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"O Barco", filme do cearense Petrus Cariry, cria fantasia sobre linguagem
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

"O Barco", filme do cearense Petrus Cariry, cria fantasia sobre linguagem

"O Barco", de Petrus Cariry, apresenta embate entre permanência e mobilidade a partir de conflitos numa pequena e misteriosa vila de pescadores. Filme chega hoje aos cinemas
Tipo Opinião

Uma das primeiras frases ouvidas em "O Barco", novo longa do cineasta cearense Petrus Cariry, é: "Pelo mar, quase nada chega e quase nada se vai". Essa fala guarda em si uma ideia central para o filme. A certeza de uma pretensa estabilidade afirmada está questionada na própria afirmação, no "quase". Se quase nada chega ou se vai, abre-se espaço para algo que chegue e algo que se vá. É no embate entre movimento e constância que o filme se desenrola.

No longa, que adapta para cinema o conto homônimo de Carlos Emílio Correia Lima, o cenário é uma pequena vila de pescadores na qual vivem Esmerina (Veronica Cavalcanti), Pedro (Nanego Lira) e seus 26 filhos. Ela é uma mulher simples, com pouca alfabetização, que encantou-se pelo alfabeto e nomeou cada rebento com uma letra. Ele é um pescador que, após um trauma, emudeceu. Os filhos ajudam na lida, mas a pesca só ocorre na beira da praia, com rede. Em meio a um momento de maior dificuldade em conseguir peixes, surgem, direto do mar, uma mulher misteriosa e um barco encalhado.

Rompendo a estabilidade daquele cotidiano, os novos elementos mexem, em especial, com A (Rômulo Braga), filho mais velho do casal. Tendo acesso a somente uma possibilidade de existência durante toda a vida, ele começa a desejar saber o que há depois do mar e antes da vila. Sem tempo definido e apostando numa construção de atmosfera suspensa da realidade - muito a partir dos trabalhos de som, fotografia e iluminação -, "O Barco" desenrola-se como mito, estabelecendo reflexões morais e íntimas a partir da problemática central.

Mesmo sem conhecimentos formais, Esmerina traça na areia ou na poeira da mesa de refeições as letras-nomes dos filhos e, assim, sente o que eles sentem, consegue prever seus passos futuros. Nestes gestos, acaba formando palavras das quais desconhece o significado, como "barco", "deusa" e "adeus". Além desse aspecto fantástico, há ainda a presença do cego da vila, vivido por Everaldo Pontes, que funciona como um profeta no local.

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Não são completamente inteligíveis os motivos que levam Pedro e Esmerina a apostarem na manutenção de costumes e estruturas, mas o trauma que fez o pescador ficar mudo parece ter papel importante nesta escolha. Ao confrontar a mãe sobre a escassez de peixes na beira da praia e a possibilidade de haver mais abundância em mar aberto, ele ouve que, com a rede, é mais seguro e, até aquele momento, ninguém havia reclamado.

A busca constante por segurança vai de encontro com o desassossego que aflige A, que se aproxima cada vez mais da náufraga misteriosa, Ana (Samya de Lavor). Estabelecida na vila, ela passa os dias narrando aos habitantes do local as desventuras de uma jovem em pleno mar. As intenções da mulher também não são cristalinas, ainda mais quando se sugere que aquela trágica trama pode ser mais do que somente ficção.

Como uma Scheherazade litorânea, Ana captura a atenção do público - e de A - com a performática contação de histórias. A personagem surge como contraponto aos pais dele por não somente ter consigo as palavras, mas também por dominá-las, entendê-las.

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São muitas as possibilidades de leitura de "O Barco". Como as ondas, A é impelido a ir em frente, mas acaba sempre puxado de volta. Tanto o movimento quanto a permanência são representados de maneira complexa, com pontos positivos e negativos atrelados a cada um. Se a obra for lida como uma crítica a um ou a outro, depende mais do espectador do que da obra em si. Tanto é que, mesmo após um fim com alguma aparência conclusiva, "O Barco" termina com uma pergunta. Numa reverência ao conto original e do "quase" do início à interrogação final, o filme constrói-se na complexidade da linguagem.

"O Barco", de Petrus Cariry

Quando: estreia nesta quinta, 5

Onde: Cinema do Dragão e Cineteatro São Luiz

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