É da dramatização da palavra que nasce o teatro e a performance no mundo do cearense Ricardo Guilherme - ator, dramaturgo, diretor de teatro, contista, cronista, poeta, jornalista, historiador, memorialista e professor. Sua poética está centrada num pensamento crítico, racional, dialético e minimalista, ao passo que transborda pulsações animalescas, capazes das maiores transgressões e loucuras. Assim ele mesmo define. Completando 50 anos de carreira neste ano, com mais de 200 espetáculos realizados e extenso legado para a cultura e a formação em Artes no País, o autor do Teatro Radical Brasileiro ganha homenagens em programação virtual.
O multiartista apresenta a obra “Antes, Durante e Depois”, hoje, no programa Zona de Criação do Porto Dragão, em parceria com o Theatro José de Alencar. Dirigido por Ricardo Guilherme, Pedro Cela e Artur Luz, espetáculo em vídeo - inédito - interpela o fenômeno teatral em três momentos da representação. Trata-se, não só da preparação de um ator no camarim, mas da própria cena e do ato de despojamento da persona. Transmissão será às 20 horas, no canal no YouTube do Porto Dragão.
Já o Doc.Teatro Ricardo Guilherme, acervo do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC) sobre a dramaturgia brasileira e estrangeira nos Séculos XIX e XX, terá agora versão digitalizada em ambiente virtual. Nesta segunda-feira, 30, às 17h30, será inaugurado o portal on-line Acervo ICA. A coleção, criada por Ricardo Guilherme como Museu Cearense de Teatro, reúne diversas espécies documentais, como textos dramatúrgicos, fotografias e livros, acumulados ou produzidos ao longo da sua trajetória. Em 2010, a pesquisa foi doada pelo artista à UFC e está sob custódia da instituição.
A existência de Ricardo Guilherme passou a abrigar esta Fortaleza em 21 de setembro de 1955. “Sou, portanto, um virginiano, com ascendente em áries e lua em sagitário”, contextualiza. A referência astrológica tem muito a ver com o seu modo de ser. Isso porque, na tese do seu amigo Karlo Kardozo, se é no teatro o que se é na lua. “Na lógica dele, digo que sou um ator sagitariano. Isso serve para falar um pouco sobre o ator que eu acho que sou. O sagitário, o centauro, é metade cavalo e metade humano. Ele tem um comando humano num corpo animalesco. Eu acho que eu sou isso também, em todas as artes. O meu pensamento todo é assim”, explica.
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Tal binariedade está incorporada à sua própria história. Até os quatro anos de idade, Ricardo Guilherme foi gêmeo. Perdeu seu irmão, possivelmente de meningite, em 1959. Ali, o momento cravava a sua condição de existência. “Eu considerado a morte dele um marco na minha vida e no meu jeito de ver as coisas. Até pelo fato de ter convivido muito cedo com a ideia de morte. Éramos daqueles gêmeos que se vestem igual, tinha algo muito daquela mítica de dualidade. Isso é fundamental para mim. Hoje, tenho muito esse pensamento enraizado, trabalho muito com o duplo”.
Pai de quatro filhos e avô de três netos, Ricardo Guilherme destaca: “Eu sou esse cara que nasceu, é muito ligado a essa história e que se transformou em um artista de teatro em todos os níveis”. Em sua carreira, iniciada aos 14 anos nas radionovelas da Ceará Rádio Clube, atuou em espetáculos nacionais e internacionais, viajou representando o Brasil em festivais e deu aulas em universidades estrangeiras. Formulou a teoria e o método do Teatro Radical Brasileiro: uma poética baseada na dialética das coisas, que teatraliza as causas dos conflitos.
Ingressou como professor na UFC no curso de Arte Dramática, em 1979, e foi um dos proponentes do anteprojeto da Licenciatura em Teatro da instituição - onde colabora até hoje. Além da UFC, foi reconhecido como Notório Saber em cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba (Ufpb) e Universidade Nacional de Brasília (UnB).
Especialista em Comunicação Social e em Arte-Educação, foi colunista do O POVO e publicou obras pela Fundação Demócrito Rocha. Ricardo Guilherme também fundou o Grupo Pesquisa (1978), referência em Teatro no Ceará, e foi um dos integrantes da equipe fundadora da Televisão Educativa do Ceará (atualmente TV Ceará) e da Rádio Universitária. Atualmente, apresenta o programa "Diálogo" na TV Ceará. Dentre os prêmios, destaque para o de dramaturgia, concedido em 1987 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Em entrevista ao O POVO, Ricardo Guilherme versa sobre a sua trajetória, alguns dos seus tantos trabalhos, a ligação com o Ceará e a relação com o ofício da arte no mundo contemporâneo. Confira.
O POVO - São 50 anos de carreira e mais de 200 espetáculos realizados. De que forma aquele menino de 14 anos, que começou nas radionovelas da Ceará Rádio Clube, ainda habita em ti?
Ricardo Guilherme - O princípio da minha formação informal na área das artes se deu a partir do rádio. Até hoje, isso se repercute em mim, porque o rádio é uma atividade da palavra, da expressão verbal. O rádio não conta com imagem, mas apenas com a voz humana para empolgar, emocionar, conceituar verbalmente alguma coisa. O meu teatro, o teatro que nasceu desse menino, tem como traço decisivo a palavra. Eu me transformei num escritor, sou muito palavroso no bom sentido. Gosto da palavra, pesquiso palavras. Sou apaixonado por dicionários. Agora, com o Google, não tenho mais o dicionário, mas é um dicionário on-line. E tenho dentro de mim essa coisa do pesquisador. Eu comecei também no rádio, porque, sem nenhuma intenção, eu passei a juntar material de rádio e televisão. Onde hoje é o cruzamento da rua Osvaldo Cruz com Assis Chateaubriand, um grande quadrilátero, existia a Ceará Rádio Clube e a sede da TV Ceará, que está completando 60 anos de implantada.
Naquela esquina, havia um buraco onde se jogava material já usado de noticiários, scripts de televisão, de rádio, de radionovela, telenovelas que eram produzidas aqui, antes ainda das redes nacionais. Eu juntava, quando ainda menino. As pessoas colocam ali para tocar fogo no material. Às vezes, em pleno o incêndio, eu entrava ali para salvar alguns papéis. Esse material conta hoje a história do rádio, do teatro e do teleteatro no Ceará. Eu levei para casa, guardei, com meu espírito de historiador, de pesquisador e memorialista. E, em 1975, criei um Centro de Pesquisa, chamado Museu Cearense de Teatro, que foi instalado inicialmente no Teatro São José. Depois, esteve no Theatro José de Alencar e no Teatro Universitário. Em 2010, após 40 anos guardando, doei todo esse material para a Universidade Federal do Ceará (UFC). Agora, a universidade vai lançar um portal, chamado “Doc.Teatro Ricardo Guilherme”, com todo esse material digitalizado. E existe hoje, no campus do Pici, um prédio em que, entre outras instancias de pesquisa, há uma sala com pesquisadores, arquivistas, memorialistas, técnicos e bolsistas chamado “Doc.Teatro Ricardo Guilherme" - onde consta grande material que aquele menino de 14 anos juntou, naquele buraco que estava pegando fogo.
OP - Como você vê essa contribuição de tantos anos se desdobrando para o virtual?
RG - Me encanta essa ideia de saber que o material pode ser consultado em qualquer lugar, por qualquer pessoa, sem a minha interferência ou mediação. Sem as limitações de espaço que a fisicalidade impõe. Antigamente, para consultar aquele acervo, era preciso que alguém se deslocasse para determinado local. Agora não. É um espaço de pesquisa. É muito bonito. Tem uma frase que eu sempre digo, que é “todo teatro é meu, ainda que não seja o meu”. No sentido de que tudo tem a ver comigo, porque eu me sinto entrelaçado às mil histórias, inclusive das que eu não vivi. O meu acervo se refere ao Século XIX e ao Século XX. Eu parei de pesquisar coisas depois que surgiu a internet. Achei que era preciso cuidar da minha vida, porque eu era um "Nirez do teatro" [o jornalista, colecionador e pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, conhecido como Nirez]. Além de ser o artista, o poeta, ter que produzir e dar aulas. Eu pensei que era preciso criar novas gerações de pesquisadores. Me sinto atrelado às histórias de todos, porque compreendo que a história não se faz de saltos. Ela se faz a partir de resquícios, de resíduos de uma geração em relação a outra. Do eco de uma geração em relação à outra. É nesse sentido que todo teatro é meu, ainda que não seja o meu. Até porque tudo se entrelaça no teatro que você faz. O novo nasce do velho, e o velho nasce e renasce do novo. O novo não surgiu do nada, ele surgiu a partir de algo que o antecedeu. E o velho renasce do novo, porque é se inspirando nessas ressignificações das novas gerações que a gente de outro tempo se recicla, fica atento, fica fiel ao tempo em que se está.
Costumo dizer também que o artista tem que estar em três tempos ao mesmo tempo. Ele precisa estar atrás, ao lado e à frente do seu tempo. Atrás para saber de onde viemos, quem são as pessoas que vieram, o que fizeram, quais contribuições deram para ser o alicerce da nossa pesquisa. Estar ao lado é no sentido de saber como está as demandas do agora, a inserção do atual. Nós, que trabalhamos no teatro, afinal de contas, é para um público específico. O teatro não se perpetua no tempo, ele é feito para aquela plateia. É diferente do cinema, por exemplo, que pode avaliar o artista de um tempo em outro tempo. O artista de teatro divide o mesmo espaço e o mesmo tempo com seu público. E é preciso também estar à frente do seu tempo, no sentido de apontar caminhos e utopias.
OP - Essa relação de tríade lembra um pouco o título da obra “Antes, durante e depois”, que será transmitida no Zona de Criação do Porto Dragão…
RG - Interessante, eu não tinha pensado nisso. Esse vídeo é um ensejo de uma homenagem que o Porto Dragão vai fazer a mim pelos 50 anos de carreira e me pediu para gravar qualquer coisa. Um espetáculo meu, que já tinha sido feito etc. Eu achei que deveria fazer algo novo. Em vez de memória de mim mesmo, queria produzir algo novo. Nós gravamos, com várias câmeras, com direção do Pedro Cela e do Artur Luz. Nós três dirigimos um vídeo, que se chama “Antes, durante e depois”. É uma reflexão sobre o teatro, feita antes da representação, durante a representação e depois da representação. É uma peça inédita, eu nunca fiz no teatro. A não ser um fragmento, quando eu fui homenageado, dia 26 de setembro, lá no Teatro São José. Eu voltei, depois de oito meses sem fazer teatro, para fazer um pequeno trecho do que vou apresentar nesta quinta, 26 de setembro.
É um ator no camarim, refletindo sobre o que ele vai fazer. Depois, mostra o durante, que é a representação em si. E, depois, quando ele volta, já cansado e retirando a maquiagem, é a reflexão sobre o despojamento do ator - que, antes, estava preparado para ser uma persona. Agora, ele vira uma pessoa comum, inserida não mais numa ficção, mas numa realidade. É uma reflexão sobre como é voltar para a realidade, como a potência da representação pode contagiar a militância na vida real, a inserção de uma pessoa na vida real. É uma tripartite, mas são três tempos numa outra dimensão.
OP - Já que estamos falando de representação, queria que você contasse como foi sua estreia, com a peça “O Mártir de Gólgota”.
RG - Estreei minha primeira peça no dia 22 de março de 1970, na Semana Santa. Ia fazer 15 anos. A peça vinha sendo feita regularmente em Fortaleza, no Brasil e no mundo. “O Mártir do Gólgota” é a vida de Cristo, é uma peça tradicional, com uma geração completamente diferente. Geralmente, um menino de 14 anos estreia na escola, com o grupo dele de jovens, com o pessoal da rebeldia. Eu estreei com as pessoas que podiam ser meus pais ou meus avós, com gente que fazia teatro nos anos 1940. Eu estreei numa peça em que eu era o mais jovem. Essa contradição foi decisiva para a minha vida. É tanto que, cinco anos depois, eu já estava criando, naquela teatro que eu estreava, o Teatro São José, um centro de pesquisa em teatro - chamado Museu Cearense de Teatro. "Menino véi", de 20 anos, criando um centro de pesquisa. Porque eu entendi essa dimensão tripartite do tempo, sobre o passado, o presente e o futuro. Estamos perpassados.
Eu nasci nesse mundo. Depois é que eu fui descobrir gente mais jovem, um tipo de teatro mais contemporâneo. Descobri o Teatro Épico. Descobri os teóricos da interpretação do Século XX, Stanislavski, Brecth, Grotovski, dentre outros. E aí fui criar métodos como autodidata. Eu não fiz curso de teatro, mas, aos 24 anos de idade, era admitido como professor da UFC, no curso de Arte Dramática. Fui reconhecido por Notório Saber, para fazer a seleção e o concurso. Estou na universidade desde os 24 anos de idade. Fiquei 40 anos, de 1979 a 2019. Me aposentei, mas, mesmo assim, continuo dando aula como professor colaborador. O colegiado me aceita e, inclusive, me indicou recentemente para ganhar da universidade o título de professor emérito. Porque, para além da carreira, fui autor do anteprojeto de criação da Licenciatura em Teatro da Federal. Em 2010, o curso foi concretizado e abriu seleção. Eu continuo dando aula, eu gosto de estar com os mais jovens, de estar com meus alunos. Só pode ser professor quem tem vocação para ser aluno permanentemente. Claro que eu ensino um monte de coisa, mas o meu conhecimento também é perpassado pelos prismas deles. Também sou aposentado da TV Educativa, televisão que eu inaugurei como locutor em 1974. Eu fui a voz como locutor de cabine que abriu a programação. Fiquei lá até 2018, e continuo lá com o meu programa semanal chamado Diálogo.
OP - Você fundou o Grupo Pesquisa em 1978. O que te motivou?
RG - Até então, eu estava ligado a grupos de outrem. Trabalhei com Haroldo Serra, trabalhei no Grupo Amador de Teatro Infantil, do Raimundo Lima, enfim… Achei que era o momento de dirigir as minhas próprias peças e ter o próprio grupo. O ambiente favoreceu, porque nessa época nós tínhamos o Serviço Nacional de Teatro, uma entidade do Ministério da Cultura. Nós tínhamos o Instituto Nacional de Artes Cênicas. Essas instituições começaram a apresentar editais. A partir dos anos 1970, se criou a Confederação Nacional de Teatro Amador e a Federação Estadual de Teatro Amador. Esta última na qual eu fui, inclusive, vice-presidente. Houve uma nova fase de produção teatral. Para ter acesso aos editais, era preciso ter uma personalidade jurídica. Foram esses dois motivos. A minha autoria enquanto artista proponente de espetáculos e diretor, com meu próprio repertório. O segundo motivo, pelas condições objetivas de produção que se abriram a partir da criação da política de editais na área da cultura.
OP - Ainda no Grupo de Pesquisa, você produziu a peça monólogo “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde. Viajou para vários países. Como foi essa experiência internacional?
RG - Eu fiz várias peças com outros atores, mas, a partir de 1981, estreei no Teatro Universitário o meu primeiro solo. Daí começa uma nova etapa na minha vida. Porque, além das peças com vários atores contracenando, eu criei uma linha de solos. Não foi nada pensado ou premeditado. Foi acontecendo. Eu fiquei com a peça “Apareceu a Margarida”, que é uma peça política, outra característica do meu teatro. No espetáculo “Antes, Durante e Depois” [que será apresentado hoje, no programa Zona de Criação do Porto Dragão], eu digo que eu sou um “artivista”. Eu junto o artista e o ativista. Meu teatro é um teatro de artivismo, ou seja, de militância política, de militância pelas ideias e ideais. Minha peças são engajadas com temas, são para provocar a emoção de pensar o Brasil.
Eu passei com essa peça por São Paulo, Rio de Janeiro. Em 1984, me arvorei por uma carreira internacional. Mesmo sem ter ido embora para o Rio, achei que poderia fazer uma carreira a partir do Ceará. Fui para Portugal, representando o Brasil no Festival Internacional do Teatro de Expressão Ibérica. Fui para outros festivais. Em 1987, estive em Havana, Cuba, representando o Brasil. Fiz outras temporadas na França, na Alemanha, na Itália. Fui para lugares não tão carimbados no mundo urbano da cultura. Fui para Nicarágua, por exemplo, em plena Guerra Civil. A cidade toda tomada pela guerra. Estive em Angola, também durante a Guerra Civil, com toque de recolher. Uma experiência que renderia um livro. Imagina, fazer teatro numa guerra, com a cidade tomada por sequelas.
Juntei tudo isso à ideia de dar aulas. Eu saía do Brasil para fazer espetáculos, mas também para dar aulas, conferências e cursos em universidades de fora. Países como México, Argentina, Uruguai, Tunísia. Eu viajei muito nos anos 1980, mas não me ausentei muito. Ia, mas logo voltava, para não perder meus laços. Continuei em Fortaleza, me enraizei aqui.
OP - Desde 1988, você desenvolve uma longa pesquisa sobre a poética do Teatro Radical, um teatro que questiona as origens dos conflitos, suas nuances e universos cosmológicos…
RG - Exato. Publiquei, inclusive, em 1991, um artigo fundamental sobre a metodologia para o O POVO. É realmente outro marco na minha vida. Meu teatro passa a ser um teatro dialético, minimalista, com ações fundamentais que se repetem, com o princípio da repetição criativa. A busca da radicalidade dos temas. Um teatro baseado na dialética das coisas, que teatraliza as causas dos conflitos e não os efeitos dos conflitos. Passo a produzir um outro tipo de teatro, primeiro tendo eu mesmo como cobaia. Em 1992, montei uma peça chamada “Sargento Getúlio”. Em 1993, montei a peça “Flor de Obsessão”, que eu considero o ápice da experimentação do teatro radical, a síntese do radical. Amor, sexo e morte do Nelson Rodrigues.
Eu mudo minha vida, publico textos sobre isso. Cria-se, na universidade, a disciplina Teatro Radical Brasileiro. Foi publicado, também, sobre a teoria, o livro “O Ator Radical”, do autor José Ipanema, meu ex-aluno. É uma dissertação de mestrado dele. Ele fala sobre Teatro Radical e a minha carreira. Uma biografia do meu pensamento, de mim a partir da teoria. Hoje ele está fazendo doutorado na Alemanha, justamente sobre a dialética do Teatro Radical. A teoria já foi tema de monografias, teses de mestrado e de doutorado.
Em 1998, juntei ex-alunos meus e criamos a Associação de Teatro Radicais Livres. Karlo Kardozo, Suzy Élida Lins, Gil Brandão e Eugênia Siebra foram meus parceiros fundamentais, constituíram comigo o núcleo fundante da Associação. Parceiros intelectuais e de produção, assistentes de direção e atores decisivos no processo do Teatro Radical. A Associação já não existe, mas eram três grupos - o grupo de pesquisa, o grupo pessoa de teatro e a própria companhia. Participaram também pessoas como Luiza Torres, Cláudio César Timóteo, Hertenha Glauce. Criamos, inclusive, um teatro, inaugurado em 15 de abril de 1999. O Teatro Radical ficava na rua Dragão do Mar, era um galpão enorme que já não existe mais. Eram três salas de espetáculos, tinha biblioteca. Aguentamos três anos sem apoio, sem patrocínio ou produção. Nós mesmos sendo nossos próprios produtores.
OP - Um dos espetáculos que marcou a sua trajetória foi “A Divina Comédia de Dante e Moacir” (2000), de sua autoria. Nele, você mescla o universo do poeta italiano Dante Alighieri com o de Moacir, da obra “Iracema” de José de Alencar. Gostaria que você pudesse contar sobre o espetáculo.
RG - Bom falar sobre isso, porque é a peça dentro do Teatro Radical que me faz voltar à minha dramaturgia e à minha interpretação para uma uma “cearensidade” arquetípica. O Teatro Radical tinha começado em 1988 e estávamos em 2000. Eu não tinha tido ainda uma peça que era radical de antropologia cearense. Eu já tinha feito “Bravíssimo”, que era sobre o homem brasileiro. Já tinha feito Nelson Rodrigues, que é tão urbano e carioca, mas eu não tinha feito uma peça cearense de fato, “cearensa”. Eu achava que era preciso, assim como no passado Carlos Câmara criou uma dramaturgia quase uma reportagem teatral sobre o seu tempo, sobre as duas primeiras décadas do século XX. Nós do Teatro Radical precisávamos de uma peça no qual o “cearenso” típico se reconhecesse no seu jeito de falar, que tivesse uma conexão com essa coisa do humor do Ceará.
Então, eu criei uma peça que é toda em "cearensês". Ela pega o personagem fundante da cearensidade, que é o Moacir, filho da Iracema e do português Martim, e junta com o Dante Alighieri. Me inspiro na estrutura do poema dramático da “A Divina Comédia”. No lugar do Virgílio, coloquei o próprio Dante como o guia, que é poeta também, e o guiado coloquei o Moacir. É um encontro de Dante com o Moacir no percurso da terra para o purgatório. E, depois, o céu. Eu coloquei também o limbo, com as crianças pagãs para falar da infância desassistida no Ceará. O poema dramático “A Divina Comédia” tem um viés romântico, da busca do amor, da perfeição, etc. Mas ele é pretexto para manifestação política, coloca no inferno figuras religiosas. Eu também fiz isso. É uma comédia, a peça é alegre. Se passa dentro de uma mala, porque o cearense típico mora dentro de uma mala.
Teatro Radical também tem a ver com mitos. O mito de cada peça é escolhido após a análise da peça. No caso dessa, é o mito do “Judeu Errante”, aquele que não se fixa em terra nenhuma. A peça é sobre isso, sobre um homem que não se fixa. Deus manda chamar Moacir, que é o cearense arquetípico, para conversar sobre essa coisa dele não se fixar na terra, sobre querer sempre conquistar outras terras, de abandonar o próprio chão. Eu contraponho essa ideia do viajante, do Judeu Errante. Trabalhei com o contrário disso, que é o agricultor versus o viajante. O viajante como aquele que desgarra, se desenraiza, e o agricultor como aquele que se enraíza, aquele que vai cuidar da sua terra. A partir daí, há os dois gestos fundamentais da peça, o gesto do “Adeus”, da porção viajante da personagem, e o gesto de “cavar a terra, semear a terra” da porção agricultor.
A peça é fundamental, porque é uma peça marco dessa minha tentativa de fazer uma antropologia cultural do humano cearense. Deus manda chamar Moacir, filho de Iracema, para conversar sobre isso, e faz com que ele volte para Terra, ele não fica lá no céu. Deus expulsa ele do paraíso, coloca ele num pau de sebo. Ele desce do pau de sebo e cai em cima do túmulo da Iracema. Tem, então, um diálogo com a mãe. Diz que não vai mais abandonar o Ceará, não vai mais embora, que ele é um fruto telúrico, que terra e humano formam uma unidade.
Isso tem a ver um pouco comigo também, pensando numa psicanálise do Ricardo Guilherme. É o fato de que eu não fui embora, de que eu não repeti o mito do cearense que vai embora, que vai querer morar no Rio e abandonar a sua cidade. Eu me sinto ainda tão umbilicalmente ligado à história, à Fortaleza. Eu sou uma pessoa cheia de raízes. Eu sou radical, porque esse Teatro Radical também é “de raiz”. É um teatro radical, no sentido de raiz, mas é também um teatro do radicalismo. De uma linguagem radicalizada na presença do homem. É um teatro antropocêntrico, em que todos os sentidos são definidos a partir do ser humano em cena.
OP - No artigo “Teatro Radical Brasileiro”, publicado em 1989 pela Revista de Letras da UFC, você diz assim: "O Brasil, além de sua crise socioeconômica e política, enfrenta uma crise de caráter ético e moral que emperra o processo de redescoberta do País como um espaço potencialmente viável, sobretudo pelo testemunho da sua cultura”. Para finalizar, como você a arte e a cultura no Brasil de 2020?
RG - Mais e mais é preciso ter um “artivismo”. A vocação do teatro é sempre de ir ao encontro e ao confronto. A arte do encontro é o teatro. Ele só existe a partir do encontro, da relação inter humana e do seu tempo. Nós só podemos ser analisados no tempo em que fazemos. O teatro só existe à medida em que está sendo feito. Por isso, nós temos muita sede de estar em cena. Se nós não tivermos em cena, nós não existimos. Um quadro, depois de feito, está feito - assim como a escultura, a poesia, a música. O teatro não. A peça está pronta quando acaba. Para fazer com que ela exista de novo, eu preciso fazer ela de novo. O teatro é uma arte que só existe no gerúndio, enquanto está sendo feita. Enquanto “está sendo morta”, está morrendo. O teatro é feito enquanto se morre. Não é o artista que está morrendo, é a coisa que ele está fazendo. Está se acabando. Ela é conceitualmente, estruturalmente, epistemologicamente efêmera. Cada vez é uma nova coisa - o público e a energia são outros. É um acontecimento novo. Todo dia o teatro estreia e todo dia o teatro morre, porque ele é feito enquanto está sendo feito.
Se o teatro é uma arte intrinsecamente presencial, ele precisa refletir o agora. Nós estamos num agora extremamente licerciados, dominados por uma hegemonia de cultura reacionária, não inclusiva, anti feminista, golpista, fundamentalista, de fake news, anti ambientalista. O artista, por natureza, é um revolucionário. Porque o papel dele é ser esse. Ele está ali para criar novas perspectivas. A arte é feita não para ratificar expectativas, mas para contrariar expectativas. A partir desse contrariar, criar novas perspectivas. Se tira do artista essa capacidade, ele não é artista - está apenas ratificando o que já existe. Nós temos é que retificar. Nós queremos “retransformar” o mundo. Mas não porque nós somos insatisfeitos permanentemente. É também. Mas porque só da mudança, da capacidade de transfigurar as coisas, é que o pensamento existe.
A gente é uma máquina de pensar e fazer pensar. E nós só podemos pensar se tivermos como pressuposto o “e se...”. Diz o Millôr Fernandes, o “se” é aquilo que não é, mas que a gente finge que é para ver como seria se fosse. Trabalhamos para isso, sobretudo os artistas de teatro, que se nutrem do cotidiano. O teatro existe para fazer o pensamento ficar vivo, dinâmico. Sem isso, nós somos permanência. A única coisa que tem como permanência é a impermanência. É da capacidade de questionar, de criar hipóteses, que nós pensamos. Não fazer esse tipo de teatro é tentar impedir que o humano faça aquilo que lhe é próprio enquanto animal racional: pensar.
Para celebrar
"Antes, Durante e Depois", de Ricardo Guilherme. Ep. 11 do programa Zona de Criação
Quando: hoje, 26, às 20 horas
Onde: youtube.com/PortoDragao
Info: instagram.com/portodragaoce
Exposição virtual do Acervo Doc.Teatro Ricardo Guilherme e Lançamento on-line do portal Acervo ICA
Quando: segunda, 30, às 17h30min
Onde: canal no YouTube do Laboratório de Produção Cultural (ICA/UFC)
Info: instagram.com/icaufc