"Em arte a gente não quer astúcias intelectuais, mas vida pulsando, embora sem saber como pulsa e por que pulsa", escreveu a cearense Rachel de Queiroz na introdução da obra "Romance d’A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta" (1972), de Ariano Suassuna. "Suassuna olha para esse mundo com a visão do exilado, ainda na adolescência arrancado ao seu sertão natal; por isso sempre o descreve muito belo e mágico; por isso tem recuo suficiente para descobrir o mistério onde os da terra naturalmente só veem o cotidiano", complementou a escritora. Ao 18 de outubro de 1970, o dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta e professor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) lançou o Movimento Armorial no programa do concerto "Três Séculos de Música Nordestina" — uma ode à cultura popular do nordeste brasileiro, um mergulho na erudição daquilo que desavisados contemplam como ordinário.
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Há 50 anos, o Movimento Armorial enaltece os saberes que se perpetuam no solo irrigado de histórias e modos de vida ancestrais. "A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos 'folhetos' do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus 'cantares', e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados", conceituou Suassuna. No Ceará, o Armorial guia os caminhos de artistas e grupos como a Orquestra Armorial do Cariri, o poeta Virgílio Maia e a artista visual Côca Torquato.
"A minha opção de ir para o armorial foi consciente: eu queria fazer uma arte eminentemente brasileira, uma arte que fosse compreendida pelo povo", compartilha a pintora, escultora e ceramista Côca Torquato. Em seu trabalho, Côca resgata das pinturas rupestres do Seridó norte-rio-grandense e dos Inhamuns no Ceará às marcas do gado na terra. "Ariano nos falou de uma arte erudita a partir das nossas raízes mais profundas, calcadas na arte popular. Nós somos uma cultura totalmente mesclada de povos: europeus, africanos, indígenas — que já eram os donos da terra... Nós somos uma mistura de tudo isso; maracatu, xilogravura, cordel, barro, bordado, Espedito Seleiro, Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto", adiciona a artista visual. Nesta quinta-feira, Mestre Raimundo Aniceto encantou-se. Como Suassuna, entretanto, o mais velho integrante da banda cabaçal segue vivo no oco do mundo, "imorrível".
Entre rabecas, pífanos, zabumbas, violas caipira, violões, rabecões, marimbaus e violoncelos, a Orquestra Armorial do Cariri musica a herança do Ceará. Nascido em Fortaleza, o multi-instrumentista Di Freitas chegou ao Cariri nos idos de 2000 e lá conheceu o Mestre Ze Oliveira, ilustre rabequeiro de Juazeiro. "Ele estava bem velhinho, sabia que ia morrer e precisava manter essa tradição. Assim, em 2002 a gente começou a musicalizar crianças usando rabeca. A Orquestra foi criada para homenagear o Mestre, que tocou e viajou com a gente", relembra. Hoje com 19 integrantes, o grupo toca um repertório todo fundamentado na tradição oral do Cariri, criado e repassado por cinco Mestres e Mestras.
"A importância do Armorial é o reconhecimento da erudição que existe na oralidade. Dizem que a cultura popular é algo que nasceu do nada, do acaso, as pessoas não dão importância a isso — mas o Movimento Armorial veio para dizer que a cultura popular é tão rica quanto a erudição acadêmica. Existe uma erudição enorme na cultura popular: o saber dos Mestres, dos instrumentos, esse saber está em tudo", defende Di Freitas. "Esse saber é construído e repassado nos pés do mestre. É uma coisa muito íntima, muito próxima. Mas esse saber não pode se restringir só à família do Mestre, ao filho, ao neto. O grande sucesso da Orquestra foi mostrar para o mundo que existe esse local chamado Juazeiro, que os Mestres existem e nós existimos com eles. O Mestre se alimenta desse reconhecimento", adiciona.
Inês Pinheiro, professora do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará, pontua que Suassuna entendia a arte como uma representação fundamental da cultura de um povo. "Entendia, no entanto, que os grandes temas da humanidade, que não eram muitos, eram comuns a todos os homens de qualquer cultura e a maneira de manifestá-los era o que constituía suas singularidades. Em mais de uma ocasião, evocou Tolstói para defender sua ideia de 'falar da aldeia, para falar do mundo'".
A crítica de Suassuna à construção do universal homogêneo foi, por vezes, interpretada como xenofobia. "Em várias ocasiões, Suassuna teve de enfatizar que seu rechaço não era ao forâneo, ao estrangeiro, mas à uniformização disfarçada de universalidade. É certo que houve um certo estigma de xenofobia em torno da pessoa, do ativista cultural, mais do que sobre sua obra, e isso, penso eu, em opinião de quem não conhecia verdadeiramente Ariano Suassuna. Talvez porque seu senso de humor, sempre afiado, levava-o a professar publicamente, quase sempre em tom anedótico, certo repúdio a países que, em sua opinião, promoviam — através de uma superioridade econômica e/ou política —, um apagamento das culturas regionais, através da imposição midiática de uma cultura de massa, sem valor artístico. Ele dizia, em tom bem humorado, que alguém tinha de ser radical nisso porque o outro lado era. Mas alguém que admirava abertamente a arte — a música, a literatura, a dança, as artes plásticas — de artistas de tantos países, sem distinção, a acusação de xenofobia não se sustenta. Sua visão sobre a arte era ampla, generosa, e, usando um termo muito em voga atualmente, era muito inclusiva", finaliza Inês.