Na Fortaleza contemporânea, ícones arquitetônicos das décadas de 1960 e 1970 continuamente desaparecem entre a poeira das marretadas. Neste ano, a Cidade perdeu a residência Benedito Macedo, requintada construção modernista do arquiteto Acácio Gil Borsói com jardins do paisagista Roberto Burle Marx. Primeiro cinco estrelas da Capital, o luxuoso Hotel Esplanada — projeto de Paulo Casé inaugurado em 1978 na orla da Praia de Iracema — ficou abandonado por uma década até ser adquirido pelo Grupo M. Dias Branco, que decidiu demoli-lo para construir um edifício de apartamentos no local. A extensa e crescente lista de edificações que tornaram-se pó alerta: descasos públicos e privados apagam rastros da nossa arquitetura moderna.
"A arquitetura moderna no Ceará foi introduzida, principalmente, pelos primeiros arquitetos que vieram formados na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre eles, podemos destacar Enéas Botelho, Neudson Braga e Liberal de Castro. Esses profissionais vinham formados pela chamada Escola Carioca, que incorporou todas as premissas internacionais do modernismo — a ausência de ornamentos, linhas retas, funcionalista, janelas em fita, pilotis; e isso foi aplicado em nossas edificações a partir da década de 1960. Os primeiros edifícios importantes que podemos destacar são os da própria Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus do Benfica", elucida Marcia Cavalcante, coordenadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC. Caracterizadas pelo uso de brise-solei, concreto aparente, estrutura independente da vedação, entre outros recursos e materiais, as edificações modernas em Fortaleza concentram-se em bairros como Aldeota, Meireles, Dionísio Torres e Fátima.
Na área de apartamentos, Márcia lamenta a destruição de edifícios nos modelos térreo e mais dois andares e térreo e mais três andares sobre pilotis. "O índice de aproveitamento desses edifícios é baixo e, com a urbanização e a valorização da área territorial da Aldeota, tem compensado derrubar para construir outros com índice maior. Existem vários exemplares que estão ainda em pé, ainda sendo usados, mas todos ameaçados de destruição. Conversando com os proprietários, a gente viu que as construtoras compram os apartamentos um a um com a intenção de adquirir todos, demolir e construir no local algo de maior porte", denuncia a prática.
Entre os prédios públicos modernos, destacam-se obras como o parque imobiliário da UFC, projetado por Liberal de Castro, Ivan Britto, Neudson Braga; a antiga Biblioteca Pública Menezes Pimentel — hoje renomeada como Biblioteca Estadual do Ceará (Bece) —, de Francisco Célio Falcão Queiroz e Airton Ibiapina Montenegro Jr; o Palácio da Abolição, projeto de Sérgio Bernardes; o Terminal Rodoviário Eng.João Tomé, de Luciano Marrocos Aragão; e a Assembleia Legislativa do Ceará, de Roberto Martins Castelo e José da Rocha Furtado. "Ainda temos, mesmo após as constantes demolições e/ou descaracterizações, um patrimônio de grande qualidade em Fortaleza. Alguns edifícios privados também ainda se mantêm bem preservados, como o edifício Palácio Coronado (1967), do arquiteto Neudson Braga", destaca Igor Ribeiro, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Design da UFC e sócio-fundador do escritório Rede Arquitetos.
No perfil @igorilr na rede social Instagram, Igor compartilha imagens de edificações modernas resistentes em Fortaleza. "A história da nossa evolução urbana e da nossa tradição construtiva vai sendo apagada a cada dia. Não se trata de uma visão romântica, onde nada pode ser mudado, mas de um destaque da importância de se preservar ou de se fazer atualizações de forma responsável. Perde a Cidade e perdem os arquitetos", alerta Igor. Para o arquiteto e urbanista, há caminhos possíveis nas veredas da preservação patrimonial: "Por um lado, a necessidade de se reconhecer mais o acervo moderno como patrimônio — pela proximidade temporal, nem sempre isso é tão fácil. Por outro, para além de ações oficiais de tombamento, é preciso buscar um caminho de conhecimento e da consequente conscientização dos diversos atores sociais envolvidos. Já existem algumas iniciativas nesse sentido, mas cabe uma maior responsabilidade da população em geral, especialmente do mercado imobiliário", complementa.
Clóvis Jucá, professor associado da UFC, corrobora com os posicionamentos de Igor Ribeiro: "Não há mais tempo para lamento. Estamos vivenciando o desaparecimento dos elementos representativos da arquitetura moderna fortalezense. A arquitetura residencial e institucional modernista vêm sendo destruída da noite para o dia. É preciso uma ação de urgência, compromisso social voltado para ações preservacionistas da modernidade arquitetônica. Nos últimos dois anos, edifícios representativos da arquitetura moderna em Fortaleza literalmente tombaram. O Sesi do arquiteto Severiano Porto virou pó. Tem que haver compromisso público com essa pauta. É tempo de discutir a problemática e tomarmos posições urgentes; ou, em breve, nada restará. O que está por trás desta lógica destruidora, onde mais vale um edifício de vinte andares que uma residência moderna? A destruição das bases territoriais de nossa memória nos fragiliza. Ou nós ficamos atentos, ou perderemos completamente esses pilares de civilidade. Sem memória, o povo não se posiciona e a sociedade não se organiza", adiciona.
Para Gérsica Vasconcelos Goes, doutora em Arquitetura pela Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN) e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), as consequências do desaparecimento da arquitetura moderna em Fortaleza são a perda de referências para a construção da memória afetiva do lugar e do pertencimento. "Escutamos que Fortaleza não tem história, não tem memória e isso não é verdade. Quando nos permitimos apreender e conhecer a nossa cidade , passamos a enxergar uma diversidade de bens de valor patrimonial/cultural que inicialmente não tínhamos visto. E isso só é possível com a resistência/existência dos mesmos em nossa Cidade. Aprendemos com o passado para sabermos como chegamos aqui e para onde iremos. Além disso, através de um projeto de intervenção criterioso, é possível recuperar esses bens e torná-los adaptados e inseridos à dinâmica da cidade contemporânea, mantendo as características e os valores patrimoniais", acredita.
"Sem educação patrimonial não há preservação. Precisamos ver, sentir, tocar e reconhecer nossos marcos culturais para que possamos valorizá-los. Quando um bem torna-se símbolo daquela cultura, dificilmente os moradores do lugar irão permitir a sua destruição, pois ele faz parte da memória, do imaginário e das relações daquela sociedade. A cultura faz parte da nossa identidade, ela é importante para nos enxergarmos tanto como indivíduo, quanto como grupo. O patrimônio cultural é a materialização de parte dessa cultura. Quando digo materialização não quer dizer que só devemos preservar o patrimônio material, pois o imaterial também está presente no material e vice-versa. Ambos são necessários para que haja a nossa história e a educação é a mais efetiva ferramenta de preservação dos mesmos", finaliza Gersica.