Ligue Djá! O bordão imortalizado pelo astrólogo porto-riquenho Walter Mercado foi escolhido pela Netflix para batizar a versão brasileira de “Mucho Mucho Amor - O lendário Walter Mercado”, o documentário mais surpreendente da quarentena, que tem atraído o olhar de curiosos e admiradores em todo mundo. O “Astrólogo das Estrelas” volta à cena meses depois de sua morte e o documentário se torna sua surreal biografia com desfecho de telenovela latina misturada com filme cult, irresistível até para quem torcia o nariz para seu inebriante perfume.
Dirigido por Cristina Constantini e Kareem Tabasch, “Ligue djá” faz justiça póstuma a essa figura ímpar que levou a astrologia para milhões de pessoas, diariamente e por várias décadas, aos quatro cantos do mundo, principalmente em toda a América Latina e Estados Unidos.
No auge da fama e adoração, na virada do milênio, Walter foi o primeiro astrólogo a ter um livro lançado simultaneamente em diversos países de língua inglesa e espanhola, pela gigante Time Warner. Gravou dezenas de CDs com previsões para cada signo zodiacal, vendia velas, perfumes, livros, palestras, programas de rádio… Seu programa “Primer Impacto” era transmitido em 14 países semanalmente. Seu rosto andrógino estava estampado em colunas de horóscopos nos principais jornais dos países da America Latina e nos das comunidades de língua espanhola dos Estados Unidos.
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Reza a lenda que ele nasceu em alto mar, quando seus pais viajavam da Espanha para Porto Rico e, portanto, não era de lugar nenhum. Cresceu em Porto Rico, e aos 5 anos de idade pegou em suas mãos um passarinho ferido e o fez novamente voar. A vizinha fofoqueira viu a cena e gritou: "Milagro! Milagro!". Sua família, que era de fazendeiros, logo viu a porta ser invadida por pessoas atrás do menino curador que, aos 6 anos, previu que o sino da igreja cairia, dias antes de ocorrer um terremoto na cidade.
Ele contava que era feio, fraco, gago, mas estudava mais que todos os colegas para ser o melhor da classe, o mais inteligente e popular. Um dia a mãe falou para ele parar de pensar e usar sua energia para outras coisas. Logo entrou para aulas de dança e teatro e aí o “patinho feio” virou "cisne", Walter dançava flamenco, dança contemporânea, fazia uma peça atrás da outra, programas de rádio e, claro, “ telenovelas”. Pronto, o brilho estava garantido pelo resto da vida, mas Mercado não parou de estudar, fez farmácia e estudava religiões, ciências esotéricas e astrologia.
Um belo dia, ele foi a um desses programas da tarde da TV vestido com trajes de príncipe indiano para divulgar o personagem que vivia naquele momento em uma novela com grande sucesso. Naquele dia, um convidado faltou, o diretor pediu para ele improvisar algo e Walter resolveu falar do que mais sabia, signos do zodíaco. O programa acabou, foi pico de audiência, a emissora recebeu inúmeros telefonemas do público querendo mais, e o resto é história.
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Os porto-riquenhos abraçaram aquele ator que falava sobre suas vidas, o futuro, o trânsito dos astros, com “mucho mucho amor” e o astrólogo virou patrimônio nacional.
Apesar do sucesso local, no início dos anos 1990 a vida de Walter seguia a mesma rotina comum, fazia seus escritos e gravações até que um dia Bill Bakula, um empresário do entretenimento que o viu na TV e ficou impressionado com seu carisma, marcou uma consulta particular e fez seu destino mudar. Ali nascia uma relação de muito trabalho e admiração que, se por um lado se transformou em sucesso, por outro virou uma briga judicial que não fez bem a nenhuma das partes.
Desde 1992 Bill Bakula fez o império de Walter se multiplicar, os negócios alcançaram cifras que nem os astros poderiam prever. Walter Mercado conquistou muitos territórios e estava praticamente em todo o mundo. Tudo ia muito bem, até que suas sobrinhas resolveram se meter nos negócios e destituir o empresário. Walter havia assinado um contrato dando a Bill Bakula propriedade sobre seu nome e sua marca para sempre . As sobrinhas não quiseram fazer um acordo e, depois de longas disputas, o astrólogo perdeu o direito de se chamar Walter Mercado publicamente.
O documentário revela o motivo do sumiço do astrólogo na ultima década e mostra os efeitos da disputa em sua vida privada e pública. As sobrinhas tentam pintar o empresário como um “anjo que virou demônio” mas o “vilão” foi igualmente vítima de um processo que não chegaria a esse desfecho se permitissem um acordo amigável.
O final dessa disputa entre um homem que quer reaver seu nome e o empresário que não quer perder seus direitos virou o assunto mais quente na indústria do entretenimento norte-americana, mas o mais interessante aspecto de “Ligue já” é apresentar o homem por de trás da fantasia de maior astrólogo do mundo.
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Era final de tarde de um dia quente em Miami. Vestido dos pés a cabeça e com cabelo imaculado apesar do vento, Walter Mercado tentava gravar os “infomerciais” destinados ao Brasil para promover o serviço de telechamadas. Ele tentou aprender a forma correta de falar o texto mas não tinha jeito, não conseguia dizer “Então, o que você está esperando? ligue agora mesmo”. O jeito foi encurtarmos o texto para “Ligue já” e assim foi criado o famoso "Ligue Djá"! Eu estava lá e presenciei o começo de um furacão.
Foi no final de 1997 que ouvi falar de Walter Mercado pela primeira vez. Seu empresário Bill Bakulla me visitou no Rio e contou sobre a “Walter mania” que havia se instalado no mundo latino. Mostrou-me uma foto de seu cliente enquanto tentava me convencer que ele era tão famoso quanto o Papa no mundo latino. Fiquei hipnotizado pela foto, a primeira reação foi de espanto com sua figura que não parecia nem homem e nem mulher, sua fisionomia me remetia a uma mistura de Hebe, Cauby Peixoto, Clóvis Bornay, Marta Suplicy e a minha avó.
Fiquei vidrado na história e na fisionomia do homem que tinha 3 mil capas de diferentes cores bordadas, usava joias com pedras preciosas, tinha os cabelos louros avermelhados com laquê e uma cútis de porcelana. O visual meio mago, meio príncipe, me lembrava as cores de Carmen Miranda e do carnaval brasileiro.
Ainda hipnotizado resolvi assumir a missão de cuidar da comunicação de Walter Mercado no Brasil sem nem me importar com o fato de que o propósito era promover um serviço telefônico 0900 que custava R$ 4,49 por minuto para quem quisesse ouvir previsões de um de seus discípulos, um telemarketing com gente jogando tarô, búzios, runas... do outro lado da linha. “Walter Mercado e seus discípulos” estava em 23 países nos cinco continentes, através de 26 centrais com 2.500 místicos atendendo 24 horas .
Munido de fotos de Walter com seu figurino sensacional e de imagens suas com Bill Clinton, e estrelas de Hollywood como Robert De Niro, Glenn Close e Rosie O Donnel, enviei o material às redações junto com pedras de cristal de rocha em uma embalagem azul turquesa brilhante. No inicio havia uma desconfiança de que aquela figura não podia estar falando sério sobre astrologia, até o dia que Walter pisou no Brasil e conquistou cada pessoa que encontrou.
De desconhecido a figura querida do público foi um pulo. Ele foi recebido nos programas de Xuxa, Hebe, Jo Soares, Marilia Gabriela e Regina Casé, virou capa dos suplementos dominicais de grandes jornais, inspirou campanha da Bombril e o personagem Ualber, de Diogo Vilela, na novela “Suave Veneno” da Globo.
A “Praça é Nossa ” tinha o personagem “Walter Merdado” que o Walter real fez questão de conhecer e contracenar. De repente, Walter estava nas páginas da Caras, da Trip, da Veja e até da G Magazine. Ele falava com o público de A a Z , seu livro “Além do Horizonte” com previsões sobre o novo milênio, foi lançado em português e até ser comentarista da MTV na semana de moda paulista, ele encarou. Até os repórteres mais duros e desconfiados se encantavam com suas respostas diretas e cheias de simbolismos, aquela figura “kitsch” era quase irresistível.
Walter adorava os brasileiros, era fã de Roberto Carlos, Jorge Amado, das nossas novelas e do cinema novo, gostava de cantar “Manhã de Carnaval” e falar dos filmes de Carmem Miranda. No Rio de Janeiro chegou a patrocinar a reforma de um traje da pequena notável quando conheceu Aurora Miranda sua irmã, no museu dedicado à rainha do tica tica boom.
O sucesso de Walter no Brasil foi tanto que vimos o surgimento de outros esotéricos criando seus serviços telefônicos, como Mãe Dinah, a atriz Norma Blum e a Frenética Leiloca, entre outros. Até Elke Maravilha estava abrindo um serviço telefônico quando proibiram a exploração do serviço 0900 no Brasil.
Walter não mais voltou ao País, mas sua figura ficou para sempre no imaginário do brasileiro e, 20 anos depois, estamos aqui falando dele.
O documentário não esgota o assunto e, certamente, ainda ouviremos falar sobre essa história que renderia filmes, livros, lendas. Marília Gabriela o definia como “uma taça de champanhe cara, toda trabalhada e com pés de neon” e onde quer que esteja, o astro brilhará mais que a estrela mais cintilante.
Horácio Brandão é jornalista e fez a comunicação de Walter Mercado no Brasil