De tão pequena, a aldeia ucraniana Tchechelnik não figurava nos mapas. Enrijecida pelas temperaturas que atingiam 30 graus abaixo de zero, entretanto, fez-se berço: encaminhando-se para o Brasil ou os Estados Unidos — ainda não haviam decidido —, Mania e Pinkhas Lispector se quedaram no lugarejo para o nascimento da filha. Chaya Pinkhasovna Lispector rebentou ao mundo em 10 de dezembro de 1920. Na urgência de existir, nasceu em trânsito e de estrada viveu até 9 de dezembro de 1977. Aos dois meses de idade, Chaya nasceu novamente; agora Clarice; agora no Brasil. "Eu, enfim, sou brasileira", declarou.
O centenário da autora brasileira mais solicitada por editoras estrangeiras é celebrado por uma legião de pesquisadores, leitores e até por quem conhece tão somente frases ou trechos multiplicados em redes sociais. Chaya — ou Haia — significa "vida"; e o nome evocado mantém Clarice Lispector viva, muito viva.
Leia também | "Semana Clarice" celebra 100 anos da escritora brasileira; confira programação
São múltiplas as possibilidades de entrada na vasta e rizomática obra de Clarice Lispector. "A escritora traz questões muito profundas, muito contemporâneas", pontua a pesquisadora Fernanda Coutinho, associada ao Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC). "Destaco, por exemplo, a questão da ecocrítica — a crítica literária voltada para as relações entre o homem e a natureza, essa discussão sobre o que é vivo. Tais estudos críticos foram sistematizados no começo do século XXI, quando a Clarice já tinha desaparecido, mas nas crônicas dela a gente encontra essa preocupação ecológica. Clarice escreveu sobre a matança de indígenas na Amazônia, sobre práticas nefastas que o homem utiliza e que levam à destruição do meio ambiente", relembra.
A densidade dos escritos clariceanos, pondera Fernanda, atravessam problemáticas do presente. "Clarice conseguiu usar o espaço reduzido da crônica para chamar atenção sobre a condição da nossa própria humanidade. Clarice é profunda até nos livros infantis: só o título 'A vida íntima de Laura' já questiona todo o pensamento estereotipado que existe acerca da literatura infantil; já nos causa um impacto muito grande. Nesse sentido, Clarice é transgressora no melhor sentido da palavra. Ela leva a noção do mistério a todos os seres".
Mestre em Letras pela UFC, editor e organizador da coletânea "Visões de Clarice Lispector" (2020) ao lado de Fernanda Coutinho, o pesquisador Sávio Alencar corrobora: "Clarice é, sim, uma escritora contemporânea. Aliás, essa atenção ao tempo presente perpassa toda sua obra. Clarice escreveu seu tempo, atenta aos fatos do mundo, num grau de abertura realmente sem par. Agora, claro, essa atenção ao fora passa pelo filtro de sua subjetividade, de sua vida interior. É preciso saber ler as entrelinhas, como ela própria disse. Não é por acaso que, em uma de suas crônicas, ela se coloca como mãe da Terra, da humanidade, de todas as coisas que estão vivas no planeta. Aí também está seu poder de atração: uma escrita verdadeiramente empática", elucida.
Como quem mordeu a vida e encheu a boca, Clarice Lispector explorou com a língua cada sabor, cartografando passado, presente, futuro. "Ser leitor de Clarice é ser fisgado quando menos se espera. A gente fica se perguntando: o que ela quis dizer com isso? Para a nossa sorte, na literatura de Clarice, não entender também é bom", adiciona Sávio. O uso muito particular da língua e as singularidades dos sintagmas criados em suas obras, ficcionais ou não, enfeitiçam. Os escritos de Clarice são densos, por certo — mas a delicadeza em suas palavras os tornam alcançáveis, palpáveis, compartilháveis.
Jornalista, escritora e criadora da Editora Nós, Simone Paulino acompanha com interesse e curiosidade os desdobramentos da produção da Clarice no mercado literário brasileiro e internacional. "Ela é o tipo de autora que penetra na alma da gente — e no mundo editorial — por sucessivos movimentos de aproximação e recuo. Houve um primeiro momento de interesse internacional pela obra dela, sobretudo na França, quando por lá foram publicados seus livros pelas Éditions des Femmes, uma tradicional e importante editora feminista que fica em Paris. Agora mais recentemente, assistimos uma outra onda com a publicação da biografia escrita por Benjamin Moser, bem como os 'Contos Completos', em inglês. E mais recentemente ainda, ela chegou causando furor em países como a Grécia, onde chegou a figurar na lista de mais vendidos superando o fenômeno mundial Elena Ferrante", enumera.
"Por conta do centenário, a Editora Rocco, que detém os direitos da obra de Clarice no Brasil reeditou todos os livros numa edição belíssima, cujas capas foram compostas com fragmentos de quadros pintados pela própria Clarice. Além de edições importantíssimas como as edições comemorativas de 'A Hora da Estrela' e 'Água Viva' e o último, um volume com 'Todas as Cartas' da autora. Clarice é infinita. Creio que a edição e reedição de seus livros vai atravessar muitas gerações ainda", defende Simone. Outras traduções da obra clariceana são um farol na compreensão da magnitude da autora: na Espanha, a professora Elena Losada já traduziu 12 livros de Clarice Lispector, incluindo obras infantis da escritora. A tradução iídiche, nesse ínterim, também se destaca no resgate às origens judaicas da autora brasileira.
Em "A paixão segundo G.H.", Clarice afirmou: "em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. Tudo tem uma hora exata para ser". A "hora exata para ser" chegou ao escritor e professor Chico Araújo — conhecido nas salas de aula como Sérgio Araújo — ainda na adolescência, quando encontrou Clarice fortuitamente. O gosto pela literatura se amadureceu cedo na vida de Chico, estimulado pelos pais Mário e Estela, mas foi entre as páginas do romance de estreia de Clarice Lispector que a paixão pelas palavras tomou conta da vida do cearense. "O primeiro livro que eu li dela foi comprado pelos Correios, pelo extinta editora Círculo do Livro. Foi uma experiência fantástica, a maneira dela escrever me chamou muito atenção. Depois, vieram muitos outros livros", recorda. Hoje, aos 60 anos, Chico é colecionador da obra de Clarice e dança com as palavras da escritora em sala de aula.
No desejo da partilha de impressões sobre obras clariceanas e desfazer o estereótipo de "escrita hermética", a psicanalista e mestre em Comunicação Sabrina Ximenes criou o Projeto Clarice 100, uma série de leituras coletivas realizadas ao longo deste ano no Instagram (@de_literatura). "A ideia do projeto era que houvesse uma troca dessas leituras de Clarice, mas devido ao ano atípico que nos tomou completamente de surpresa, a proposta ficou ainda mais participativa com as leituras conjuntas e discussões online — além do sopro de vida que foi ter Clarice ao meu lado e de tanta gente o ano inteiro. Fiz um grupo para trocas e compartilhamos nossa relação com a leitura, depois uma das participantes nos instigou a fazer as chamadas de vídeo e assim ficamos".
Clarice morreu na véspera do aniversário de 57 anos. "Veio de um mistério, partiu para outro", como versou o poeta Carlos Drummond de Andrade. Do enigma da esfinge muito ouvimos, muito lemos — a escritora manteve-se afastada de entrevistas, pouco falava à imprensa, vida e obra confundidas. Nos seus últimos anos, foi questionada sobre uma crítica mordaz publicada em um jornal: "Fiquei meio aborrecida, mas depois passou. Se eu me encontrasse com ele a única coisa que eu diria é: Olha, quando você escrever sobre mim, Clarice, não é com dois esses, é com c, viu?".
Aconselhou ainda Drummond, o gauche mineiro: "Deixamos para compreendê-la mais tarde/ Mais tarde, um dia… saberemos amar Clarice". Nas últimas páginas de 'Água Viva', sua obra mais autobiográfica, Clarice Lispector recusou-se: "Não vou morrer, ouviu, Deus? Não tenho coragem, ouviu? Não me mate, ouviu?". Deus ouviu: Clarice vive.