A pergunta que intitula este texto está em "O Livro dos Abraços", publicado em 1989 pelo autor uruguaio Eduardo Galeano. "Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar", responde-se. Há 70 anos no Brasil, ela vem definindo rumos sociais, políticos e comportamentais, pautando discussões, provocando controvérsias, estabelecendo imaginários.
A TV chegou ao País como item de consumo de elite, mas se consolidou como algo popular e quase essencial nos lares brasileiros ao longo das décadas. Segundo dados da "Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018", do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 96,4% dos domicílios do País tinham televisão naquele ano.
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Foram inúmeros marcos, mudanças, adaptações e atualizações ao longo das sete décadas da televisão no Brasil, uma grandeza difícil de dar conta. Da inovadora transmissão de imagens empreendida pela TV Tupi-Difusora em 1950 ao vídeo sob demanda, a linha do tempo não pretende esgotar os fatos dessas décadas ou separá-las cartesianamente, mas sim apresentar um panorama onde cada fato se entrelaça e destacar momentos e contextos relevantes dessa história.
1950 - As primeiras vezes
Em 18 de setembro de 1950, foi realizada "a primeira transmissão de imagens no Brasil", como define o professor e pesquisador baiano Othon Jambeiro em "A TV no Brasil do século XX". A responsável pelo marco foi a TV Tupi-Difusora, comandada pelo empresário Assis Chateaubriand. Jambeiro ressalta que a transmissão inicial foi para "cerca de 500 aparelhos receptores na cidade de São Paulo". Três meses depois, eram dois mil aparelhos. Várias outras primeiras vezes marcaram a década de estreia da TV: em 1951, foi transmitida a primeira novela brasileira, "Sua vida me pertence", de Walter Foster; em 1952, era exibida a primeira edição do célebre "Repórter Esso"; em 1954, era a vez do primeiro seriado produzido no Brasil, "Capitão 7", na TV Record; já em 1955, a Tupi realizava a primeira transmissão direta, exibindo um jogo de futebol; e em 1956 foi também a uma partida do esporte, entre Brasil e Inglaterra, que marcou a primeira transmissão direta interestadual. Por volta de 1957, eram 10 as emissoras em operação no Brasil.
1960 - Novidades na tecnologia, no regime e no Ceará
Em "Perfil da TV Brasileira", Sérgio Mattos define 1964 como o marco de início da "segunda fase do desenvolvimento da televisão". Othon Jambeiro aponta que nessa década a TV adquire "contornos de indústria". Isso porque, de uma réplica do modelo do rádio, começa a "adquirir processos de produção mais adequados às suas características enquanto meio". A criação dos festivais da canção, em 1965, pode ser vista como uma forma da transição entre os veículos. O videoteipe, o VT, ajudou nesse sentido, tendo estreado em 1960, na ocasião da inauguração de Brasília. A partir dali, a TV passou a ser um "veículo de massa", impactando todo o território brasileiro. Foi também em 1960 que foi inaugurada a TV Ceará, pertencente ao mesmo grupo da TV Tupi, o Diários Associados. No livro "A Televisão no Ceará (1959/1966)", o professor Gilmar de Carvalho dá conta dos contextos que levaram à essa chegada e dos primeiros anos da empreitada. A integração nacional e o desenvolvimento tecnológico, inclusive, são marcas do impacto da ditadura militar na TV, importante para que o regime pudesse "persuadir, impor e difundir seus posicionamentos, além de ser a forma de manter o status quo após o golpe", aponta Mattos. A ditadura apostou no desenvolvimento da TV no País, criando órgãos estatais, formulando leis para o setor e tornando o aparelho televisor isento de taxas de importação, por exemplo. Jambeiro registra que o número de aparelhos foi de dois milhões, em 1964, para quatro milhões em 1969.
1970 - Dramaturgia e censura
Foi nessa década que a TV colorida chegou ao Brasil, em 1972 - mas por um preço altíssimo, que chegava, segundo Jambeiro, a 20 vezes o valor do salário mínimo da época. No mesmo ano, a Globo consolidou um movimento que vinha fazendo desde o fim dos anos 1960 e sedimentou-se como líder de mercado. Na década de 1970, a dramaturgia brasileira se desenvolveu mais plenamente. Alguns dos infantis mais icônicos da TV foram veiculados nesse período, como a primeira versão da Globo do "Sítio do Picapau Amarelo", a "Vila Sésamo" (TV Cultura e TV Globo) e "Os Trapalhões". As grandes produções, porém, eram as novelas. Jambeiro registra que uma pesquisa realizada em 1975 e publicada pela Revista Veja apontou que 30% dos brasileiros desejavam transmissões de novelas aos domingos, 80% assistiriam a duas novelas diariamente caso tivessem tempo e 60% veriam até três. Entre obras da década, estão "Dancin' Days", "Escrava Isaura", "Gabriela" e "O Bem-Amado". Outra característica dos anos 1970 foi a censura e a influência militar na programação das emissoras. Um caso emblemático é o da novela "Roque Santeiro", que seria exibida em 1975, mas foi proibida pelo Departamento de Ordem Política e Social. Uma nova versão foi produzida e veiculada em 1985.
1980 -Fim da Tupi e da censura
Nos 30 anos da TV, já eram mais de 100 emissoras funcionando e mais de 20 milhões de aparelhos em todo o País. Um passo tecnológico importante foi a criação do videocassete doméstico, que possibilitou produção independente de vídeo logo no início da década. Em 1988, o número de videocassetes no Brasil era de quase três milhões. Outro ponto de destaque foi a Constituição de 1988, como contextualiza Jambeiro, marcando o fim da censura e fazendo com que o governo pudesse somente classificar programas e sugerir horários de transmissão. O ponto mais simbólico dessa década, porém, foi a falência da Rede Tupi de TV, dona da TV Tupi, primeira emissora do País. O governo decidiu revogar a concessão dos canais do Diários Associados, grupo da Tupi e também da TV Ceará, em junho de 1980, por conta de problemas financeiros.
1990 - TV por assinatura
Um dos destaques do começo da década foi a bem-sucedida novela "Pantanal", da Rede Manchete, que voltou à pauta após o anúncio de refilmagem da obra pela Globo. Em termos de tecnologias e novidades, porém, o destaque inegável da década foi a implementação da TV por assinatura (a cabo, por satélite e por MMDS) no País, um dos últimos da América Latina a ter o serviço. Em dezembro de 1993, registra Jambeiro, eram 160 mil domicílios com assinatura do tipo. As discussões em torno da TV por assinatura foram, também, um marco de processos regulatórios e legislação para o setor. Ainda em 1989, os grupos Globo e Abril tiveram permissão do governo para operar por subscrição, desenvolvendo os serviços ao longo dos anos 1990. A Globosat, por exemplo, foi lançada em 1991, somando cerca de 50 mil assinantes em 1993, número considerado baixo. As condições do setor, afirma Jambeiro, eram "desfavoráveis" até a aprovação da Lei do Cabo, em 1995.
2000 - Impactos digitais
A Internet começou a ser "sentida" pela televisão antes mesmo da virada do século. Foi a partir de 2000, no entanto, que mudanças maiores foram instauradas, com iniciativas de convergência entre TV e Internet. Em 2003, o Grupo Globo lançou uma central de conteúdo digital, o Globo Media Center, que unia o Globo.com com a disponibilização de parte das programações da TV Globo e da Globosat. Em produção de 2004, a pesquisadora Suzy Santos apontava para a "inexorável tendência" da convergência das comunicações. Um exemplo prático da ligação foi o reality show Big Brother Brasil, que tinha programação pay per view, transmissão na web, edição diária na TV e votação do público por meio de ligações telefônicas e site. Ao contexto, some-se ainda os celulares: com o desenvolvimento da Internet e um maior foco no digital, a TV passou a ser não somente acessada por aparelhos como computadores e celulares, mas também se utilizou deles e de elementos do mundo digital. Em texto de 2009, o pesquisador Sérgio Mattos prenunciava: "o aparelho celular digital vai provocar mudanças mais radicais".
2010 - Impacto dos streamings
Nos 1950, a TV era a novidade em si. Nos anos 1970, as cores. Nos anos 1990, a TV por assinatura. Na década de 2010, chegou a popularização dos serviços de streaming no Brasil. A gigante Netflix, por exemplo, chegou ao País em 2011. De lá para cá, várias outras surgiram, como Prime Video, Hulu, Disney + e Globoplay - esta última do Grupo Globo, que vem investindo fortemente no serviço. Por conta dessa nova oferta, a outrora inovadora TV por assinatura entrou em crise. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) indicam que o mercado de TV a cabo perdeu 1,7 milhão de assinantes em 2019, somando 15,2 milhões no total. A Netflix, maior plataforma do tipo no Brasil, não divulga dados, mas projeções recentes indicam que o serviço já pode ter até 17 milhões de assinantes no País.
2020 - Da década recém-iniciada, o que esperar?
É difícil prever movimentos a longo prazo, ainda mais em um contexto em que as mudanças ocorrem rapidamente. Vale ficar atento, porém, aos impactos dos streamings, em especial para as TVs abertas, que vêm também investindo em plataformas próprias, como a já citada Globoplay, da Globo, e o Play Plus, da Record. Isto sugere que o modelo tradicional busca reinvenção e que a TV está longe de acabar. Questionado sobre uma previsão para este fim, o teórico e pesquisador Gabriel Priollisintiza:"Ela talvez morra a muito longo prazo, mas antes disso ainda vai fazer muita coisa e dar muita contribuição".
Fontes: "A TV no Brasil do século XX", de Othon Jambeiro; "História da televisão brasileira: uma visão econômica, social e política" e "Perfil da TV Brasileira", de Sérgio Mattos; "Uma convergência divergente: a centralidade da TV aberta no setor audiovisual brasileiro", de Suzy dos Santos; Associação Brasileira de TV por Assinatura; "Globo Media Center: Televisão e Internet em processo de convergência midiática", de Ana Sílvia Lopes Davi Médola; "A televisão digital, a convergência, a produção e distribuição de conteúdos para celulares e receptores móveis", de Sérgio Mattos; O POVO.doc