Se mergulharmos em nós, nos tempos, sonhos, mares e mistérios, profundo o bastante, poderemos ser arrebatadas dos julgamentos exaltados pela infeliz realidade necropolítica arremessada sobre ombros negros, travestis e originários? O que pode um corpo que rompe as pisaduras, golpes, coreografias e percursos cânones de condenação e escravização, elaborados e guarnecidos pela branquitude heteronormativa patriarca - supremacistamente diabólica - estruturada e aparelhada no tempo-plano colonial tecido ao longo da era cristã?
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Abordamos a vida, bordando-a em nós, pois não nos falta fé. Pela fé, em ritmo de milagre, Jup do Bairro e Mumutante gestaram e deram à luz, respectivamente, a "Corpo Sem Juízo" e "Mergulho", discos que perfuram em bombardeio e transgressão os limites, custos e classificações segregatórias proclamadas pela indústria e pelo mercado fonográfico. Nichos e rótulos acham-se medíocres quando confrontados pela dimensão eterna e etérea dos voos por elas cavucados.
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De modo inegável, os timbres singulares, as dobraduras proféticas de-na palavra, a astúcia na escolha dos temperos que refogam as canções (e, no caso de "Corpo Sem Juízo", a direção maestral de BadSista combinada aos achegamentos de Deize Tigrona, Rico Dalasam, Linn da Quebrada e do primoroso Mulambo) acarretam em precisa e preciosa medida: prensada, sacudida e transbordante. O que tem sido feito, dogmaticamente, sendo "Mergulho" e "Corpo Sem Juízo" evidências dessa movimentação, é a transfiguração daquilo que nos é entregue como sentença.
"Luta Por Mim" e "Baculejo", respectivamente de Jup e Mumu, são cantigas de tanto poder que tornam possíveis a elaboração de antídotos capazes de frear as frentes machistas e alvejantes envenenadoras, que atentam-nos por todos os lados, desde os tempos de nossas transcestrais. Delas fluem coragem e inspiração para romper as barreiras de uma sociedade cisgênera, com desinteresse heteronormativo em aprender outros jeitinhos de ser - amar; que não foi ensinada a amar-nos e tampouco deseja aprender.
Se nos dão morte, dor e desprezo hediondo, com intensidade equivalente faremos brotar videiras em toda terra, germiná-la-emos replantando florestas ombrófilas densas.
Uma liga passeia por nossos âmagos, provendo as condições físicas, mentais e emocionais necessárias para irmos tão fundo no oceano das coisas: creio numa teia espiritual que se alastra pelas terras feridas dessa nação e nos concatena, ainda que Mumu tenha Fortaleza como morada e Jup tenha se elaborado em Valo Velho, no Capão Redondo. Elas estão encharcadas, cheias de unção vital, e a conjuração desesperada de vida que fazem pauta necessariamente a restituição, o acerto de contas, aquilo que Denise Ferreira da Silva situa como "a dívida impagável". Esse é o corre.
O que se escuta em ambos os discos é a sagacidade de quem edifica lar em aliança com a chuva, o rio, o vento e a maresia, reconhecendo que nenhuma rocha é inabalável diante do balanço das águas transmutantes. (Agradecimento à Camila Melchior pelo amor e aconselhamento)
Ventura Profana é pastora missionária, cantora evangelista, escritora, compositora e artista visual, filha das entranhas misteriosas da mãe Bahia, donde artérias de águas vivas sustentam em fé, abunda. Somará à transfiguração com o lançamento do EP "Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor", previsto para 27 de julho
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Ouça as artistas
CORPO SEM JUÍZO, DE JUP DO BAIRRO
1. Transgressão
2. O que pode um corpo sem juízo?
3. Pelo amor de Deize (participação de Deize Tigrona)
4. All you need is love (participação de Rico Dalasam e Linn da Quebrada)
5. O corre
6. Luta por mim
7. Corpo sem juízo (Acapella)
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MERGULHO, DE MUMU
1. Baculejo
2. Maresia
3. Bombardeio
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VENTURA PROFANA
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Ouça o single "Eu Não Vou Morrer"
Ouça o single "Resplandecente"