Resistir é verbo norteador na história do Maracatu Vozes da África, que, em 2020, celebra 40 anos de fundação. Entoando um lembrete dessa pulsão na loa deste ano - "Eu sou da cultura, eu sou resistência" -, o grupo é um dos mais tradicionais do Estado, tendo surgido em novembro de 1980 a partir da intenção do jornalista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira de celebrar a cultura e a ancestralidade. Próximo à data da Consciência Negra, ele reuniu folcloristas, intelectuais, escritores e carnavalescos para, assim, formar o Vozes da África. Amanhã, 23, a agremiação desfila na avenida Domingos Olímpio sob o tema Peço agô, mas não peço licença, eu sou negro, índio e quilombola. No domingo, 16, no último ensaio geral antes do desfile, o Vida&Arte acompanhou os preparativos finais e conversou com membros de diferentes épocas sobre os 40 anos do Vozes da África.
Hoje, a sede da agremiação fica na rua Sousa Girão, esquina com a Padre Matos Serra, no bairro José Bonifácio. Antes, funcionava na rua Governador Sampaio, no Centro. Foi lá onde Aderaldo Oliveira, 61, conheceu e se encantou pelo maracatu cearense. "Eu era seminarista, mas não tinha vocação. Em 1987, saí e fui trabalhar numa empresa de comunicação. Na época, veio a coisa de querer participar de um maracatu, mas não sabia como chegar, era difícil - hoje não, cada bairro tem um: aqui no José Bonifácio tem o Vozes, na Piedade (Joaquim Távora) tem o Rei de Paus, no Mercado Velho (Centro) o Nação Axé de Oxóssi… -, aí um amigo me levou para conhecer o Vozes da África. Chego leigo, sem saber fazer nada. Depois me entrosei, comecei a ajudar, a somar. Com o tempo me colocaram na diretoria, aí vim morar na sede", recupera ele, que é o atual presidente do grupo, em seu oitavo mandato. "Hoje, o maracatu cearense é minha vida. Esse povo é minha família. Eu trabalho com muito amor", celebra.
Segundo Aderaldo, 300 brincantes saem na avenida, "de pessoas da melhor idade a crianças, adolescentes". Para dar conta de tanto, as roupas surgem, muitas vezes, de processos de reciclagem e reutilização. "Não tenho condições de fazer 300 fantasias novas. Eu uso o que tenho na casa", explica. O comerciário Iran Holanda, membro do Vozes da África há quatro anos, é um dos aderecistas da agremiação, além de sair também como destaque. "O carnavalesco faz o projeto dele, a peça-piloto, e o aderecista vai executar, fazer o restante", elucida o processo. "A gente trabalha há um tempão, termina um Carnaval e já começa a criar alguma coisa. Aí vira a noite, aquele negócio todo…", resume.
Um dos adereços a serem usados em 2020 é o jarro "lindíssimo" que Neide Viana - 64 anos de vida e 20 integrando o maracatu -, trará consigo na mão durante o desfile, exercendo o papel de benzedeira. "Se você tiver com alguma coisa, rapidinho eu passo um raminho em você com água perfumada e limpo minha avenida para o meu maracatu passar", avisa. Apesar de serem membros há tempos distintos, Iran e Neide comungam do mesmo sentimento de pertencimento pelo maracatu dividido por Aderaldo. "O Vozes da África pra mim é uma família", classifica ela. "O que tem de bom aqui é porque é uma família, todo mundo é unido", reforça Iran.
Participa-se do maracatu, inclusive, em família, como no caso da aposentada Maria Socorro Aguiar, que há quatro anos desfila na ala das baianas. "Sempre participamos eu, minha irmã, minha sobrinha. A gente gosta", conta, confidenciando que nutria há décadas a vontade de se aproximar da manifestação cultural. "Desde criança queria participar, mas meus pais não deixaram. Cresci e decidi vir", afirma, orgulhosa. Entre as expectativas para 2020, ecoa o desejo mais ouvido pela reportagem durante a visita: "É aguardar o campeonato novamente. Se Deus quiser, vai ganhar nesse ano", prevê, lembrando do hexacampeonato que o Vozes da África carrega - o maracatu vence ininterruptamente desde 2014. "Já estamos naquela expectativa, ficando nervosos de ir pra avenida e pedindo a São Pedro que não chova", ri-se Aderaldo.
Um dos mais recentes membros do grupo é o funcionário público Wesley Ribeiro, de 32 anos. 2020 será sua primeira vez saindo na avenida. "Sempre admirei o maracatu, há uma década frequento os desfiles da Domingos Olímpio. Nesse ano, através de amigos, resolvi experimentar", explica. O novato conta que ter chegado no contexto dos 40 anos foi um acaso, mas celebra a coincidência. "O Vozes da África é um maracatu que tem um valor histórico-cultural para a Cidade e isso agrega muito. Muitas vezes, a cultura é deixada em segundo plano e o maracatu anualmente reaviva o sentimento com os nossos antepassados, com a cultura", afirma.
Na loa deste Carnaval, o Vozes referencia diretamente povos que são, muitas vezes, atacados por governantes. "Estamos homenageando os povos do mar, os índios, os negros e os quilombolas. A gente tá com uma loa bem política, falando das injustiças. A sociedade pede, o dia a dia pede", considera Aderaldo. Entre os versos entoados pelos integrantes, estão: "Vozes, vozes, ecoam na imensidão / Vozes da África, um grito de libertação / Agô, pai Xangô, agô / Agô, pai Xangô, agô / Teu nome é justiça, ó guerreiro santo / Projeta o meu canto nagô / Firme feito uma árvore / Meu maracatu está de pé". No iorubá, "agô" é um pedido de permissão.
Falando de resistência de povos ancestrais, o Vozes fala, também, da própria permanência. "É muito difícil fazer cultura aqui em Fortaleza. Infelizmente a gente vive dependendo de edital da Prefeitura, da Secretaria da Cultura do Estado. Meu maracatu não tem sede própria, esse prédio é alugado. Tenho que me virar atrás de apresentações em colégios, Centro de Eventos, seminários", cita o presidente. "A gente se vira. Um é cozinheiro, o outro professor, o outro cabeleireiro, e aí vai se mantendo nosso trabalho na avenida", avança. Acompanhando o maracatu há menos tempo, Wesley vê na união a força do Vozes da África. "Há todo um processo de construção em que o brincante é envolvido, não é apenas chegar e desfilar. O que o público vê na avenida é fruto de meses de trabalho, de muito esforço de todos os brincantes e muito carinho pelo maracatu e pela cultura", arremata.
Programação dos desfiles
Quando: dias 22 e 23
Onde: avenida Domingos Olímpio (entre as avenidas da Universidade e Aguanambi)
HOJE 22/2
Maracatus Nação Axé de Ossoxi (18h40min), Solar (19h20min), Nação Palmares (20 horas), Rei Zumbi (20h40min), Obalomi (21h20min), Nação Iracema (22 horas) e Nação Pindoba (22h40min). Show da banda Pimenta Malagueta (23h20min)
AMANHÃ 23/2
Maracatus Nação Baobab (19 horas), Nação Fortaleza (19h40min), Vozes da África (20h20min), Nação Pici (21 horas), Rei de Paus (21h40min), Rei do Congo (22h20min) e Az de Ouro (23 horas). Show com Yane Caracas (23h40min)