"Parece que tudo foi dito sobre os Irmãos Aniceto. Não foi", atesta o jornalista, professor e pesquisador Gilmar de Carvalho ao O POVO. A afirmação vem no contexto do falecimento do Mestre Raimundo Aniceto, remanescente da segunda formação da banda cabaçal Irmãos Aniceto. Após dias internado no Hospital São Camilo, no Crato, ele morreu na noite da quinta, 15. Há cinco anos, o artista vinha sofrendo com consequências de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Os Irmãos Aniceto, aponta Gilmar, "formam um grupo ímpar demais para caber nas gavetinhas dos pesquisadores. São muito mais que uma banda cabaçal, ainda que seja uma das mais competentes que estão tocando por aí. Eles dançam e não é uma dança qualquer". O grupo traz consigo história centenária que remonta ao período em que o povo indígena Kariri vivia no território onde hoje é a região do Cariri cearense.
As origens da banda são difíceis de precisar, mas centram-se na figura do pai de Mestre Raimundo, Zé Aniceto, ainda que a arte tenha sido passada para ele, por sua vez, pelo próprio pai. "A Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto é uma manifestação cultural totalmente contemporânea, mas que se constrói sobre a memória ancestral da família Aniceto, reinventando essa memória na atualidade", dá conta o professor Pablo Assumpção, autor dos livros "Anicete, quando os índios dançam" (UFC) e "Irmãos Aniceto" (Ed. Demócrito Rocha).
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"Mestre Raimundo, que era agricultor e artista como seu pai, seu tio e seus irmãos, tinha muita clareza sobre esse vínculo entre passado, presente e futuro que confere valor a qualquer tradição cultural verdadeira. Ele falava sobre esse vínculo com doçura e orgulho", lembra Pablo. Secretário da Cultura do Ceará, Fabiano Piúba define Mestre Raimundo como um "griô brasileiro". "Mestre Raimundo Aniceto vem do tronco velho dos Kariri. Herdeiro de tradição secular, Mestre Raimundo é um grande griô brasileiro das artes e dos saberes das bandas cabaçais do Sertão do Cariri cearense e nordestino", afirma o gestor.
O título de "Mestre" que o artista recebe não é somente por justa reverência: em 2004, ele foi reconhecido enquanto Mestre da Cultura pela Secult. Em agosto de 2019, outro reconhecimento: o Museu Casa de Mestre Raimundo Aniceto, iniciativa do projeto de museus orgânicos empreendida pela Fundação Casa Grande e pelo Serviço Social do Comércio do Ceará (Sesc/CE), foi inaugurado na intenção de preservar patrimônios materiais e imateriais do Mestre e dos Aniceto.
Cantor, compositor e músico, Calé Alencar - que já teve parcerias com os Aniceto - resume o artista como "Mestre menino, mestre mais iluminado, futuro e nosso passado, um sopro no mêi do mundo". "Salve, meu mestre, seu Raimundo Aniceto, que seja de luz a vida, a morte e a ressurreição. Após três dias você vira uma taboca, quando for no tempo certo, nas ondas do mais sagrado, feito winu cariri, tu aparece encarnado, pelas mãos de uma criança, tocando pife outra vez", poetiza Calé.
Os Aniceto fizeram apresentações do Cariri à Europa. A jornalista Eleuda de Carvalho, encontrou com os irmãos em diferentes ocasiões. Antes mesmo do contato profissional, porém, encontrou a banda no palco do Theatro José de Alencar. "A primeira vez que vi a banda cabaçal dos Irmãos Aniceto nem me dei conta do que tinha visto. Foi ainda no final dos anos 1970, eu com 19 anos, no Movimento Massafeira, organizado pelo Ednardo", remonta. Duas décadas depois, trabalhando na Rádio Universitária, pôde ver outra apresentação do grupo, essa no Crato, junto de Hermeto Pascoal.
Além da música e das performances, os Aniceto também figuraram em produções audiovisuais de diferentes épocas do cinema brasileiro. Uma das parcerias mais frutíferas foi com o cineasta Rosemberg Cariry: "Pífanos e Zabumbas" - curta documental gravado em 1988 mas ainda inacabado -, "O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto" (1985) e "Siriará" (2008),por exemplo. Além destes, os Aniceto também fazem aparição em "Dona Ciça do Barro Cru" (1979), de Jefferson Albuquerque Jr., e são um dos focos de "Zabumba" (1974), de Zelito Viana.
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O cineasta travou distintos encontros profissionais com o grupo e Mestre Raimundo, seja em festivais ou produção de discos. "A música/dança dos Aniceto, pela beleza e profundidade, rompe a camisa de força do regional e insere-se em um contexto de universalidade e de contemporaneidade. Encontramos, assim, esse grupo trabalhando com a genialidade de Hermeto Paschoal, com o free jazz internacional de Ivo Perelman, com a renovação musical/nordestina do Quinteto Violado", avalia Rosemberg.
Além de superarem noções fechadas dos tempos passados, Mestre Raimundo e os Aniceto torcem, também, noções de futuro. "São músicos e xamãs de rituais cujo sentido não deciframos de todo. Raimundo Aniceto foi um pifeiro dos deuses. Tinha uma liderança forte sobre o grupo. Mas não abria mão de sua banca de vender farinha e goma da Feira do Crato. Esta a diferença: a síntese entre natureza e cultura. Eles se perdem em relação ao tempo do grupo. Somam as idades e a gente vê que dançaram desde sempre, nunca pararam, e vão dançar até quando estivermos aqui, neste planeta ameaçado", acredita Gilmar.