O 8 de agosto passado marcou uma importante data para a segurança pública no Estado, o centenário do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE). Ao longo desses 100 anos, a corporação acumula resgates marcantes, combate a grandes incêndios, mas acima de tudo, histórias de pessoas que tiveram a vida transformada por sua atuação.
O início dessa trajetória ocorre em 1925, por meio da lei estadual 2.253/25, que efetivou a criação do CBMCE, ainda sob o nome de “Pelotão dos Bombeiros”, para o combate a incêndios em Fortaleza. A corporação surgiu como parte do Corpo de Segurança Pública (hoje Polícia Militar do Ceará), o que por algumas décadas, dificultaria uma atuação mais efetiva.
Os entraves apareceram logo no início, já que nos primeiros nove anos de existência, o Pelotão dos Bombeiros ficava alojado junto a outras forças de segurança, sem um equipamento próprio para organização. O historiador e major da reserva do CBMCE, Luciano Viana explica que a instituição existia no papel, mas pouco atuava nas ruas da Capital.
“O Corpo de Bombeiros de 1925 até meados de 1933, ficou só no papel, só na letra. A lei criou os cargos, mas não efetivou. Não foi nada efetivado. Só foi efetivado a partir de meados de 1933, com a chegada do interventor Carneiro de Mendonça”, pontua.
Como citado por Viana, a mudança no status do CBMCE aconteceu graças à vinda de Carneiro de Mendonça ao Ceará, no ano de 1931. Capitão do exército e membro do gabinete de Guerra do governo provisório de Getúlio Vargas, Carneiro foi designado pelo então ministro da justiça, Osvaldo Aranha, para substituir Manuel do Nascimento Fernandes Távora no cargo de interventor do Estado.
Entre as medidas adotadas nos quatro anos de intervenção esteve a organização administrativa do Pelotão de Bombeiros, tendo como grande marco a inauguração do Quartel Central, no centro de Fortaleza, em 1934. Primeiro da corporação, o equipamento dispunha de uma equipe formada por 30 homens, que naquele ano atenderam 21 ocorrências, conforme registros do CBMCE.
Após a estruturação, o agrupamento começou a se expandir e teve aumento significativo no quadro de profissionais já em 1935, quando passou a contar com 76 homens. O ano também marcou a mudança do nome oficial para Corpo de Bombeiros do Ceará, nome que antecedeu o título atual.
Os passos eram animadores e criavam uma expectativa de crescimento iminente do CBMCE, frustrada nas décadas seguintes. Por quase 30 anos, o Quartel Central foi a única unidade do Corpo de Bombeiros em todo o território cearense, responsável por ocorrências na Capital e Interior.
A situação só começaria a mudar com o surgimento de outras unidades como os quartéis do Mucuripe, Sobral e Juazeiro do Norte, em 1972, 1973 e 1974, respectivamente. As unidades, entretanto, eram acopladas nos batalhões da PMCE, assim como acontecera em Fortaleza entre o final da década de 20 e início de 30.
Até os anos 70, a falta de estruturas dificultava a ação do Corpo, que devido a distância entre o Quartel Central e os municípios de outras regiões, por vezes, chegava nos locais com os incêndios já debelados por populares ou outros agentes de segurança.
“Quando tinha um incêndio, normalmente um de grandes proporções, a corporação era acionada. Às vezes, quando chegava no interior, se não fosse um incêndio tão complexo, já tinha sido extinto pelos próprios populares com ajuda da PMCE, que já tinha batalhões em todo o Estado. Os bombeiros não. Quando era deslocado era para ocorrências maiores”, remonta Viana.
Nas décadas de 70 e 80, a discrepância entre o trabalho prestado pelo CBMCE e os recursos concedidos a ele eram evidentes. O cenário seguiu até 23 de abril de 1990, quando por meio da lei 11.673/90, o Corpo de Bombeiros se desvinculou oficialmente da Polícia Militar.
Agora em paridade administrativa e subordinada diretamente ao Governo do Estado, a corporação ganhou autonomia e recursos para iniciar sua etapa de maior crescimento.
Os bombeiros presumiram que a melhor forma de expansão seria a entrada na rotina da sociedade. Junto à preocupação com novos quartéis e aumento de contingente, havia um desejo muito grande no CBMCE de contribuir no dia a dia da população para além do combate ao fogo.
A primeira via escolhida foi a educação. A ideologia de trabalho foi marca da gestão do ex-comandante geral do CBMCE, Leonel Pereira de Alencar Neto, que investiu em uma série de cursos profissionalizantes e até uma creche, a fim de se aproximar das comunidades.
“Quando ele assumiu a corporação, ele viu essa necessidade de aproximar mais a corporação do mundo social. E ele teve a visão de que realmente só poderia acontecer isso através da educação”, pontua o historiador e major da reserva do CBMCE, Luciano Viana.
Apesar das contribuições, a gestão Leonel foi manchada pela exoneração em 1999, após denúncias de desvio de dinheiro do Corpo de Bombeiros, cessão de benefícios a familiares dentro da corporação, entre outros delitos. Em fevereiro de 2014, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) condenou o ex-comandante a ressarcir o poder público pelo crime de improbidade administrativa.
O viés educador cultivado por Leonel no CBMCE teve seu ato maior em 1998, quando foi inaugurado o Colégio Militar do Corpo de Bombeiros (CMCB), ativo até os dias de hoje.
A data marca o início das atividades práticas na escola, pois o reconhecimento oficial por parte do Estado só veio no ano 2000, através da Lei 12.999/00. Nela foram estabelecidas as fontes de recursos, critérios de ensino e público para quem se destinavam o CMCB e o Colégio da Polícia Militar, criado em 1997.
Duas décadas e meia depois de sua oficialização, o Colégio do Corpo de Bombeiros é hoje uma das mais renomadas escolas da Capital, com mais de 700 medalhas em olimpíadas de conhecimento, e este ano, registrou mais de 1000 alunos matriculados entre os ensinos fundamental e médio.
Junto à educação, os programas sociais foram o segundo braço escolhido para servir às comunidades. Em 2003, foi inaugurado o Centro de Treinamento e Desenvolvimento Humano (CTDH) do Corpo de Bombeiros. A unidade é responsável por criar e coordenar as ações sociais do CBMCE, como projetos de surf e hidroginástica para idosos.
Atualmente o CTDH coordena 20 projetos sociais nas áreas de esporte, acessibilidade, cuidado com idosos, saúde, literatura, entre outros. Ao todo, mais de 30 mil pessoas participam das ações, sendo 25 mil só no programa “Saúde Bombeiro e Sociedade”, destinado a atividades físicas e campanhas socioeducativas.
“Temos vários relatos de que a entrada no projeto trouxe a pessoa de volta para o convívio social. Às vezes, a pessoa estava em casa e, ao conhecer o projeto, fez amizades, criou novos vínculos”, ressalta o comandante-geral adjunto do CBMCE, Wagner Maia.
O crescimento também foi estrutural e administrativo. Quem um dia atendeu com apenas um posto de 30 homens para todo o Estado, hoje possui mais de 30 companhias e unidades em 20 municípios.
O contingente total chega a 1500 militares, organizados em cinco batalhões responsáveis pelas ocorrências de Fortaleza e regiões Metropolitana, Centro-Norte, Centro-Sul, Leste e Cariri.
Em comemoração aos 100 anos da corporação, foi inaugurado o Museu do CBMCE. O equipamento localizado no Casarão Vermelho, no bairro Jacarecanga, em Fortaleza, foi aberto oficialmente na solenidade de aniversário do CBMCE no dia 8 deste mês.
Os vários anos de serviço juntos, compartilhamento de quartel e grandes histórias na ativa da corporação podem levar muitos bombeiros a verem seus companheiros de farda como grandes amigos, uma verdadeira “família que o trabalho lhes deu”.
Na família do sargento Ernando Pinto, essa relação é um bem mais intrínseca, já que diferentes gerações já vestiram a farda dos “heróis do fogo”, como ele se refere ao CBMCE. Tudo começou com o irmão mais velho, Edmilson, que após sair do exército, ingressou nos bombeiros durante a década de 60.
Os relatos do dia a dia emocionante no quartel e a imagem de bravura atrelada a quem veste o manto laranja fizeram com que Ernando se espelhasse no irmão, e também logo após o fim do serviço militar obrigatório, ingressasse no Corpo de Bombeiros.
“Foi só alegria. Sempre a corporação do Corpo de Bombeiros foi bem vista pelo povo, a população. Foi uma satisfação muito grande para os meus pais e depois outros parentes também entraram”, conta o hoje membro da reserva do CBMCE.
Os irmãos trabalharam juntos durante cinco anos, antes que Edmilson ingressasse na Casa Militar do Governador do Ceará. Com mais de 30 anos de serviço cada, ambos foram inspiração para a geração seguinte, representada pelos filhos de Edmilson, Kairo e Kleber Pinto, que também se tornaram bombeiros.
Ernando chegou a servir junto aos sobrinhos, e lembra que ele e o irmão fizeram questão de acompanhar o crescimento deles, com conselhos e apoio diários. Essa união foi essencial no momento de maior dificuldade da família dentro da corporação, quando Kairo faleceu durante uma ação de resgate.
“Foi um momento difícil. A gente tinha o apoio um do outro. Quando ele faleceu, ficou aquele vagão. Mas ninguém baixou a cabeça e continuamos a nossa missão. Missão árdua, difícil, perigosa… corremos muito risco de vida para salvar vidas alheias”, pontua.
Ao todo, sete membros da família já passaram pelo CBMCE. Além dos quatro citados, outros dois primos de Ernando e mais um sobrinho compuseram o quadro dos bombeiros nesses 60 anos de ligação.
A expectativa é de que a tradição continue nos próximos anos, já que a filha de Ernando, Ana Melissa, 22, deve prestar concurso para ingressar na corporação.
“Tem mais alguns da família que pretendem fazer concurso e prestar serviço à corporação. Inclusive tenho uma filha que provavelmente irá fazer o concurso dos bombeiros agora próximo. Ela está querendo, está se preparando muito para fazer”, conclui o sargento e pai orgulhoso.
Se esses 100 anos marcaram quem vive o CBMCE, há também inúmeras histórias de quem está vivo graças ao trabalho da corporação. Com resgates em situações adversas, os bombeiros carregam o lema de salvar a família e o patrimônio dos cearenses.
Um dos atos de bravura desses agentes aconteceu e foi noticiado pelo O POVO em 1987. Na ocasião, uma dupla de bombeiros militares salvou dois primos de um incêndio residencial no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza.
Luís Carlos Veras, à época soldado do CBMCE, lembra que estava no sofá de casa, após 24 horas de serviço, quando foi avisado que uma casa da rua estava pegando fogo.
A fadiga não impediu que ele e o soldado Romão, outro bombeiro que passava pela região, salvassem Thiago e Roniele, dois primos de 10 meses e 4 anos de idade, respectivamente, que brincavam em meio às labaredas.
“A gente mesmo tendo cansaço mental, cansaço físico… Se você for solicitado para qualquer tipo de ocorrência, você tem que ir. Aquilo está no sangue da gente, salvar vidas. Tanto que o slogan dos bombeiros é ‘vidas alheias, riquezas salvar’. Foi isso que aprendemos no recrutamento”, afirma Veras, hoje major da reserva.
Passados 38 anos desde o acidente, a história de Roniele e Thiago ainda é contada entre as gerações da família, com tom de gratidão pela rápida atuação dos soldados à época.
“Penso bastante [naquele dia]. Se eles não tivessem chegado nos segundos iniciais que começou o incêndio, eu não estaria aqui para contar a história. Nem eu, nem meu primo Thiago”, conta Roniele Rocha, 42.
Para muitos, o resgate mais emblemático nesses 100 anos é o dos sobreviventes do desabamento do edifício Andréa, em 2019. O episódio é até hoje lembrado por bombeiros e civis que viveram a ação, devido à sua alta complexidade.
As buscas por sobreviventes e pelos corpos dos falecidos se arrastaram entre a terça-feira e o sábado daquele mês de outubro, em um trabalho exaustivo de 103 horas de tensão.
“Sem pensar muito, nos 34 anos de serviço, a ocorrência que mais me marcou, pela sua intensidade, pela sua dor, foi o desabamento do edifício Andréa. [...] De pronto avisei meu chefe que iria para essa ocorrência. Revezamos vários turnos e até o sábado estive lá. [...] Realmente foi uma ocorrência que marcou a todos nós bombeiros”, remonta o coronel Wagner Maia.
Um dos resgatados foi Davi Sampaio, 28, que permaneceu consciente e em contato com os bombeiros durante o salvamento. O arquiteto remonta o cuidado dos militares, que lhe avisavam de cada passo da operação, e agradece a bravura de quem arrisca a própria vida para salvar pessoas.
“Já respeitava muito essa profissão e hoje em dia, após o acidente, admiro muito mais e respeito muito mais. Realmente, é uma coisa brilhante você botar sua vida em jogo praticamente todo dia em prol de salvar o máximo de vidas possível. É um ato incrível. É heróico”, pontua.
Davi foi um dos sete resgatados pelos mais de 500 voluntários em meio aos escombros. Apesar dos esforços, nove pessoas ainda morreram no acidente, que ficou conhecido como uma das maiores tragédias de Fortaleza.