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Evaldo Gouveia morre aos 91 anos
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Evaldo Gouveia morre aos 91 anos

Um dos maiores compositores do Brasil, o cantor cearense morreu aos 91 anos deixando legado musical que atravessa gerações
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Evaldo Gouveia é um dos personagens tratados no podcast
 (Foto: Zé Rosa / 1970)
Foto: Zé Rosa / 1970 Evaldo Gouveia é um dos personagens tratados no podcast

O compositor e trovador Evaldo Gouveia morreu na noite desta sexta-feira, 29, aos 91 anos. O artista, que há alguns anos convivia com as consequências de um acidente vascular cerebral, foi contaminado pela Covid-19 e não resistiu às complicações. O cearense deixa um legado robusto e apaixonado.

Do menino de oito anos que cantava na radiadora da Praça da Estação de Iguatu ao trovador que conquistou o Brasil com palavras e melodias. Evaldo Gouveia de Oliveira nasceu em 8 de agosto de 1928 no município de Orós e, desde cedo, sentia que, eventualmente, conquistaria o País. "Eu ia pro pezinho do rádio e pegava a letra, o tom. Eu já nasci artista", dividiu em entrevista às Páginas Azuis do O POVO, publicada em 16 de agosto de 2010.

A relevância e bem-querer ao artista foram lembrados por músicos, artistas e políticos. Todos fãs. O prefeito de Fortaleza, Roberto Claudio, e o governador Camilo Santana chegaram a publicar notas lamentando a perda e reconhecendo o legado do trovador.

A história na música vem de longe. Em 1957, surgiu "Deixe que ela se vá", escrita em parceria com Gilberto Ferraz. A canção chegou ao seu primeiro intérprete, Nelson Gonçalves, tendo o ator Mário Lago como ponte. Lembrando das primeiras composições, Evaldo afirmou ao O POVO, sem modéstia: "É perfeição! Eu já vim derrubando os outros". A modéstia não se fazia necessária, de fato. Era a realidade. Os frutos financeiros da gravação levaram Evaldo à União Brasileira de Compositores e foi lá que ele conheceu Jair Amorim, com quem travaria parceria artística e pessoal - cantada, principalmente, por Altemar Dutra: "Que Queres Tu de Mim", "Somos Iguais" e "Serenata da Chuva", além das já citadas "Sentimental Demais", "Brigas", "O Trovador" e "Bloco da Solidão, entrou inúmeras outras". Na avaliação de Evaldo, Altemar tinha uma voz que "se adaptava e ele cantava a dupla com amor".

HOMENAGEM | Jornalista e músico Felipe Araújo fala da parceria entre Evaldo Gouveia e Jair Amorim, que rendeu o título de melhor samba enredo para a azul e branco em 1974

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Além de Jair Amorim, outros parceiros de composições também se somaram à sensibilidade melódica de Evaldo. Entre eles, Fausto Nilo, com quem criou "Esquina do Brasil" e "Nada Mudou". Além de Altemar Dutra, outros intérpretes de composições de Evaldo Gouveia foram, também, nomes que vão do clássico ao contemporâneo: Angela Maria, Jair Rodrigues, Anísio Silva, Maysa, Gal Costa, Elba Ramalho, Cauby Peixoto, Ney Matogrosso, Wilson Simonal, Fafá de Belém, Maria Bethânia, Zizi Possi, Emílio Santiago, Dalva de Oliveira, Agnaldo Timóteo, Jamelão, Ana Caroline, Simone. A lista é longa, não termina aí e é mais uma das provas da grandeza de Evaldo Gouveia, que pôs em palavras e melodias emoções cantadas até hoje pelo Brasil: "Romântico é sonhar / E eu sonho assim / Cantando estas canções / Prá quem ama igual a mim".

O amigo Raimundo Fagner, emocionado, lembrou: "afilhado de meus pais, morava em frente à casa que nasci, na (rua) Floriano Peixoto, 1779. Lembro dele na infância cantando na porta de casa com meu irmão, Fares Lopes. Dia triste de memórias inesquecíveis".

O guitarrista e produtor musical Mimi Rocha busca na memória de infância suas lembranças de Evaldo, cuja música era presente em casa, por influência dos pais. "Vai ficar a grande obra dele, a lembrança dos shows que a gente fez junto, a convivência com ele no meu estúdio. A gente ensaiava no estúdio e ele era muito brincalhão", narra Mimi.

Marcos Lessa, cantor que fez tributo a Evaldo, escreveu em sua rede social Instagram: "Meu mestre Evaldo Gouveia encerrou sua missão aqui na terra. E eu tenho uma gratidão que não cabe no peito por poder chamar esse mestre de amigo. Fez musica pra mim, gravei elas. Tantas e tantas tardes em sua casa aqui ou em Sao Paulo partilhando historias. Era o ídolo das minhas avos. E o destino reservou que ele me presenteasse tantos anos depois com canções inéditas que guardo a sete chaves", escreveu o amigo e fã.

O amigo Joãozinho do Violão lembra que, se não fosse o isolamento social, muitas homenagens em bares e palcos seriam feitas. "O repertório dele é tão grande, mil e tantas. Tem noite que ele canta quinze músicas, eu ficava só contando", lembra, carinhosamente. (Colaboraram Camila Holanda, Maria Clara Menezes, Natália Coelho)

 

Ponto de vista, por Marcos Sampaio

Antes de tudo um forte

Não sei quando conheci Evaldo Gouveia. Provavelmente alguns meses antes de eu nascer. Minha avó tinha Altemar Dutra entre seus ídolos e "O trovador" era cláusula pétrea nos almoços do domingo. Em seguida, Evaldo casou com uma querida amiga da família e assim seu nome não parava de circular pela sala. Ele era como um tio distante, desses que a gente nunca vê, mas sabe que é tio. Depois veio o meu universo musical e mais uma vez eu encontro um autor com uma capacidade infinda de dar sentido a palavras de amor, ora doídas, ora felizes. Não sei que palavras seriam capazes de explicar a amplitude, o tamanho, a envergadura da obra de Evaldo Gouveia. Creio que ele seja pungente como o mais límpido agudo de Gal Costa em "Alguém me disse". Ou profundo como um grave de Emílio Santiago em "Brigas". Ele era direto, como Maria Bethânia em "Somos iguais", e malicioso, como Simonal em "Garota moderna". Eterno como Ângela Maria em "Tango para Teresa", Evaldo era como um Cole Porter, um Gershwin, alguém capaz de algo que só os maiores conseguem: criar a melodia imortal, aquela canção que vai atravessar gerações, que, mais cedo ou mais tarde, vai te puxar pelo braço e dizer "espera, que eu tenho algo a te dizer". Ele disse e nós ouvimos. E hoje o Brasil acorda pra reverenciar um inesquecível, um gigante, um autêntico compositor brasileiro. Muito obrigado, Evaldo Gouveia, por cada canção. Muito obrigado.


Marcos Sampaio,  editor-adjunto do Vida&Arte e crítico de música

 

Evaldo da Portela, por Felipe Araújo

A história da música popular no Brasil, em particular do samba, pode ser contada através da trajetória de algumas de suas mais célebres duplas de compositores: Noel Rosa e Vadico, Bide e Marçal, João Bosco e Aldir, Wilson Moreira e Nei Lopes, João Nogueira e Paulo César Pinheiro, Dona Ivone e Delcio Carvalho, Pedro Caetano e Claudionor Cruz. Embora tenha resultado em composições dos mais diversos gêneros (baião, bolero, samba-canção), a colaboração entre o cearense Evaldo Gouveia e o capixaba Jair Amorim também foi uma dessas parcerias paradigmáticas da nossa melhor tradição sambista.

Antes das músicas com Jair, Evaldo, que desembarcara no Rio de Janeiro nas asas do sucesso do Trio Nagô no início dos anos 1950, já havia assinado alguns sambas fazendo parelha com gente de peso como Pedro Caetano ("Eu e deus") e Antonio Maria ("Canção para ninar gente grande"). Mas foi na tabelinha com o letrista que conheceria em 1958, na sede da União Brasileira de Compositores (UBC), que o violonista e cantor cearense encontraria a mais justa adequação para suas melodias - e com a qual alcançaria a maior repercussão.

Já no mesmo dia em que se conheceram, Evaldo e Jair compuseram a primeira música, "Conversa", que ganharia registro de Alaíde Costa. A partir daí foram inúmeros golaços. Só para ficar entre os sambas, é possível citar "Maldade", "Nosso cantinho", "Garota moderna", "Faz de conta" e "O conde". Esse último fez grande sucesso na voz de Jair Rodrigues em 1969. A música, que citava a Portela - "Bem melhor do que ela / É sair na portela / E um samba de enredo / No asfalto cantar" -, acabou abrindo as portas da concorrida ala de compositores da escola para a dupla.

Em 1973, com "Terra azul", Evaldo e Jair fazem sua primeira participação na disputa interna da escola para a escolha do samba de enredo que iria para a avenida. O belíssimo samba da dupla não venceu - "Vou me embora pra Pasárgada / Levo as pastoras / Levo o tamborim / Levo a portela só pra mim / De azul e branco / A terra azul deve ser mais azul" -, mas ganhou gravação de Jair Rodrigues. No ano seguinte, entretanto, a história seria diferente. Em parceria com o compositor Velha, a dupla venceria a disputa para o samba que iria homenagear Pixinguinha.

"O mundo melhor de Pixinguinha" acabou explodindo, tornando-se não apenas um sucesso naquele ano - a Portela acabaria o carnaval em segundo lugar, perdendo para o impecável Salgueiro do então iniciante Joãozinho Trinta -, mas virou também um clássico do gênero. O ingresso de Evaldo e Jair na ala de compositores e a vitória na disputa interna, entretanto, acabaram por criar um cisma entre os baluartes da escola. Nomes como Zé Ketti pediram afastamento definitivo da escola e outros, como Candeia e Paulinho da Viola, deixaram de comparecer à quadra, em protesto pelo que seria uma guinada comercial da direção portelense em desfavor de seus compositores tradicionais.

Não foi o primeiro nem o último episódio de brigas e dissidências dentro da vitoriosa história da Portela. A dupla venceria novamente a disputa interna da escola em 1978, com o enredo "Mulher à brasileira". Alguns anos depois, Jair e Evaldo compuseram "Perdão, Portela", em que pediam desculpas à comunidade, mas também davam uma alfinetada nos desafetos de plantão: "Me perdoa Portela querida / se um dia na vida tentei te exaltar / se meu samba sem nada de novo / na rua esse povo, botou pra cantar / me perdoa eu não ter as raízes / raízes que dizem que devo portar…."

Esses dois sambas vencedores - e mais outras tantas músicas assinadas pela dupla - foram registrados na coletânea "O Trovador" (2010), que teve produção musical do cearense Pantico Rocha e reuniu inúmeros medalhões da música brasileira num belo tributo a Evaldo Gouveia. Foi uma homenagem justa e que reafirmou a grandeza da obra de um compositor que, independente de raízes, soube tornar universais e eternas suas canções.

Felipe Araújo é jornalista e músico

 

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