Logo O POVO+
Ambiente virtual: denúncias de crimes contra crianças e adolescentes crescem no Ceará
Reportagem

Ambiente virtual: denúncias de crimes contra crianças e adolescentes crescem no Ceará

Conforme o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, 24 denúncias envolveram violações de liberdade sexual das vítimas
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Exposição precoce às redes sociais facilita o acesso de criminosos às crianças e adolescentes
 (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Exposição precoce às redes sociais facilita o acesso de criminosos às crianças e adolescentes

O Ceará registrou aumento de 93,7% nas denúncias de crimes contra crianças e adolescentes em ambiente virtual, entre 1º de janeiro e 17 de agosto de 2025. Números, do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos (MDH), passaram de 32 para 62 no período. Do total deste ano, 24 denúncias envolvem violação de liberdade sexual das vítimas.

Os dados revelam uma realidade exposta em vídeo compartilhado pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, que ganhou repercussão nacional ao colocar em evidência a pauta da superexposição de crianças e adolescentes nas redes sociais e o impacto desse fenômeno na facilitação de crimes virtuais contra esse público.

Intitulado "adultização", o conteúdo já soma mais de 48 milhões de visualizações na plataforma.

Do dia 1° ao dia 18 deste mês, o Canal Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, que é mantido pela Organização não Governamental (ONG) SaferNet, recebeu 6.278 denúncias anônimas sobre conteúdos digitais envolvendo suspeitas de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes

Dessas queixas, 3.246 ocorreram depois do dia 6, data em que o vídeo produzido por Felca foi publicado no Youtube. Quantitativo corresponde a 52% (mais da metade) do que foi contabilizado no mês.

 

Conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS) informou ao O POVO, entre janeiro e julho de 2025, foram registradas 12 denúncias relacionadas a crimes de pornografia infantil e perseguição em ambiente virtual, previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal (CP).

No mesmo período do ano anterior, conforme a pasta, oito denúncias foram registradas. Em todo o ano de 2024, foram contabilizadas 24 denúncias. Os dados foram levantados pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), a partir dos registros feitos em delegacias da Polícia Civil do Ceará (PC-CE).

Ainda de acordo com a SSPDS, entre 30 de abril e 30 de maio de 2025, a Operação Caminhos Seguros resultou em 111 capturas de suspeitos de envolvimento em crimes relacionados à exploração sexual de crianças e adolescentes. As prisões ocorreram em diversos municípios do Ceará, em alusão à campanha de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Centro estadual de recebimento de denúncias dos Disque 100 e 180, o Observatório de Indicadores em Direitos Humanos, responsável por receber, encaminhar e acompanhar os casos de violação dos Direitos Humanos no Ceará, registrou, de 2021 a 2025, 108 denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes em âmbito virtual, de acordo com a Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih).

Presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDDCA - OAB/CE), Erivânia Bernardino avalia que a discrepância entre os números fornecidos pelos órgãos indica uma ausência de normatização ou estratificação no que se refere à categorização dos dados, o que implica em uma subnotificação de crimes e compromete o diagnóstico real do cenário de violência, assim como a criação de políticas públicas.

"A falta de padronização de dados é também a falta de padronização de regulamentação. Se nós formos observar, o ECA é de 90, ele é essencial, é uma lei que é um marco civilizatório para todos nós e é essencial que nós tenhamos que proteger, defender e fazer com que ele tenha mais modernidade nesse ponto (...) O ECA ainda fala de fita cassete, que é bem distante da realidade que nós temos hoje. De revistas pornográficas, é o que o ECA fala", destaca.

"No que ele vai falar de internet, quando ele fala nos crimes, ele não traz a devida regulamentação de faixa etária e nem a de parentalidade positiva (...) Se eu não tenho pais que entendem que o ambiente virtual é um ambiente extremamente sensível e perigoso, se eu não tenho uma sociedade que está com os olhares abertos para isso, eu faço com que os dados, as denúncias, não sejam a concretude da realidade", pontua. 

Ainda segundo Bernardino, há subnotificação em todas os aspectos de violência contra crianças e adolescentes. "Há uma subnotificação para universalização de dados que mostrem que, a cada criança violentada nesse ambiente familiar, de 7 a 11, a depender do cenário, não chegaram ao conhecimento do poder público. Não é muito diferente no ambiente virtual, porque demonstra mais distanciamento (...) Até a forma de enquadrar quais desses crimes estão relacionados a essa amplitude da palavra, dessa categoria 'adultização', é difícil", destaca.

A advogada defende a relevância do projeto de resolução que dispõe sobre a criação de Núcleo de Apoio Especializado à Repressão a Crimes Cibernéticos, de autoria do deputado estadual Guilherme Bismarck (PSB), voltado para a capacitação de conselheiros(as) na identificação, prevenção e combate à adultização precoce, exploração sexual e demais ilícitos virtuais envolvendo crianças e adolescentes.

Bernardino destaca a importância dos conselheiros tutelares atuarem no monitoramento de suspeitas ou efetivação de violência contra crianças e adolescentes em ambiente virtual.

Atualmente, o texto está aguardando parecer da Procuradoria da Casa, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), caso aprovado irá para a Comissão de Constituição, Justiça e Redação. 

Legislação precisa acompanhar mundo contemporâneo

Cientista político e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), vinculado ao Departamento de Ciencias Sociais e ao Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luiz Fábio Silva Paiva observa que a ausência de normatização entre os dados resulta de legislações estáticas, que não acompanham a dinamicidade das transformações do mundo contemporâneo

"Ainda temos legislações precárias e, por isso, a gente ainda vive hoje essa discussão, esse debate, em  torno de atividades que se desenvolvem na internet, com o uso de computadores e de aplicativos, com o uso de recursos digitais, e que de certa forma não encontram, na lei, um amparo. A gente pressupõe que essa atividade fere a legislação, mas quando a gente busca essa legislação, não se tem uma discriminação clara dessa atividade no interior desses fluxos digitais", argumenta.

De acordo com o pesquisador, há uma dificuldade na identificação de atividades criminosas praticadas em ambientes virtuais, evidenciada pela divergência das informações. "Eu tenho, de fato, uma precariedade da informação, o que é preciso ser discutido pelos atores estatais e chegar a determinados padrões. A ideia de padronização é justamente ver essas diferentes organizações identificando o crime e trabalhando com uma base de dados em comum", defende.

Combate aos crimes virtuais esbarra em questões tecnológicas e legais

Titular da 91ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, Guilherme Soares ressalta que as principais dificuldades na identificação e responsabilização dos criminosos cibernéticos incluem o uso de identidades falsas, Rede Virtual Privada (VPN) e endereços de IPs Número que indica o local de um determinado equipamento (normalmente computadores) em um rede, como a Internet.  (Internet Protocol) dinâmicos.

O promotor avalia ainda que a legislação brasileira é mais permissiva em comparação a outros países, exigindo ordem judicial para acesso a informações importantes, o que dificulta e atrasa investigações.

“A legislação precisa endurecer principalmente em relação às plataformas, às operadoras, porque daí para quando se constata alguma situação que vai derrubar o perfil, uma página, já tem acontecido coisas gravíssimas até que chegue a esse ponto. A gente precisa constatar isso de uma forma mais prematura, para que as coisas não cheguem ao ponto de ter que vir um youtuber fazer uma matéria denunciando”, pondera.

Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), Daniel Girão relata a dificuldade de cooperação investigativa dos aplicativos que não possuem representantes legais no Brasil. Ele também pontua os desafios ligados às práticas de crimes virtuais a partir da utilização de ferramentas de inteligência artificial.

“A nossa legislação não impõe um prazo curto e rígido para os provedores estrangeiros cumprirem ordens judiciais, quem impõe é o juiz. Muitas vezes, eles (provedores) não respondem dentro desse prazo. Outra brecha é que não há previsão expressa no Código Penal, nem no ECA, sobre deep fake Tecnologia de manipulação digital que permite a criação de vídeos e fotografias falsas, incluindo a troca de rostos, além da simulação de vozes e de ações. para criar pornografia infantil”, alerta.

Girão aponta que redes privadas como WhatsApp, Telegram e Signal, que utilizam criptografia de ponta a ponta, dificultam a interceptação. Embora a criptografia proteja direitos fundamentais, ele argumenta que ela "não pode assegurar a impunidade de crimes, principalmente crimes violentos contra crianças e adolescentes”.

Em relação aos crimes que violam a liberdade sexual de crianças e adolescentes, Soares e Girão explicam que a legislação brasileira não faz distinção específica se o crime de estupro de vulnerável é cometido em ambiente virtual ou presencial, prática que pode envolver ameaça.

“O que houve foi uma evolução da jurisprudência para reconhecer que a prática de atos libidinosos não necessariamente necessitam de contato físico. E por conta desse entendimento jurisprudencial, passou-se a aceitar que o ato libidinoso pudesse também ser praticado por meio virtual, sem o contato físico entre vítima e abusador”, explica o promotor.

A SSPDS reforça, em nota, a importância da denúncia, que pode ser realizada por meio de Boletim de Ocorrência ou pelo Disque-Denúncia. Essas informações, conforme a secretaria, são fundamentais para direcionar ações ostensivas, investigativas e de formulação de políticas públicas de prevenção aos crimes.

Assessora jurídica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), Paloma Luciano avalia que o crescente número de casos de crimes virtuais cometidos contra crianças e adolescentes pode estar ligado a uma exposição cada vez maior e precoce das vítimas em ambientes virtuais.

Dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024, revelam que 93% da população brasileira entre 9 a 17 anos é usuária de internet no país, o que representa cerca de 24,5 milhões de crianças e adolescentes. Desse total, 83% informaram possuir perfis em redes sociais. O celular se consagra como o principal dispositivo de acesso à internet para 98% desse público.

Paloma Luciano destaca a importância do ECA para a garantia de direitos das crianças e adolescentes, incluindo a proibição da produção e da reprodução de conteúdos de cunho sexual desse público em ambiente virtual.

“O limite entre o público e o privado é cada vez mais tênue. Você vai observar muitas vezes os próprios responsáveis por essas crianças e adolescentes expondo as suas vidas ali nas redes sociais. Às vezes, de fato, de uma maneira até ingênua, como uma forma de compartilhar momentos de afeto ali em família; mas muitas vezes esse conteúdo pode ser desvirtuado”, alerta.

Adultização e exposição precoce às redes sociais facilita o acesso de criminosos às crianças e adolescentes

Doutora e professora do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (FACED/ UFC), Antonia Lis Martins destaca como o ambiente digital expõe crianças e adolescentes a crimes virtuais e a outros perigos, como a “adultização infantil”.

De acordo com a especialista, a adultização é entendida como um processo de aceleração de etapas, em que a criança deixa de vivenciar experiências próprias da infância e passa a ter referências e a se comportar como um adulto.

Nas redes sociais, o fenômeno da adultização expõe outras questões, como a produção midiática e a comercialização da imagem da criança.

"No caso dos crimes virtuais, eles têm acontecido principalmente por uma questão da cooptação. Essa cooptação acontece através das plataformas, então a gente não vê (...) A medida que essa cooptação acontece, a gente vê o aumento da produção e do compartilhamento de material de abuso infantil.", ressalta a pedagoga.

LEIA MAIS | Adultização: 'Vídeo de Felca conseguiu unir de Érika Hilton a Nikolas Ferreira e pauta cobrança por responsabilização das redes'

 

Conforme o Guia Sobre Usos de Dispositivos Digitais para crianças e adolescentes, publicado este ano pelo Governo Federal, recomenda-se que crianças até 2 anos não tenham acesso às telas e aparelhos digitais. Até os 12 anos, a orientação é para que esse público não possua aparelhos próprios e que a utilização seja feita sob acompanhamento familiar.

De acordo com Martins, essa exposição precoce pode prejudicar o desenvolvimento social, cognitivo e motor. A especialista estende o alerta à adolescência, reiterando a importância de adiar a decisão de permitir o acesso de crianças e adolescentes ao ambiente virtual.

“Tem que ficar claro que rede social não foi feita para criança. Então, não é a criança que decide se ela vai ter (...) Quem vai observar isso são os responsáveis. O limite é importante, porque o não também é pedagógico”, alerta a especialista.

A pedagoga argumenta em defesa da urgência de se discutir a regulamentação de plataformas digitais, que atualmente não são responsabilizadas pelo conteúdo criminoso que circula nesses ambientes.

“A gente precisa fazer esse debate, trazer o letramento digital para as refeições, para as escolas (...) Tem que ter campanhas, mais do que nunca, porque o adolescente ele precisa saber sobre os riscos que está correndo ao acessar o ambiente virtual, e como usar a internet de forma segura”, defende.

Na casa da família da jornalista Jussara Holanda, 42, a discussão sobre esse assunto sempre acontece. Mãe de quatro filhos - Juá, de 14 anos; Maria, de 13 anos; Luanda, de 12 anos; e Del, de 10 anos - a comunicadora revela que optou por não disponibilizar aparelhos telefônicos próprios para os filhos. 

Aos finais de semanas, as crianças e adolescentes podem acessar à internet e assistir filmes pelo computador, mas com supervisão do conteúdo que está sendo consumido. Aos 14 anos, o filho mais velho até já possui um perfil online no Instagram, mas o uso é limitado ao aparelho celular da mãe, em que o acesso das contas fica vinculado. Segundo Holanda, todos esses acordos são conversados e discutidos com os filhos, já que "não tem como a gente proibir tudo".

"O maior desafio sempre são os outros. Por exemplo, os amigos têm celular. Às vezes eu vou buscar meu filho no Jiu-Jitsu e ele tá assistindo coisas que o amigo assiste no celular (...) Então, a gente não tem como controlar isso, mas a gente tem como conversar sobre isso", ressalta. 

Na avaliação da jornalista, a garantia da proteção de crianças nas redes sociais deve passar pela proibição de acesso desse público. "Acho que a criança tem que socializar no ao vivo e a cores. Então, é uma coisa que a gente evita ao máximo", explica. 

"No decorrer das coisas que vêm acontecendo, quanto mais a gente têm informação, menos eu quero que eles tenham acesso. Só que não tem como colocar em uma bolha e impedir, então a gente deixa o acesso no notebook, olhando séries", pondera.

E finaliza: "Eu acho que deveria existir algo que não deixasse com que as crianças que têm celular tivessem o acesso livre. Eu acho que deveria existir um bloqueio, que os pais colocassem, para que não tivessem realmente o acesso; a não ser para coisas de pesquisa, enfim. Porque realmente é um mundo, você consegue acessar o mundo, mas é muito perigoso". 

Confira dicas para proteger crianças e adolescentes no ambiente virtual

 

 

 

O que você achou desse conteúdo?