não precisará escolher entre uma coisa ou outra.

ParaTodosVerem: silhueta de uma menina, em meio à ocupação no bairro Jardim das Oliveiras em Fortaleza(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES ParaTodosVerem: silhueta de uma menina, em meio à ocupação no bairro Jardim das Oliveiras em Fortaleza

 

 

Metodologia

O aterramento da Lagoa foi identificado pelo O POVO, após um habitual passeio, pelo Google Maps, através dos anos. As imagens foram compiladas e analisadas por Ayuri Reis, estagiário de Ciências de Dados do O POVO+.

Ayuri também foi responsável por cruzar as informações da pesquisa “Tão Verde Quanto Possível”, e dos recursos hídricos de Fortaleza, com as delimitações oficias do Parque Estadual do Cocó. No estudo da UFC, a pesquisadora Laymara Xavier-Sampaio catalogou desde copas de árvores até grandes manguezais e florestas.

As informações foram incluídas na plataforma Flourish, de visualização de dados. Levantamento deu origem ao mapa 01 desta reportagem.

A segunda visualização cartográfica partiu de um passeio pelo Google Maps, em busca de imagens de satélite do que foi identificado no mapa anterior. As datas estão explicitadas na visualização, considerando possíveis modificações da data em que a imagem foi feita ao momento de publicação da reportagem.

O POVO+ visitou a comunidade Cajado em 22 de maio de 2025. Os moradores não foram identificados para fins de resguardo de imagem, tendo em vista a irregularidade legal das construções onde moram. Constam apenas os nomes dos líderes, que respondem oficialmente pelo processo.

 

 

"Olá! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. O que achou da matéria? Te convido a comentar abaixo!"

Expediente

  • Texto Ludmyla Barros
  • Análise de dados Ayuri Reis/Central de Dados OP+
  • Imagens Aurélio Alves
  • Design Camila Pontes
  • Edição OP+ Catalina Leite
  • Coordenação Central de Dados OP+ Wanderson Trindade
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