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Antropóloga Izabel Accioly aborda papel de pessoas brancas na luta antirracista
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Antropóloga Izabel Accioly aborda papel de pessoas brancas na luta antirracista

Segundo a antropóloga Izabel Accioly, "as pessoas brancas precisam rever seus atos racistas para quebrar esse tipo de comportamento e, quem sabe, impactar na estrutura racista da nossa sociedade brasileira"
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Antropóloga Izabel Accioly aborda papel de pessoas brancas na luta antirracista
 (Foto: Reprodução Instagram Izabel Accioly)
Foto: Reprodução Instagram Izabel Accioly Antropóloga Izabel Accioly aborda papel de pessoas brancas na luta antirracista

Izabel Accioly, mestra em Antropologia pela Universidade Federal de São Carlos, pesquisa violência, prisão, raça, racismo e branquitude desde 2015. Neste ano, durante a quarentena em virtude da pandemia do novo coronavírus, a pesquisadora iniciou um curso online sobre relações raciais no Brasil para questionar: afinal, quais são as possibilidades e impossibilidades de pessoas brancas na luta antirracista? Hoje, o Vida&Arte entrevista Izabel para compreender a desigual e excludente formação da sociedade brasileira.

O POVO: Na obra "Casa-Grande & Senzala", Gilberto Freyre defende que o Brasil vivia uma harmoniosa fusão entre portugueses, indígenas e africanos. Construiu-se um imaginário hegemônico que define o País como uma nação miscigenada — e, portanto, livre de racismo. O que é o mito da democracia racial? Como ele afeta a sociedade

Izabel Accioly: A democracia racial apontada por Gilberto Freyre em "Casa-Grande & Senzala" é motivada pelo lugar de fala dele. Freyre escreveu esse livro observando as relações da janela da casa grande. Acaba por fazer uma análise enviesada e romantizada de um ciclo de violências e estupros acontecidos e que resultaram na miscigenação que temos hoje no País. A perspectiva romântica de Freyre se quebra quando pensamos nas práticas de resistência que o povo negro desenvolve desde sempre em nosso País, como os quilombos, por exemplo. Se essa relação era tão boa, por que fugir? Se há tanta harmonia, por que lutar por liberdade? O que acontece é que esse mito acaba se popularizando por ser uma tese confortável, que não sugere que brancos se repensem e que devem se responsabilizar pelas violências cometidas contra o povo negro. Infelizmente, esse mito ainda é presente no nosso País. Quando falamos sobre raça, é comum que uma pessoa branca se esquive dizendo "não há brancos nem negros no Brasil, somos todos miscigenados". É verdade, a miscigenação aconteceu, entretanto, o País continua fortemente marcado por desigualdade sócio-racial. A miscigenação não apaga o racismo.

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OP: Dos 13,5 milhões brasileiros vivendo em extrema pobreza, 75% são negras e negros, de acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE em 2019. Qual é a relação entre racismo e desigualdade social?

Izabel: A escravização do povo negro, o tráfico negreiro é um dos marcos fundantes desse País. O Brasil já nasce como um país segregado racialmente, onde existiam posições sociais determinadas baseadas na sua cor da pele. Em 13 de maio de 1888, os negros escravizados "tornam-se livres". No dia 14 de maio de 1888, o dia seguinte à "abolição", esses negros tornam-se os empobrecidos. Não houve qualquer tipo de indenização ou mero pedidos de desculpas. O que vai acontecendo é que as margens continuam contendo o mesmo tipo de pessoas, mas essas pessoas vão mudando de nome: primeiro elas eram os escravizados, depois eram os empobrecidos e depois os encarcerados. Aqui no Brasil, as classes sociais têm cor. Como apontado, 75% de negras e negros estão no grupo dos pobres e 75% dos brancos estão no grupo dos ricos. É costume dizer que nosso problema é de classe porque nós somos empobrecidos e não porque nós somos uma sociedade racista. Entretanto, pessoas negras que furam essa bolha e que conseguem ascender socialmente e enriquecer através do seu trabalho, elas não têm problema do racismo resolvido — pelo contrário, muitas vezes ele se exacerba visto que os ambientes elitizados e de pessoas enriquecidas são brancos. Uma pessoa negra sendo o pontinho negro em um ambiente branco sofre muito mais racismo.

OP: O que é branquitude? Quais suas características?

Izabel: A branquitude se manifesta em três aspectos: é o pertencimento étnico racial do branco, é o topo da hierarquia racial e é também o nome que se dá a esse grupo social que tem privilégios raciais, simbólicos e materiais. Uma das principais características da branquitude é sua suposta universalidade. Brancos não são racializados. Há uma frase da Grada Kilomba que sempre uso para exemplificar essa característica que diz assim: "Uma mulher negra diz que é uma mulher negra, uma mulher branca diz que é uma mulher, um homem branco diz que é uma pessoa". É como se o branco fosse a representação de tudo que é humano. Além disso, segundo Maria Aparecida Bento, brancos compartilham de um pacto narcísico onde se favorecem, se protegem, se premiam, se contratam, se citam. A branquitude se considera bela e, Narcisa que é, só vê beleza em seu espelho. Outra característica é a fragilidade branca. Geralmente pessoas brancas têm baixa tolerância a estresse racial. A menção à discussão racial faz pessoas brancas ficarem na defensiva, adotarem comportamentos agressivos ou evasivos. Esses comportamentos servem para estabelecer um conforto racial, servem para garantir que brancos não sairão desse lugar confortável e privilegiado. É por isso que brancos não querem falar sobre raça. Têm medo de perder seus privilégios. Quando uma pessoa branca recusa essa ideia de que ela tem privilégios por ser branca, eu geralmente costumo perguntar se ela gostaria de ser tratada como uma pessoa negra é tratada aqui no Brasil. Geralmente, a resposta é "não". Então, eles entendem que não há vantagem em ser negro e há vantagem em ser branco.

OP: Na última segunda-feira, 3, a historiadora Lilia Schwarcz publicou um artigo na Folha de S.Paulo criticando a cantora Beyoncé por "glamourizar negritude" no álbum visual "Black is King". Em sua opinião, o que esses posicionamentos nos revelam?

Izabel: Lília Schwarcz é uma pesquisadora de narrativas negras, escreveu a biografia de Lima Barreto, dentre outras pesquisas sobre o povo negro. Entretanto, nesse artigo, ela demonstra o quanto desconhece nossas referências. Ela tem como centro a narrativa branca, compara Beyoncé com Shakespeare, algo que não faz sentido. Schwarcz tece uma crítica a um suposto retorno a uma África mítica — o que ela não enxerga é que Beyoncé não está rememorando um passado romântico, mas nos apresentando uma ideia de afrofuturo em que o povo negro é próspero e feliz. A prosperidade de pessoas negras incomoda pessoas brancas. Em dado momento do texto, a antropóloga manda Beyoncé sair da sala de estar. Para onde Schwarcz espera que Beyoncé volte? Para a senzala? Perdão, isso não acontecerá. É bom que brancos se acostumem com pessoas negras nos espaços de poder, de beleza, de simbologias positivas. Além disso, Lília Schwarcz tem um histórico complicado quando se trata sobre raça. Em 2006 ela assinou o Manifesto Contra Cotas na USP. Anos depois se desculpou pelo posicionamento, mas o estrago estava feito… Schwarcz não percebe isso, essas referências não dialogam com ela, ela só vê "oncinha e brilho".

OP: Qual é o papel de brancas e brancos na luta antirracista?

Izabel: É muito comum que pessoas brancas utilizem o conceito de lugar de fala distorcendo, dizendo "eu não vou falar sobre racismo porque não é o meu lugar de fala". Entretanto, essa distorção serve para se eximir de uma responsabilidade. Pessoas brancas são racistas. São os brancos que são os agentes do racismo, então é sim o lugar de fala do branco falar sobre o racismo. Contudo, não como um lugar de fala de quem sofre o racismo, mas de quem o pratica. As pessoas brancas precisam rever seus atos racistas para quebrar esse tipo de comportamento e, quem sabe, impactar na estrutura racista da nossa sociedade brasileira. A sociedade brasileira é fundada pelo racismo — o marco fundante do nosso País é a escravização do povo negro, é a dominação dos povos indígenas, é a supremacia branca. Não foi a questão de classes que fundou isso, foi realmente a desigualdade racial que veio antes da desigualdade social. O que eu defendo é que pessoas brancas são sempre racistas. Do mesmo modo que um homem que sabe que é machista pode rever esses posicionamentos e tentar ter atitudes menos machistas, pessoas brancas também podem fazer o mesmo: sabendo-se racistas, sabendo o seu papel dentro dessa estrutura racial desigual no nosso País, os brancos podem ter posicionamentos que quebrem com isso. Brancos podem ser antirracistas? Na minha opinião, não. Brancos podem ter atitudes antirracistas? Pra mim, sim. Obviamente que dentro do movimento negro existirão pessoas que vão discordar de mim, eu não sou a régua do movimento. Nós, pessoas negras, somos múltiplas e temos múltiplas opiniões sobre assuntos diversos. Mas enquanto pesquisadora, estudiosa da branquitude, eu identifico que pessoas brancas podem ser aliadas na luta antirracista a partir do momento em que têm o compromisso ético e político de não perpetuar essa estrutura.

Curso sobre relações raciais e branquitude

Quando: Turma XI dias 18 e 19 de agosto, das 18h às 20 horas. Turma XII dia 29 de agosto, das 14h às 18 horas
On-line
Quanto: R$40
Inscrições: Formulário - Curso sobre relações raciais e branquitude
Informações no perfil @afroantropologa no Twitter e no Instagram

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