"Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta". Nas primeiras páginas de Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Conceição Evaristo narra seu ofício de cartógrafa da escuta. Mulher negra nascida em uma comunidade da zona sul de Belo Horizonte, a premiada romancista, poeta e ensaísta conta vidas continuamente apagadas da historiografia oficial: vidas como a sua. Autora de obras como Olhos d'água (2014); Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006), a escritora conciliou seus estudos trabalhando como empregada doméstica durante a juventude. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, a artista defende a pluralidade das vozes.
Uma das presenças mais aguardadas da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, Conceição Evaristo integrou o debate Insubmissas Memórias na noite do último sábado, 24. Dona de uma voz serena, mas de uma potência oral inefável, a escritora partilhou com O POVO sobre os desafios ainda enfrentados pelas escritoras negras no País.
O POVO: Quais são os grandes desafios que escritores e escritoras negras enfrentam ainda hoje no Brasil de 2019?
Conceição Evaristo: Os grandes desafios que eu enfrento como escritora são os modos, as maneiras como o imaginário em relação às pessoas negras existe no Brasil. Como escritora e como mulher negra, há um imaginário: às vezes, as pessoas me perguntam "Você dança?". Recentemente, eu estava em uma loja e alguém me reconheceu e veio me abraçar — quando a pessoa saiu, o vendedor perguntou "A senhora dança?" e eu falei "Não, meu filho, eu não danço e nem canto". Uma negra que é cumprimentada de maneira tão efusiva, no mínimo, deveria cantar. Vencer esse imaginário, colocar as mulheres negras como escritoras, como intelectuais, como professoras, como produtoras de pensamento ainda é uma barreira. É criar mesmo outros imaginários. Hoje a gente fala muito de novas narrativas, mas novas narrativas também não surgem se você não tiver outros imaginários. Talvez essa autoria negra, e principalmente essa autoria de mulheres, possa concorrer com isso.
OP: A senhora fala de sua avó, de sua mãe e de sua filha. É possível projetar que a geração de sua filha, de mulheres negras hoje, será diferente?
Conceição: Dá, sim, para projetar uma diferença. No Rio, a gente fala muito que os nossos passos vêm de longe. Eu tenho certeza que a minha mãe, a minha tia, todo um grupo de mulheres que me antecedeu estava em um lugar subalternizado e a partir desse lugar subalternizado essas mulheres foram capazes de criar formas de vivência para nos possibilitar novos caminhos — a minha geração também cria formas de vivências para possibilitar novos caminhos. Do mesmo lado que a gente lamenta a morte dessa juventude negra, principalmente dos meninos, nós temos também hoje uma juventude negra muito aguerrida, muito corajosa, que se afirma positivamente e que cuida dessa estética negra. Essa juventude também está na faculdade, está estudando e tem seus projetos de vida. A gente pensa numa outra possibilidade, agora, sempre afirmando que quem cria os nossos caminhos somos nós.
OP: Várias escritoras negras, ao longo da história, precisaram utilizar pseudônimos masculinos para garantir a publicação de suas obras. O mercado editorial está se transformando ou ainda é um desafio enfrentar o racismo institucional também nesses espaços?
Conceição: Para essa autoria negra nós ainda temos muitos desafios. Se você pensa nas mulheres escritoras brasileiras, por exemplo, essa autoria feminina vai aparecer no Modernismo — mas isso ainda é para as escritoras brancas, as escritoras negras vão chegar nessa cena literária muito mais tarde. Apesar de o primeiro romance ter sido escrito por uma escritora negra, Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis; apesar de o fundador da Academia Brasileira de Letras ser um negro (Machado de Assis); apesar de Lima Barreto; de Cruz e Sousa e de outros escritores negros que despontaram na cena literária, essa autoria negra começou a se firmar mesmo muito tempo depois da firmação dessa autoria branca. É interessante que meus livros surgem primeiro por editoras pequenas e por editoras que são criadas para publicar essa autoria negra. Hoje, a gente já tem editoras maiores com escritores e escritoras negras no catálogo e eu já tenho convite para outras editoras, mas o mercado a gente vai conquistando aos poucos e a gente conquista também porque a gente tem um público leitor. Eu gosto muito de afirmar esse sentido de escrevivência do nosso texto, um texto que nasce de uma vivência — essa vivência pode ser também uma vivência pessoal, mas o que a gente afirma é mais uma vivência coletiva. Mesmo quando o nosso texto está na primeira pessoa, essa escrevivência tem caráter coletivo e é também muito marcada por gênero. Quando eu falo escrevivência, eu parto da minha própria experiência literária, de uma mulher negra; por gênero e também pela condição étnica. Uma das coisas que gosto de afirmar é que tenho plena consciência que eu estou trabalhando com a arte da palavra. É um processo mesmo de criação.
OP: Em 2018, a senhora formalizou a sua candidatura para a cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras. Qual foi a importância política deste ato?
Conceição: Para mim, a importância política é não somente da minha presença, mas é da autoria negra e também da autoria indígena na Academia Brasileira de Letras. A Academia é a casa, é o lugar simbólico que guarda a literatura nacional, e não podemos pensar em uma nacionalidade brasileira formada apenas por homens e brancos. A importância política é essa, estar presente e se fazer representar na casa símbolo da literatura e da língua nacional. No caso da autoria negra, é marcar que o fundador é um escritor negro e a cadeira de Castro Alves (cadeira de número 7) era justamente uma cadeira de um poeta abolicionista. Eu acho que a ocupação da cadeira de Castro Alves, esse poeta abolicionista, por uma escritora que é descendentes de povos escravizados seria simbolicamente um momento bonito se tivesse acontecido. Mas a minha esperança é que não aconteceu comigo, mas pode acontecer com outra e outro escritor negro. A minha candidatura é histórica, independente de eu ganhar ou não. Isso fez pensar nos modos de candidatura da Academia, então eu acho que eu ganhei; mais que estar lá dentro, a autoria negra ganhou. A coletividade que se organizou e não somente uma coletividade negra, isso é importante marcar também: uma das primeiras pessoas a ir para o Facebook colocar a notícia foi o senador Eduardo Suplicy. Foi uma candidatura de todas, todos e todes que se sentiam representados . Hoje eu estou mais propensa escrever essa história, eu acho que essa história não pode cair no esquecimento.
OP: Por fim, Conceição, que livro a senhora está lendo atualmente?
Conceição: Eu estou lendo o livro O Homem que odiava Machado de Assis, de José Almeida Júnior. Estou muito para saber o que é história, o que é ficção, porque é um romance histórico.