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A evolução da violência no Ceará através das lentes do LEV-UFC
Reportagem

A evolução da violência no Ceará através das lentes do LEV-UFC

Nos últimos 31 anos, o Laboratório de Estudos da Violência se dedicou a pesquisas que ajudaram a desvendar as nuances da segurança pública no Ceará
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Prédio do Centro de humanidades Área - III da UFC, onde está localizado o Departamento de Ciências Sociais e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia, aos quais o LEV está vinculado (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR Prédio do Centro de humanidades Área - III da UFC, onde está localizado o Departamento de Ciências Sociais e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia, aos quais o LEV está vinculado

Da pistolagem ao "Novo Cangaço", das gangues urbanas às facções criminosas, dos Distritos-Modelo ao Ceará Pacífica, de um dos estados menos violentos para um dos mais violentos do País. Em três décadas, o cenário da segurança pública mudou bastante no Estado. E um espaço privilegiado para acompanhar essas transformações foi e ainda é o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), grupo de estudos vinculado ao Departamento de Ciências Sociais e ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Fundado em 1994 pelo sociólogo e professor da UFC César Barreira, o LEV, desde então, proporcionou um ambiente de pesquisa e aprendizagem que levou à feitura de artigos, dissertações, teses e livros que documentaram processos cruciais da criminalidade violenta no Ceará.

O primeiro grupo de estudos específicos sobre a criminalidade e violência no Ceará surgiu a partir dos estudos de Barreira sobre a conflitualidade no campo, que o levaram a abordar o fenômeno da pistolagem. Era um momento em que o então governador do Estado, Tasso Jereissati (PSDB) — que assumiu pela primeira vez o Ceará em 1987 — deflagrava uma campanha contra os pistoleiros, encarados à época como um dos principais problemas em solo cearense. Ainda era nítido no imaginário cearense a lembrança da chacina ocorrida em 1983 em Alto Santo, no Vale do Jaguaribe, que teve como vítimas o então prefeito do município, João Terceiro de Sousa; a esposa dele, Raimunda Nilda Campos; o motorista do casal, Francisco de Assis; e o policial militar João Odeon — crime pelo qual foi acusado Idelfonso Maia Cunha, o Mainha.

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Outro caso marcante, relembrado pelo próprio César Barreira, foi o assassinato de três trabalhadores rurais em Trairi (hoje, município da Região Metropolitana de Fortaleza) em 1986. Manoel Veríssimo Neto, Francisco Veríssimo Carlos e Raimundo Veríssimo Mano eram posseiros e se negavam a deixar a propriedade rural, que vinha sendo preparada para o plantio. O autor do crime, José Gilson, foi, em seguida, assassinado por agricultores.

Além disso, outros casos de repercussão no restante do País vinham sendo registrado, sendo o mais destacado deles, cita Barreira, o que vitimou o ambientalista Chico Mendes, em 1988, no Acre. Barreira passou a estudar a questão da pistolagem no pós-doutorado, feito por ele em 1989 e 1990, na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, o que, anos depois, acarretou na publicação do livro "Crimes por encomenda: a pistolagem no cenário brasileiro".

Quando voltou ao Brasil, ele conta que passou a se aproximar dos principais estudiosos da violência no País, incluindo os professores Sérgio Adorno e Paulo Sérgio Pinheiro, do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP). Na UFC, passou a procurar saber como poderia estudar um grupo de estudos da temática.

“E, aí, eu, na época, comecei a ir para as Pró-Reitorias e falava, de uma forma muito informal: ‘pessoal, eu tô querendo formar um grupo lá na Sociologia, mas como é que eu faço?’”, relembra César. “Eu não queria nada muito pesado. Eu não queria burocracia. Eu queria uma coisa bem leve mesmo, assim que a gente pudesse ‘acabou o projeto de pesquisa, acabou o grupo também’. Aí, alguém falou: ‘César, o grupo mais efêmero que pode ter é laboratório, porque o laboratório existe na medida que tem pesquisa sobre aquela temática. Se acabou a pesquisa, o grupo desaparece’”.

Apesar disso, a demanda foi grande e o efêmero tornou-se duradouro. Um dos primeiros trabalhos demandados ao LEV referia-se à violência no trânsito de Fortaleza e teve como proponente a Arquidiocese de Fortaleza. Já nessa pesquisa estava presente aquele que viria a ser um dos principais autores do LEV, o também professor do curso de Ciências Sociais Leonardo Sá.

Após a Arquidiocese, foi a vez do Unesco acionar o LEV, em um momento em que o País estava chocado com o assassinato do indígena Galdino Jesus dos Santos, em 1997, morto após um grupo de jovens atear fogo enquanto ele dormia em Brasília (DF). O projeto resultou no livro “Ligados na galera: juventude, violência e cidadania na cidade de Fortaleza”. Em 1998, foi a vez do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), resultando no livro “À espera de justiça: assassinato de crianças e adolescentes na Grande Fortaleza”. 

O LEV e as políticas de segurança

Os anos 1990 foram de consolidação da sociologia da violência no Ceará, conforme o sociólogo Thiago Vasconcelos, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que se dedicou a estudar as produções desse campo no Estado. No artigo "A Sociologia da Violência no Ceará, ontem e hoje: desafios e perspectivas", ele divide os pesquisadores da área em três gerações". Em uma primeira geração de pesquisadores, a figura de César Barreira aparece como um dos "chefes de escola", ao lado de pesquisadores como Glória Diógenes, Geovani Jacó e Glaucíria Brasil, da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Além dos temas da violência do campo, Vasconcelos observa que, a partir dos anos 2000, começa a se formar uma "estruturação de redes de interlocução especialmente entre universidades e polícias".

É o momento em que, diante da escalada da violência no Ceará e crises mesmo dentro dos próprios aparatos de segurança, o Governo do Estado passa a lançar diversos programas para tentar solucionar a problemática, proporcionando pesquisas também sobre as novas formas de atuação das Forças de Segurança cearenses. Para César, a descontinuidade tem sido uma das marcas das políticas de segurança pública no Estado, embora o problema não seja só cearense. O sociólogo afirma que mesmo projetos que, em sua opinião, são bem elaborados sofram com o imediatismo e as desvirtuações posteriores. No caso dos Distritos-Modelo, implantados a partir de 1997, ele elogia a proposta de aproximar e integrar os trabalhos dos policiais civis e militares. No caso do Ronda do Quarteirão, as políticas de aproximação com o cidadão. Já no Ceará Pacífico, ele cita, a fusão de vários projetos exitosos no Brasil e no Exterior — o LEV participou da formulação do programa ao lado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Entre as políticas adotadas no Estado a partir dos anos 2000, uma em especial traz a marca do LEV: a Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp). Criada em 2010, a Aesp proporcionou centralizar, em um mesmo espaço, as formações dos integrantes das Forças de Segurança, até então, feitas separadamente. Barreira foi diretor da academia em 2011 e 2012.

Atualmente, o LEV e outros grupos de pesquisa do Estado participam do programa Cientista-Chefe, desenvolvendo estudos para a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). E o laboratório ainda lidera o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Violência, Poder e Segurança, rede que reúne 15 grupos de pesquisa de todo o Países que atuam na área.

Gangues, facções, Novo Cangaço, golpes… Transformações na segurança do Ceará

A partir dos anos 2000, os estudos produzidos pelo LEV ganharam novas abordagens, tanto a partir da adesão de novos pesquisadores ao grupo, quanto a partir do advento de novos fenômenos criminosos. No que diz respeito ao número de homicídios, o Estado viu os números explodirem: foram 17 anos consecutivos de crescimento até 2015 e o Ceará passou a figurar como um dos locais mais violentos do Brasil.

Para explicar esse fenômeno, as autoridades de segurança recorriam à questão das drogas e das gangues. As dinâmicas da violência nas periferias de Fortaleza estiveram na mira das pesquisas do professor Luiz Fábio Paiva, que assumiu a coordenação do LEV substituindo o professor César Barreira. Em sua dissertação de mestrado, Contingências da violência em um território estigmatizado, publicada em 2007, por exemplo, ele abordou a violência no bairro do Bom Jardim. Mas foi o artigo Aqui não tem Gangue, tem Facção: as transformações sociais do crime em Fortaleza o trabalho acadêmico de Paiva mais citado, cujo tema é a ascensão das facções em território cearense.

“Em geral, em minhas pesquisas no bairro de Bom Jardim, em meados dos anos de 2000, as gangues e os traficantes locais exerciam pouca influência na vida comunitária, exigindo apenas o silêncio das pessoas para que suas atividades não fossem prejudicadas”, narra um dos trechos do artigo, que, em seguida, discorre sobre como, a partir da égide das facções, o controle do cotidiano por parte de criminosos passou a ser bem maior. “Lideranças comunitárias, educadores sociais e militantes políticos, no entanto, relatam as complexas negociações para qualquer atividade no território, sendo necessário muito cuidado para que os frágeis laços de confiança não sejam rompidos".

“Facções, a gente entende aqui no laboratório não apenas como um fenômeno do crime, mas como um fenômeno social”, afirma Paiva. “Um fenômeno social que consiste na construção de uma associação entre pessoas envolvidas em práticas criminosas, mas que busca também ali uma orientação moral, política, cultural, que faz com que esses grupos funcionem muitas vezes como comunidades. Tem uma associação, uma rede de intercâmbios, de colaborações, que passam a funcionar, inclusive, independentemente dos seus agentes. Mesmo com as prisões, com as mortes de pessoas vinculadas às facções, elas continuam existindo, acabam funcionando grupos resilientes à própria ação do Estado”.

Outra cronista da ascensão das facções no Estado é a professora Jânia Perla Aquino, autora de artigos como A "guerra das facções" no Ceará (2013-2018): socialidade armada e disposição viril para matar ou morrer, escrito em conjunto com Leonardo Sá. Entre as questões trazidas por Aquino está a forma como, a partir de 2010, facções que até então se contentavam com a atuação no campo da distribuição das drogas passaram a disputar espaço no mercado de varejo. “Durante os meados dos anos 2010, o PCC (Primeiro Comando da Capital) começa a utilizar a orla do Ceará para escoar a cocaína e a maconha skunk trazidas da Colômbia para mandar para os mercados da Europa e da América do Norte”, exemplifica a professora. Essa expansão do PCC, mas também do Comando Vermelho (CV), detalha, teve como resposta a criação de uma facção local, a Guardiões do Estado (GDE), que, a partir de 2017, deu início a um conflito que fez explodir os números de homicídios.

Jânia, porém, dedicou seu mestrado e doutorado ao estudo dos assaltos a banco. Ao observar como os jornais passavam a descrever com mais frequência os ataques “cinematográficos” às instituições financeiras, ela passou a analisar como esses grupos se constituíam, os recursos que lançavam mão para o cometimento desses crimes, entre outros. Com isso, ela pode documentar as transformações ocorridas nos roubos, que saíram de ações como as do “sapatinho” (o sequestro de gerentes de bancos ou de seus familiares como meio de ter acesso aos cofres das agências) para as do chamado “Novo Cangaço”, o domínio de cidades, principalmente, no Interior, que chegam, inclusive, a atacar, diretamente, os destacamentos policiais. Para a professora, os estudos de crimes contra o patrimônio no Brasil ainda são diminutos na comparação com os crimes contra a vida e os relacionados ao tráfico de drogas. Para preencher essa necessidade, ela, atualmente, se dedica, por exemplo, a pesquisas que abordam o aumento dos casos de golpes e estelionatos digitais a partir, sobretudo, da pandemia de Covid-19.

Para Barreira, o grande mérito do LEV são as pesquisas de cunho qualitativo, em especial, as etnografias. Paiva concorda: “Uma coisa é explicar que Fortaleza é uma cidade entre as mais violentas, porque o índice de violência dela é X”, ele exemplifica. “É importante, eu preciso desse dados, mas eu preciso também explicar porque é que esse dado se torna possível”.

Conheça o LEV a partir de algumas de suas principais produções

O POVO pediu aos entrevistados para listar alguns dos principais estudos produzidos pelo LEV desde a sua criação. Confira as obras mais citadas:

Crimes por encomenda a pistolagem no cenário brasileiro (1998), livro de César Barreira.
Em um dos estudos seminais sobre a temática, o professor César Barreira debruçou-se sobre o submundo dos assassinatos de aluguel, destrinchando as características da prática a partir, por exemplo, de um perfil de Idelfonso Maia Cunha, o Mainha, entrevistado sob a manta de um pseudônimo.

— Príncipes e Castelos de Areia — Um Estudo da Performance nos Grandes Roubos (2010), livro de Jânia Perla Aquino
A partir de entrevistas a assaltantes de banco e outras fontes, o trabalho se detém na forma como os assaltantes de banco se estruturam para planejar e efetuar os roubos. As principais técnicas adotadas, as formas como as redes de assaltantes são feitas e desfeitas e os pontos de encontro entre os mercados legais e ilegais são algumas das questões abordadas no livro.

— Os Filhos do Estado: Auto-Imagem e Disciplina na Formação dos Oficiais da
Polícia Militar do Ceará (2002), de Leonardo Sá
Em sua dissertação de mestrado, Leonardo Sá analisou o processo de formação dos alunos do curso de oficiais da PM do Ceará. “Destarte, a exposição se desenrola na forma de uma descrição da transmissão do equipamento conceitual, dos valores e das disposições dos oficiais da PMCE para os seus neófitos”, como escreveu o professor na introdução do trabalho.

— Guerra, mundão e consideração: Uma etnografia da socialidade armada em Fortaleza (2010), de Leonardo Sá
Em uma etnografia na região da comunidade do Serviluz, em Fortaleza, no final dos anos 2000, Leonardo Sá debruçou-se sobre os valores e as condutas fomentados pelos jovens moradores do bairro, inclusive daqueles integrantes da “socialidade armada”, como traficantes, assaltantes e homicidas


— “Aqui não tem gangue, tem facção”: as transformações sociais do crime em Fortaleza (2019), artigo de Luiz Fábio Paiva

O artigo traz reflexões sobre as mudanças provocadas no universo criminal e mesmo na sociabilidade, sobretudo, dos moradores das periferias a partir da expansão das facções criminosas no Ceará, que, em meados de 2015, suplantaram as gangues que até então regiam as atividades ilegais no Estado.

— Ligado Na Galera — Juventude, Violência e Cidadania da Cidade de Fortaleza (1999), coordenado por César Barreira
A coletânea surgiu a partir de uma pesquisa contratada pela Unesco, tendo contado com grupos focais e aplicação de questionários com jovens de diversos bairros de Fortaleza. “Nessa pesquisa, teve duas coisas que me chamaram atenção”, diz César Barreira. “Uma é, na pesquisa quantitativa, o número de de jovens que usava a arma de fogo era muito baixo, era, praticamente, 0,000001%, sei lá quanto. Mas eu dizia que um jovem andando armado é preocupante. E a outra, um jovem da periferia disse uma frase que me marcou muito. Ele diz assim: ‘Professor, viver com medo é viver pela metade’”.

— Mulheres que matam: Universo Imaginário do Crime no Feminino (2001), de Rosemary de Oliveira Almeida
A tese aborda crimes praticados por mulheres, entrevistando-as para descobrir “o que é o
crime de morte cometido pela mulher, quem é essa personagem e qual o lugar que ela
ocupa no cenário da criminalidade”, tanto das perspectivas delas próprias, quanto social de
juridicamente.

— Questão de Segurança: Políticas Governamentais e Práticas Policiais (2005), Organizado por César Barreiro, com textos de Domingos Abreu, Glaucíria Brasil e Rosemary Almeida
Contando com entrevistas a agentes de seguranças, visitas aos seus espaços de trabalho e
análise de jornais e documentos oficiais, a pesquisa revisa 15 anos de políticas de
segurança pública no Ceará após a redemocratização do País. As reformas feitas nos
aparatos de segurança são analisadas, sobretudo, principalmente, à luz dos escândalos de
corrupção e violência policial entre o final dos anos 1980 e começo dos anos 2000.

EVOLUÇÃO DOS HOMICÍDIOS NO CEARÁ DESDE 1979: Estado registrou uma curva ascedente nas décadas de 1980, 1990 e, principalmente, 2000, saindo de uma das unidades federativas menos violentos do Brasil para uma das mais violentas(Foto: Infográfico por Luciana Pimenta)
Foto: Infográfico por Luciana Pimenta EVOLUÇÃO DOS HOMICÍDIOS NO CEARÁ DESDE 1979: Estado registrou uma curva ascedente nas décadas de 1980, 1990 e, principalmente, 2000, saindo de uma das unidades federativas menos violentos do Brasil para uma das mais violentas

 

 

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