Uma obra que se desvela a partir do universo literário de Bukowski; outra pautada em simbolismos e elucubrações discursivas e visuais; e mais uma que aborda relações familiares de maneira autobiográfica. As diferenças entre "A Morte Habita à Noite", "Última Cidade" e "As boas intenções", respectivamente, são muitas, mas os filmes se aproximam a partir da precisão das escolhas visuais e narrativas que empreendem na construção atmosférica de seus universos, marcando a autoralidade de cineastas estreantes. Os três longas compõem a mostra competitiva do 30º Cine Ceará, que segue até sexta, 11.

A abertura do festival se deu com "A Morte Habita à Noite", primeiro longa do pernambucano Eduardo Morotó. Protagonizado por Roney Vilella, o filme segue Raul, um homem desgarrado e desocupado que se vê desafiado por questões emocionais. A base do roteiro nas obras de Charles Bukowski poderia indicar certos caminhos problemáticos, mas o que se toma do universo do escritor é mais a atmosfera do que o discurso.

O longa traça um retrato bastante singular do protagonista, que poderia facilmente recair em uma representação misógina não fosse a composição precisa do intérprete e, também, o olhar que o filme lança a ele. Ao invés de se apresentar como um drama comum, "A Morte Habita à Noite" toma para si uma estilização que funciona bem, apresentando uma história possível dentro de um universo específico.

Especificidade é, também, uma marca de "Última Cidade", estreia do cineasta Victor Furtado em longas-metragens, que segue a saga de João (Julio Adrião), espécie de vaqueiro moderno que parte em busca de terras que lhe foram tomadas, numa mistura de abordagem distópica e futurista, sertão e Dom Quixote.

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Victor foi membro do coletivo cearense Alumbramento e traz no longa de estreia um filme que se aproxima muito da produção pregressa do grupo, além de ligações com o pernambucano "Bacurau", de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, e o cearense "Tremor Iê", dirigido por Elena Meirelles e Lívia de Paiva. Irmanando-se a trabalhos do cinema nordestino e cearense recente que elaboram questões históricas e do presente a partir da manipulação de artifícios de gênero, "Última Cidade" se sobrepõe às comparações pela atmosfera bastante própria que constrói.

Cada escolha feita pelo filme - seja ela considerada "efetiva" ou não, "engajante" ou não - faz sentido dentro da lógica interna da obra. Sem tempo ou lugar definido, a produção constrói um mapa específico de Fortaleza ao se constituir como um "road movie" por espaços simbólicos da Cidade, quase sempre marcados por disputas de poder - os túneis do Centro de Eventos, os viadutos do Cocó, o Terminal Marítimo de Passageiros, as dunas, os prédios e ruas vazias.

A busca de João, eixo central do filme, acaba sendo um artifício para "Última Cidade" empreender certos trânsitos e poder ganhar relevo a cada encontro com cada figura que atravessa o caminho do protagonista - em destaque especial, os depoimentos de Maria do Carmo e José Rufino, o Pirrita, presença histórica da Praça do Ferreira que faleceu em 2019 e a quem o filme é dedicado.

Em chave totalmente distinta dos brasileiros abordados até aqui, o longa argentino "As boas intenções" é um drama leve com ares de filme indie que se situa nos anos 1990. Trazendo elementos bastantes conhecidos do perfil "médio" da filmografia do país que chega ao Brasil - como o foco nas relações familiares e o uso da música rock característica de Buenos Aires -, a produção de Ana García Blaya desponta pelo caráter amoroso com o qual é construída pela diretora e roteirista.

De partida, o filme revela a inspiração autobiográfica na cartela inicial de dedicatória da obra: "a mi papá y a mi mamá". A partir daí, temos acesso a um recorte da vida de uma família marcada pelas agruras e levezas de um cotidiano cindido entre a estruturada casa da mãe, já com um segundo marido, e o desestruturado lar do pai, um homem de farras, desocupado, que varia de namorada em namorada e, ao mesmo tempo, é uma referência central de afeto e liberdade para os três filhos do ex-casal. Tanto ela quanto ele são representados de maneira carinhosa pelo roteiro.

As interpretações das três crianças são primorosas em naturalidade e honestidade, mas o ponto de vista principal - que representa a própria cineasta - é o de Amanda (Amanda Minujin), filha mais velha que, mesmo ainda criança, assume papéis de maturidade junto aos irmãos menores. A trama cotidiana e de pequena escala ganha profundidade pela escolha de somar à narrativa imagens de fitas VHS, tanto algumas montadas para o filme quanto outras do arquivo real da família da diretora, o que reforça o caráter íntimo da obra. A cada recorte dessas vidas registrado, alargam-se os níveis de afeto e de reflexão sobre família, responsabilidade, amadurecimento.

30º Cine Ceará

Quando: até 11 de dezembro
Onde: exibições presenciais no Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500); on-line no site canaisglobo.globo.com e no canal do Cine Ceará no YouTube; e na TV Ceará
Acesso gratuito. Ingressos para as exibições do Cine São Luiz precisam ser solicitados na Bilheteria Virtual
Mais informações: www.cineceara.com