A ausência de uma rede de esgoto molda o cotidiano de qualquer cidade. Corpos de água, como rios e canais, viram depósitos de excrementos sanitários e muitos moradores buscam soluções artesanais para resgatar, ainda que minimamente, o sentimento de dignidade.
Conforme a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua: "Características Gerais dos Domicílios e dos Moradores, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)", a por alternativas é mais comum do que se pode imaginar.
Divulgado em agosto, o levantamento mostrou que em 2024 o Ceará tinha 3,3 milhões de moradias particulares permanentes, sendo 90,8% delas casas e 9,2% apartamentos. Do total, cerca de 779 mil (24,1%) descartavam seus excrementos em locais como fossa rudimentar, valas, rio, lago ou o mar.
No ranking dos estados Brasileiros, a unidade federativa aparece em quinta colocação quanto ao número de casas que utilizam desses outros meios para esgotamento, ficando atrás da Bahia (1.112.000), do Pará (962 mil), de Minas Gerais (909 mil), e do Maranhão, que tem 827 mil domícilios utilizando da prática.
Para aportar de forma correta esses dejetos, existe a rede de esgoto, que é um sistema de tubulações projetado para coletar, transportar e tratar águas residuais. No entanto, somente 54,8% dos domícilios cearenses tinham acesso a esse sistema no ano passado, ou a uma fossa séptica que fosse ligada à rede.
No balanço, é possível também ver dados de municípios brasileiros. Fortaleza, por exemplo, tinha em 2024 um total de 26 mil residências que usavam meios inadequados para depositar dejetos. No comparativo das capitais nordestinas, Cidade fica atrás apenas de: Recife (123 mil), Maceió (74 mil) e Teresina (28 mil).
Números jogam luz não apenas na falta de esgotamento adequado, mas no impacto social que isso causa. De acordo com Michael Barbosa, doutor em Engenharia Sanitária, o esgotamento é "mais do que uma infraestrutura técnica", sendo um direito básico de cidadania e, portanto, deveria ser universal.
"A população que tem acesso ao esgotamento garante saúde, segurança e bem-estar. O serviço está ligado diretamente à dignidade humana. Quando uma pessoa dispõe de coleta de tratamento de esgoto, ela vai ter ali assegurado um ambiente limpo, livre de riscos a saúde", aponta o especialista.
"Quando as comunidades são privadas do serviço de esgotamento sanitário, é basicamente um processo de desumanização, essas pessoas passam a conviver diariamente com esgoto a céu aberto, geração de odores, insetos, contaminação da água. É como se as vidas dessas pessoas fossem consideradas menos valiosas, menos dignas do que as que tem acesso a esgotamento sanitário", destaca ainda.
Michael Barbosa, que é também professor e pesquisador do Laboratório de Ciências do Mar, da Universidade Federal do Ceará (Labomar/UFC), aponta que essa prática de lançar o esgoto diretamente em corpos de água é muito comum em Fortaleza e se torna uma ameaça a sáude pública e à natureza.
De acordo com o especialista, dejetos possuem impurezas que podem contaminar, por exemplo, a carne do peixe do ambiente aquático-marinho que recebeu esse esgoto, como rios e demais meios aquíferos.
"A gente tem outros problemas ambientais, como a diminuição do oxigênio dissolvido na água, causado pelo excesso de matéria orgânica proveniente do esgoto. Isso acaba diminuindo o oxigênio da água e aí o peixe vai morrer, outros organismos que precisam de oxigênio vão morrer. A gente também tem um problema da eutrofização, né? Que é o excesso de nitrogênio fóssil (...) Que causa uma série de problemas ambientais em cadeia, causando também diminuição de oxigênio", destaca Barbosa.
Especialista pontua ainda que esse esgoto pode causar danos à saúde da população, uma vez que ele não passa por tratamento adequado para retirar suas impurezas. "Quem entra em contato com aquela água, independentemente do contato, se vai tomar banho com aquela água, se vai ingerir aquela água, tem um risco de contrair doenças de veiculação hídrica (...) doenças de pele, doenças gastrointestinais", diz.
Além disso, profissional também pontua que mesmo as alternativas artesanais buscadas podem ser prejudiciais. Em relação às fossas rudimentares, por exemplo, o professor explica que esse tipo de estrutura se trata geralmente de "um buraco cavado no chão", com pouco mais um metro de profundidade.
Nesse sentido, todo material produzido na residência, seja de vaso de pia ou sanitário, é coletado por uma tubulação que tem como destino final a fossa. "Esse esgoto ele cai direto no solo, então não há nenhum tratamento desse esgoto, ele vai com todas as impurezas que ele tem pro solo, contaminando o solo, a água subterrânea e naturalmente pode vir a contaminar quem consumir essa água. E essa água subterrânea depois ela chega no rio pelo lençol freático e aí tem uma contaminação mais ampla", destaca.
Improviso, Fossas e corpos de água viram alternativas
É fim de tarde no bairro Presidente Vargas, em Fortaleza. Na rua Osório Correia, enquanto o Sol se deita crianças passeiam de bicicleta e passarinhos voam sobre passantes. No meio da via, contudo, um canal contendo água suja se destoa do cenário poético e revela uma problemática antiga na região.
Conforme moradores, é para essa vala que muitas pessoas da área direcionam dejetos vindos de banheiro ou sanitário. Isso porque só há pouco mais de dois anos a rua ganhou uma obra de saneamento, mas ainda assim há queixas de que muitos domicílios ainda não conseguem se ligar à rede de esgoto.
É o caso de Suzy Santos, 52, que há cerca de duas décadas mora no bairro. Ela conta que quando chegou foi preciso mandar construir uma fossa rudimentar em sua casa para comportar dejetos, por não haver outra solução. Ainda hoje ela utiliza o meio, precisando pagar um serviço de coleta dos resíduos.
A moradora conta que chegou a procurar para a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) fazer a ligação, mas foi informada de que era preciso abrir mais bueiros na área. O POVO esteve no local e presenciou pelo menos dois desses tipos de escoadouros estourados, com água suja escorrendo pelo chão.
"É um descaso, né? (...) Os caminhões estavam até vindo, quase todo dia eles vinham esgotar (coletar dejetos), agora parou, não vem mais de jeito nenhum", relata Suzy, dizendo se sentir desassistida e contando que houve uma época em que era possível ver excrementos escorrendo pela rua.
Sua vizinha, Raimunda Abreu, 74, enfrenta uma questão diferente. Há cerca de quatro décadas morando no bairro, a dona de casa conta que chegou a ligar o domicílio à rede de esgoto após obras de saneamento, mas o bueiro estourou e fez o líquido sujo se espalhar pela entrada de sua casa.
Ela conta que devido a esse problema, hoje utiliza duas fossas rudimentares, construídas quando chegou no local, para receber dejetos provenientes do banheiro. "Tenho medo (de ligar) e ficar tudo imundo aqui, na minha porta, já aconteceu (...) Eu fico com medo porque (bueiros) só viviam estourando", frisa.
Estrutura igual tem na casa de Adriano Souza, 52, que mora no local há mais de quatro décadas. Atuando como pedreiro, ele construiu uma fossa em sua residência e na da sua sogra, vizinha a dele.
O morador realizou serviço na época em que chegou no bairro, quando encontrou a região sem acesso a saneamento básico. No entanto, apesar da obra ter chegado ao local ele diz que nem todos os domicílios da região têm acesso a rede. "A maioria das casas não têm nada funcionando ainda", conta.
Na rua Professor Cabral, paralela a Osório Correio, Deusineudo Nogueira, 60, vive situação parecida. O aposentado diz que já foi liberada a ligação para a rede, mas que a infraestrutura não comporta. "Se você ligar não tem retorno, a água fica escorrendo (transbordando) pela tampa de esgoto", pontua.
Alguns moradores relataram ainda que muitas casas têm seus esgotos ligados ao canal, o que faz com que dejetos sejam jogados diretamente lá. Dentro da vala, um líquido verde escuro e objetos como sacolas e até sapatos escancaram a poluição do local, que segundo relatos fica ainda mais visível em dias chuvosos.
Procurada pelo O POVO, a Cagece informou que por meio da Ambiental Ceará estava realizando a desobstrução da rede de esgoto nas ruas Osório Correia e Professor Cabral, garantindo que o serviço seria concluído ainda no mesmo dia. Não houve mais informações sobre demais problemáticas. Já na última terça-feira, 14, a companhia afirmou que concluiu o trabalho e disse que uma equipe retornou ao local e constatou que o serviço está em funcionamento.
Cagece aponta cobertura de 50,96% na rede de esgoto de 151 municípios
O Marco Legal do Saneamento, estabelecido pela Lei Nº 14.026/2020, define como meta que as concessionárias alcancem 90% da população com coleta e tratamento de esgoto até 2033. De acordo com a Cagece, considerando os 151 municípios cearenses onde o órgão opera, o índice total de cobertura dos serviços de esgotamento sanitário avançou de 46% em 2023 para 50,96% em junho de 2025.
"Somente em Fortaleza, o índice atual de cobertura é de 73,33%. Apenas no primeiro semestre de 2025 o percentual saltou de 70,91% em janeiro para 73,33% em junho, demonstrando o ritmo acelerado das obras e investimentos realizados na Capital", pontua entidade em nota.
A Cagece destacou ainda que investiu R$ 303,7 milhões no avanço do esgotamento sanitário no ano passado e que mais R$ 435 milhões estão atualmente sendo investidos em três grandes obras de ampliação dos serviços desse tipo em Fortaleza, que irão beneficiar cerca de 445 mil pessoas em 2026.
Entidade também conta com a Parceria Público-Privada (PPP) estabelecida com a Ambiental Ceará, buscando universalizar o acesso à coleta e tratamento de esgoto na Capital e em outras 23 cidades das Regiões Metropolitanas de Fortaleza e do Cariri. Contudo, há dificuldades que se contrapõem a avanços.
Veroneide Fernandes, gerente de Universalização e Concessão da Cagece, destaca que a adesão dos usuários à rede de esgoto é um dos principais desafios para o cumprimento da meta. Isso porque após instalação, moradores precisam pagar uma tarifa pelo serviço.
Para se ter uma ideia, a representante da entidade pontua que dos clientes atuais do Ceará, que têm a rede, 70% fizeram a ligação. "Quando a rede é instalada e os clientes não fazem a adesão a gente não tem retorno de tudo que foi investido, e quando a gente não tem retorno, os clientes que usam acabam pagando uma tarifa maior", diz.
Para sensibilizar usuários, a Cagece executa o projeto piloto "Esgotamento Legal", que visa direcionar a população a interligar os imóveis às redes de esgoto já disponíveis, reduzindo dessa maneira o descarte irregular dos dejetos em vias públicas e protegendo o meio ambiente e a saúde pública.
Além disso, Veroneide aponta como outra dificuldade a captação de recursos, frisando que o montante disponível não é o suficiente para a cobertura total, mas pontuando que "a companhia está sempre atenta a parcerias e em busca de identificar possibilidades no mercado".
"A gente enfrenta essa escassez de recurso, a burocracia dos bancos, e mesmo quando a gente consegue selecionar projetos, os investimentos não estão disponíveis", diz, destacando também que nem todos os municípios têm a viabilidade de receber instalações de rede de esgoto, sendo preciso adotar outras medidas como fossa séptica ou fosso.
Falta de saneamento tem impacto em crianças e adolescentes
A falta de esgotamento sanitário é uma problemática que pode afetar de maneira ainda mais impactante crianças e adolescentes. Isso é o que aponta o estudo Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil - 2017 a 2023, elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Lançado em janeiro de 2025, o balanço considera todas as dimensões que constituem a pobreza e mostra como isso afeta meninos e meninas do País. Levantamento, baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), analisou as sete dimensões fundamentais: renda, educação, acesso à informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil, além de uma análise sobre segurança alimentar.
Conforme balanço, o número de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos vivendo na pobreza foi de 34,3 milhões em 2017 para 28,8 milhões em 2023 no Brasil. Já o número de pessoas desse grupo que estavam na pobreza multidimensional extrema nesse período passou de 13 milhões para 9,8 milhões. Apesar da queda significativa, documento traz índices preocupantes.
A falta de saneamento básico é um deles. Para se ter noção, no ano de 2023 o percentual de crianças e adolescentes que tinham alguma privação desse tipo de política pública em áreas rurais do Brasil era de quase 92%, enquanto nas áreas urbanas esse índice aproximava-se de 28%.
Estudo do Unicef também traz uma análise por estado, mostrando que em 2023 mais de 1,2 milhão de meninos e meninas, (54% das crianças) viviam sem saneamento no Ceará, sendo 5,9% no nível extremo, com ausência de acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto.
De acordo com entidade, a falta desse tipo de política, assim como o "acesso precário ou inexistente à água" pode prejudicar o desenvolvimento de meninas e meninos em idade escolar. Isso porque leva para esse grupo "o risco de doenças, abandono ou atraso escolar", além de provocar o aumento das desigualdades", diz o documento.