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Livro infantil de Carolina Campos valoriza saberes da cultura amazônica
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Livro infantil de Carolina Campos valoriza saberes da cultura amazônica

"Levado", obra da escritora Carolina Campos com ilustrações do artista plástico Pablo Manyé, valoriza os saberes encantados da Floresta Amazônica
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Ilustrações do artista visual Pablo Manyé para o livro Levado, de Carolina Campos (Foto: ilustrações pablo Manyé)
Foto: ilustrações pablo Manyé Ilustrações do artista visual Pablo Manyé para o livro Levado, de Carolina Campos

"Muito longe, a mais de um mês de caminhada partindo de Xapuri, dizem que existe um arraial perto da nascente do Amazonas, numa montanha tão alta que, se os meninos abrirem a boca nas manhãs úmidas, podem comer um pedaço de nuvem". Entre as paisagens oníricas do sem fim amazonense, onde mata e homem se fundem em um, nasceu um menino afoito como o vento. Levado, personagem fictício que empresta nome ao livro da escritora cearense Carolina Campos, é protagonista de uma história infantil repleta de saberes encantados, ancestrais. As ilustrações, cheias de profundos azuis, são do artista plástico Pablo Manyé.

Feito formiga em dia de chuva, o menino engoliu a maciez úmida das nuvens e criou asas. No errante voo da vida, conheceu o Xamã da Montanha e atentou-se aos conhecimentos transmitidos de geração em geração no cerne da América Latina. Nas palavras de Carolina, o realismo mágico que se desdobra no livro "Levado", publicado em 2018 pelo Armazém da Cultura, "de folha em folha" chegou ao papel. "Deve ter sido uma escritura na filigrana de uma folhinha verde, bem no alto de uma árvore da Floresta. O vento passou e o farfalhar foi sussurrando de folha em folha até chegar na Chapada do Araripe e pousar em minha folha em branco. Ela resgatando suas origens vegetais e eu, no ofício que meus ancestrais me legaram", acredita a autora.

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A escrita corre no sangue de Carolina — filha de Natércia Campos e neta de Moreira Campos, grandes referências literárias cearenses, a autora de "Levado" costura laço com a palavra desde criança. "Quando meu avô e minha mãe me contavam histórias havia prazer. Eram encantados pelas narrativas. Ao discutir leituras, se iluminavam. Essa vida na palavra surge a partir do amor. Eu vivo na Literatura. É o alpendre de minha casa, onde vá. É minha avó, Nadir Saboya, conversando com meu avô, Moreira Campos, sobre Guimarães Rosa. É esse ambiente, antes mesmo que eu o entendesse. Criança é criatura observadora. Eu queria sintonizar esse mundo. Quanto à minha mãe, ela une falta e presença constantes. Como eu gostaria que Leonor, minha filha, tivesse conhecido a avó. Leonor é a cara da menina que imaginei para 'Noite das Fogueiras'. Ela puxou a uma personagem da avó. São encantamentos de minha mãe, minha primeira 'Casa'. Quando se cumpriram sete anos do falecimento dela, reeditei 'A Casa' do jeito que deveria ter sido, fiel ao texto", relembra.

No ano de publicação de "Levado", 2018, Carolina criou a Festa Literária do Cariri (Flic). "Mexi com todo mundo: três cidades — Crato, Juazeiro e Barbalha —, trouxe escritores, entre eles Ana Miranda e Ronaldo Correia de Brito, tive apoio da URCA, UFCA, Escola de Saberes, dentre muitos outros. Preciso desse ecossistema. É meu jeito de viver. Para fazer a Flic, aproveitei minha experiência na curadoria da Bienal Internacional do Livro de 2014 para as homenagens a Moreira Campos", compartilha. Mestre em Direito e docente na área, Carolina concilia leis e livros: foi presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE e membro fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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"Em 2020 sai a segunda Flic. Devido à pandemia, será virtual. Para adultos, estou acabando de reunir meus poemas, que comporão um pequeno livro. Tenho já estruturado um romance, que se passa entre o final dos 1980 e o começo dos 1990, o personagem principal é um professor. Contos, ainda poucos, sem pressa, virão mais. Quanto aos infantis, estou preparando mais três, todos com bichos: iguana, vaca e cabritos, que esperam o final da promoção de 'Levado' para serem soltos no papel", adianta Carolina. "Apreciamos a literatura muito antes de saber ler. Acredito que a civilização é um passar a tocha, de geração em geração", complementa Carolina.

 

Levado, de Carolina Campos com ilustrações de Pablo Manyé, traça seu enredo através da cultura latino-americana, sua diversidade e mistérios.
Foto: Divulgação
Levado, de Carolina Campos com ilustrações de Pablo Manyé, traça seu enredo através da cultura latino-americana, sua diversidade e mistérios.

Pablo Manyé, ilustrador de "Levado", é apaixonado pela potencialidades da luz e da cor. "A ilustração está muito vinculada ao prazer. As cores são complexas, fascinantes e até misteriosas, ao ponto de só existirem na cabeça de cada observador. As ondas da luz entram por nossos olhos e o cérebro trabalha como um incansável pintor colorindo tudo. Como artista plástico, conhecer as tintas, as cores e as luzes se me apresentou sempre como parte fundamental de meu trabalho. Esse interesse e estudo se concretizaram no meu pós-doutorado na Universidade de São Paulo, no qual propus uma disciplina autônoma, para a qual dei o nome de Cromologia", aponta.

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Marido de Carolina Campos, Pablo compartilha que inicialmente não queria ilustrar o livro, mas "Levado" foi aparecendo nos sonhos, misturando-se com os textos que o artista e pesquisador já estava estudando. "Antes de pensar em ilustrar o 'Levado', estava estudando um pigmento que é conhecido como 'azul maia' e suas aplicações nos códices, principalmente o que recebe o nome de 'Códice de Madri'. Estava fascinado pela pesquisa. O que foi curioso é que eu não sinto ter recriado nada. Tenho a sensação de que em certo momento apenas continuei o relato, passando a explicar a história maravilhosa criada por Carolina. Acho que minha abordagem desses estudos tem a ver com o que recomenda Philippe Descola, no caso da Antropologia: parar de fazer perguntas. Acredito que quando você escuta de verdade um novo tipo de resposta surge do seu interior. No final, peguei aquarela e papel e saíram do jeito que o leitor pode ver reproduzido. Nada foi retocado pelo computador. Qualquer erro que possa ter surgido ficou dessa maneira. Queria ter essa cumplicidade com o leitor de que essa fantasia era levada com toda sua profunda e respeitosa verdade", finaliza.

Melca Nogueira, publicitária e designer artística
Melca Nogueira, publicitária e designer artística

Levado por Ventos Xamânicos

O que diria o tempo se fosse narrador? Você se surpreenderia se soubesse que ele não é passageiro? Que ele é o vento que está aqui, assistindo a tudo? Que seus pés não voltam, nem param? E que seus olhos testemunham de coração aberto os destinos?

"Levado" é uma curiosa expedição pelo universo da sabedoria xamânica, que nos conduz com a intensidade dos fortes ventos para além das fronteiras das culturas densas do mundo amazônico. A aventura migra um pequeno aprendiz do seu vilarejo para o seu desígnio por territórios mágicos que precipitam as emoções da existência, posiciona no conforto da conformidade com propósitos divinos, caindo de um fardo para se dissolver na aceitação dos planos da vida. Provoca questionamentos que nos permitem preencher com liberdade as suposições da nossa própria existência, da nossa vocação à revelia, ao acaso, fortalecendo a importância da consciência de cada ser no papel de assumir responsabilidade no que nos é comum.

Assim convocado pela espiritualidade, um sacerdote acumula anos de experiência, aprende ensinamentos sobre a cura presente na natureza, procedimentos medicinais, musicais e ritualísticos necessários para se defender de qualquer desequilíbrio, torna-se o especialista da prática ancestral dos saberes sagrados, guardião do seu povo.

Carolina marca com sutileza as passagens do tempo e nos remete às lembranças nostálgicas e às hipóteses remotas do modo de vida ameríndio, em contato direto com a sinergia da natureza e seus desdobramentos, da sabedoria distante, da oralidade. Sua aura estabelece liberdade de espírito.

Através das ilustrações, voamos juntos com um menino alado, descobrindo territórios pouco explorados da biodiversidade e arranjando aspectos estéticos para os endemismos doutra cultura, com as sutilezas estéticas que nos tiram do frio da suposição, aquecendo-se nas fortes expressões de Manyé, reforçando os afetos com a terra e consagrando a beleza da narrativa lúdica para caracterizar essa descoberta multicultural.

Airem seus pulmões, porque vamos pra lá do Xapurí, à luz dos significados, e sobre este suporte de riqueza cultural que conecta cavernas às plantações. Uma obra com fenômenos celestes que testemunha signos outros, enriquece cenário e concebe imaginação, privilegiando uma visão que provoca e inspira. A sensação original que "Levado" nos dá é que o lugar do pássaro é no seu próprio voo, que se permite trilhar um caminho solitário, que reconhece o poder com retribuição e sabe que voltar não é pra tempo e nem pode ser contratempo.

Melca Nogueira é publicitária e designer artística

Capa de Levado, de Carolina Campos com ilustrações de Pablo Manyé
Capa de Levado, de Carolina Campos com ilustrações de Pablo Manyé

"Levado", de Carolina Campos

Com ilustrações Pablo Manyé
Editora Armazém da Cultura
44 páginas
Dimensões: 205x 275 mm
Quanto: R$ 40

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