Pouco registro, mas grande reconhecimento. A vida de Aphra Behn, autora britânica nascida em 1640, se diferenciou de milhares de outras mulheres com o talento para as palavras no século XVII por conseguir ascender no mercado editorial em uma época em que seu gênero não tinha espaço na literatura. Conhecida por peças, poemas e romances, a autora completaria 380 anos nesta sexta, 10 de julho, e é lembrada como a primeira mulher a sobreviver “apenas” de sua escrita.
Segundo arquivos da Biblioteca Nacional do Reino Unido, a autora, nascida provavelmente na cidade inglesa da Cantuária, filha de um barbeiro e uma ama de leite, teria se mudado para colônia inglesa do Suriname. Lá, teria conhecido um líder escravo do continente africano, possível inspiração para o romance “Oroonoko, ou o Escravo Real” (1688), uma de suas obras mais conhecidas e que conta uma trágica história de amor entre a filha de um general e o neto de um rei africano. A autora se casou em 1664 com o mercador Johan Behn, morto em 1666, mas que daria à Aphra o título de “Mrs. Behn”, forma pela qual assinaria seus trabalhos.
Aphra Behn teria sido espiã em Bruxelas em nome do rei Carlos II da Inglaterra, durante a Segunda Guerra Anglo-Holandesa (1965-1967), fato esse que teria oportunizado não só uma visão do mundo, como uma chance de ser vista pela corte do rei. Segundo um episódio do podcast In Our Time, do jornal BBC, Behn já estaria trabalhando como espiã em seus meses no Suriname, visto que já era chamada pelo codinome “Astrea”. A informação foi revelada pela pesquisadora Janet Todd, uma das maiores pesquisadoras da autora e que assina o livro “Aphra Behn: A Secret Life”.
Já de volta à Inglaterra e sob as asas da elite inglesa, Behn começou a trabalhar como escrivã, e, logo depois, como dramaturga, para a King's Company e a Duke's Company - companhias de teatro patrocinadas pelo rei. A partir de então, escreveu seus primeiros trabalhos, como “The Forc'd Marriage or, The Jealous Bridegroom” (1670), “The amorous prince, or, The curious husband” (1671), “The Dutch Lover” (1673) e, por fim, “The Rover” (1677), que seria uma de suas peças mais famosas.
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Aphra Behn foi saudada pela escritora Virgínia Woolf em seu ensaio “Um teto todo seu” (1929), quando resgata a história das mulheres na literatura. Segundo Woolf, por ser obrigada a criar o próprio sustento, Behn conseguiu abrir espaço - mesmo que discreto - no mercado editorial para todas as escritoras que viriam depois
“Porque agora que Aphra Behn fez primeiro, as garotas podiam dizer para os pais: Você não precisa mais me dar mesada, posso ganhar dinheiro com minha pena. (...) A intensa atividade intelectual que surgiu no fim do século XVIII entre as mulheres - as conversas, as reuniões, a redação de ensaios sobre Shakespeare, a tradução dos clássicos - baseava-se no fato concreto de que elas podiam ganhar dinheiro com a escrita. (...) Todas as mulheres reunidas deveriam jogar flores sobre a sepultura de Aphra Behn que fica, escandalosa e apropriadamente, na Abadia de Westminster, por ter sido quem conquistou para elas o direitos de dizerem o que pensa”, escreveu Virginia Woolf em sua obra, de forma a concluir que, para que uma mulher consiga escrever, é necessário emancipação financeira e o poder de pensar por si mesma - características representadas em ter um “teto todo seu”.
Segundo a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Janyne Sattler, Dra. em Filosofia, o século XVII foi um período de certa emancipação das mulheres nas artes, o que resultou no título de “Amazonas da Pena”. Para a professora, Behn conseguiu ascender - além de seu talento e humor crítico - pelo advento de seu nascimento, em uma família burguesa. Entretanto, isso não diminui seu feito. “Behn,como precursora, nos mostra a importância da palavra como incisão sobre a realidade – ela modificou a realidade para as mulheres que escrevem mesmo que à sua revelia ao permitirmos olhar para ela como nossa antecessora”.
“Um exemplo de que as mulheres podem sobreviver da escrita, sim. Mas apenas porque outras mulheres tomaram a pena com a mesma coragem e ousadia, e puderam seguir a linhagem por ela iniciada e, finalmente, contar a sua história, impedindo que mais uma dentre tantas sofresse de pagamento a posteriori”, explica a professora, ressaltando que o a relevância da autora na atualidade se relaciona com uma justiça histórica “no contexto de afirmação e reafirmação da possibilidade e da necessidade de acesso das mulheres à educação, à palavra, ao mundo público e político, sempre fechado em torno da masculinidade”.
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A poesia de Aphra, em desconcerto com os valores da época, falavam sobre o prazer feminino e sobre a disfunção sexual masculina com humor. Um exemplo é o poema “O desapontamento” (1680), que narra uma tentativa de estupro que resulta em uma relação decepcionante. Com repercussão escandalosa em todos os gêneros que escrevia por sua temática, diversos de seus poemas estão disponíveis on-line do site da organização Poetry Foundation.
Nas palavras do escritor e historiador inglês Ernest A. Baker, que em 1905 organizou uma coleção de dez novelas da autora, o nome de Aphra Behn é “vagamente lembrado como a autora de peças e novelas, hoje não lidas, que personificavam a imoralidade da Restauração (período de restauração da monarquia inglesa entre 1660 e 1666) e que eram mais escandalosas por serem escritas por uma mulher. Seus trabalhos são encontrados em algumas poucas bibliotecas e raramente vão para as livrarias”, refletiu o autor na época.
Seu texto se encontra na introdução de uma edição em inglês do livro “Aphra Behn: Complete Novels” disponível por R$ 2,90 na versão digital, no site da Amazon. Apesar da publicação de alguns títulos no Brasil, poucos estão disponíveis em livrarias tradicionais e não há nenhuma edição em português.
Segundo o doutor Carlos Carvalho, professor de Literatura de Língua Inglesa da Feclesc, campus do Sertão Central da Uece, no século XVII já era possível observar a entrada das mulheres no campo das artes. O professor ressalta que, segundo algumas pesquisas, Aphra pode ser considerada uma proto-feminista, ou seja, uma das primeiras a defender a causa antes da existência do campo como conceito. Tal informação se torna relevante pelo que o professor descreve como “silenciamento da obra feminina”.
“Nós conhecemos e estudamos o John Milton e o John Dryden, seus contemporâneos, mas não conhecemos a Aphra Behn. Passamos então para a questão do silenciamento da obra feminina. E vemos isso inclusive hoje. E ela tem uma obra atemporal, discutindo temas sobre o casamento, o senhor e o escravo. E ela seria a relevância histórica-social”.