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Depois de cinco meses, Elena Ferrante volta às prateleiras com "A vida mentirosa dos adultos"
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Depois de cinco meses, Elena Ferrante volta às prateleiras com "A vida mentirosa dos adultos"

Em novo romance, Elena Ferrante reencena os principais elementos que a tornaram mundialmente conhecida: tensões familiares, violência e conflitos de classe
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Capa do livro
Foto: Divulgação Capa do livro "a vida mentirosa dos adultos", de Elena Ferrante

Após intervalo de cinco anos desde o último livro publicado, a escritora italiana Elena Ferrante volta às prateleiras das livrarias. "A vida mentirosa dos adultos" (Intrínseca) chega apenas em setembro por aqui, mas já está disponível desde o mês passado aos assinantes do clube de leitura da editora, em tradução de Marcello Lino.

No novo romance, uma adolescente chamada Giovanna se volta para a própria família à procura de desvendar-lhe os segredos, explorando os desvãos da língua, o italiano e sua forma dialetal, e também do sangue, representado pela tia Vittoria, a quem a protagonista é maldosamente comparada pelo pai logo no início da história.

O ponto de partida é uma frase flaubertiana: "Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia", narra Giovanna, à época com 12 anos, filha do típico casal da elite intelectual. Eis o golpe, o mesmo aplicado por Emma a Berta em "Madame Bovary" - como se a linhagem perdesse força naquele elo, então condenado a repetir um passado que não convém.

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A declaração abre uma ferida da qual a jovem não se recupera, motivando então uma busca das origens. É preciso conhecer Vittoria, saber-lhe as razões para que o pai a abomine e a mãe a desaprove. A tia é o avesso da família - inculta, pobre, instalada na região mais baixa de Nápoles, perto dos bairros industriais, onde segue presa à cultura e ao falar rasteiro que passa pela boca lasciva dos homens.

Os pais, pelo contrário, são da classe alta, educados, vivem numa boa casa com ótima vizinhança e apenas eventualmente refazem o trajeto de retorno. A família é um passado ao qual tentam confinar em caixas de sapato, restrito a fotografias cujas manchas recobrem o que é incômodo.

É essa via-crúcis que Giovanna irá seguir. Nesse roteiro, que não é apenas geográfico, mas afetivo, a narradora empreende uma descida. Revisita o solo de que o pai descende a fim de entender se se está tornando de fato Vittoria, física e subjetivamente. No caminho, descobre o sexo, as mentiras dos adultos, e se surpreende com o que a aguarda.

Há muito da tetralogia na nova obra. Indômita, Giovanna não é como Elena Greco, a disciplinada voz narrativa de "A amiga genial" e dos três romances subsequentes. Mas cumpre papel parecido, o de restituir os fios da história e, nessa tentativa de reatá-los, remontar um retrato de si mesma, que talvez difira daquele imaginado pelo pai. Não é como a filha desejada, educada para obter sempre as melhores notas e estar à altura das pretensões familiares, desgarrando-se daquele fundo viscoso.

Tampouco é feia, como vem a saber, mas esbelta e insidiosa, talvez como tia Vittoria - e é possível que esse fosse o medo doméstico que experimentava. O de que, no seu corpo, o vulgar preponderasse sobre a cultura refinada, cedendo a um apelo antigo.

É essa a principal dualidade encenada no livro, apenas uma das tantas que se firmaram como as linhas de força da prosa de Ferrante: tudo que é rejeitado na língua das avós, mães e tias, o sexo, o deixar-se conduzir pelos humores do corpo, sempre aberta ao melhor ou ao pior que suceda, o emprego das energias para atividades pouco nobres, o escape da violência e a fuga.

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E ainda: o controle e o rigor alcançados mediante treino e adaptação a um cotidiano refinado e cheio de regramentos, mas cujo subsolo está repleto de sujeira - de mentiras, como Giovanna acaba concluindo.

"A vida mentirosa dos adultos" é, dessa maneira, um autêntico trabalho de Ferrante. Estão aí as grandes marcas da autora, sobretudo as que se manifestam na tetralogia: os conflitos entre uma Itália subalterna, pobre e esquecida e uma Itália rica, ilustrada e enraizada nos enclaves exuberantes.

O campo de batalha são as transformações no corpo de uma garota, que se vê na encruzilhada de caminhos distintos: de um lado, o pai exemplar, mas que a deixa; do outro a tia, o ramo degenerado (segundo a versão paterna) e negado, tal como o dialeto napolitano, a língua que se infiltra nas frestas do italiano com o qual se escreve e conversa, como um código de civilidade.

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As pontes entre esses dois mundos nunca se desfazem por completo, é o que parece dizer a escritora. E todo sofrimento deriva de apagar um ou outro. Mesmo quando seus personagens recalcam essa natureza, tudo volta, seja em rasgos de memória ou na repetição do sangue.

Uma derradeira presença é a do abandono, figurado na separação dos pais de Giovanna, um tópico presente em toda a obra de Ferrante, na qual as separações e divórcios costumam funcionar como estopim para o rearranjo da vida de mulheres e homens.

"Segredos" explora mentiras mantidas em confinamento na vida dos adultos

É possível haver coincidência no fato de que dois autores comumente associados lancem ao mesmo tempo romances que não apenas se tangenciem, mas se complementem? É o caso de Domenico Starnone, com "Segredos" (Todavia), e Elena Ferrante, com "A vida mentirosa dos adultos" (Intrínseca), ambos publicados no Brasil quase simultaneamente.

Se Ferrante reelabora temas que lhe são caros, como a família, a subalternidade, a violência e as máscaras sociais, Starnone também revisita o universo que se abre na sua prosa: as relações familiares e suas tensões, ora recalcadas, ora explicitadas nos conflitos domésticos.

Em "Segredos", o escritor apresenta Pietro, um professor cuja vida se constrói meticulosamente, tal como um projeto que se desenrola por cálculo. Assombra-o, no entanto, um segredo, dividido muito tempo atrás com uma mulher: Teresa.

Não se trata de qualquer pecadilho, mas de um terrível segredo capaz de fazer ruir sua carreira como escritor e pensador reconhecido nos círculos da intelectualidade italiana.

Namorados, Pietro e Teresa se desentendem e, embora amem-se profundamente, deixam-se. O professor casa-se com Nadia. Nascem-lhe filhos - um deles é Emma, uma jornalista de vida conjugal agitada e que depois irá narrar parte da história.

O livro divide-se em três relatos: o de Pietro, que consome quase todo o espaço; o de Emma; e o último, da própria Teresa. Como se enxergassem o mesmo problema sob ângulos diferentes, acrescentam detalhes e informações, revelando camadas do que está encoberto, mas sem nunca chegar à revelação pela qual se espera: o teor e a gravidade do segredo.

É esse pacto em torno da mentira e de uma busca que aproxima Starnone de Ferrante, ambos já intimamente ligados por meio da suspeita que paira sobre o casal. Afinal, Anita Raja, com quem Starnone (também um pseudônimo) é casado, já foi apontada como o rosto por trás do nome da autora da tetralogia napolitana.

Oriundo de Nápoles, mas vivendo em Roma, Starnone parece espelhar suas histórias nas obras de Ferrante, tal como já havia sucedido com "Dias de abandono" (2016), romance que tem conexões com "Laços" (2017), o primeiro volume da trilogia do escritor - a ele seguiu-se "Assombrações" (2018), todos publicados em português pela Todavia.

Os pontos de contato entre os dois autores são estreitos. "Segredos" aprofunda esse vínculo, como se sugerisse jogos de leitura, que vão desde o enredo e suas implicações até as questões de autoria.

Num aspecto, porém, divergem. Se Ferrante é caudalosa e grave quase todo o tempo, traçando amplos painéis da história italiana, Starnone é breve - seus três livros, juntos, não rivalizam em tamanho com um volume da tetralogia. Mas não se enganem: cada um é de uma potência avassaladora.

A vida mentirosa dos Adultos

Elena Ferrante
Tradução: tradução de Marcello Lino
Editora Intrínseca
431 páginas
Preço Médio: R$ 59,90

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