Em julho de 2017, postagens circularam na internet em busca dos familiares de uma brasileira que havia falecido em Paris. Pela falta de nacionalidade francesa, estava sob responsabilidade do Consulado-Geral do Brasil. O problema era que, se ninguém aparecesse, seu corpo seria enterrado em vala pública. Alguns amigos de ambos os países começaram a se manifestar para que aquela mulher pudesse obter um enterro digno. Exigiam que a vida dela tivesse um desfecho decente pela grande contribuição que garantiu para as artes durante sua trajetória. Ela, que agora poderia estar sepultada entre tantas existências sem lembranças, era a mezzo-soprano carioca Maria D'Apparecida (1926 - 2017). Essa situação chegou até a jornalista e pesquisadora, Mazé Torquato Chotil, que produziu a biografia "Maria d'Apparecida: negroluminosa voz".
Quase esquecida pelas lacunas do tempo, a artista teve influência no cenário da música erudita na década de 1960. Mas, para chegar no auge de sua carreira, precisou enfrentar adversidades impostas pelo racismo. Filha de uma empregada doméstica e do filho do patrão, este nunca assumiu a paternidade. As duas, então, foram enviadas para que a mãe trabalhasse na casa de outra família na capital carioca. Ainda jovem, Maria iniciou seus estudos como cantora lírica e se formou no Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro. O diploma, porém, não garantiu um espaço no Theatro Municipal, e a justificativa para impedi-la era única: sua cor.
Mudou-se para a Europa em busca de um lugar mais acessível para seu trabalho. Na França, mais especificamente em Paris, adentrou no universo artístico. Após anos, iniciou o período em que cantaria "Carmen", ópera produzida pelo francês Georges Bizet. Ao lado de uma trupe, viajou por vários países e, em 1965, subiu ao palco do mesmo lugar que a havia recusado por causa de sua pele. No mesmo ano, também se tornou a primeira afro-brasileira a interpretar a obra na Ópera de Paris. "Ela foi bem aceita pelo público e pela crítica, mas também sofreu muito racismo. Algumas pessoas diziam que não entendiam o que viam 'naquela negrinha', por exemplo. Ela também conta (em entrevistas de época) que uma enfermeira, no espetáculo ("Carmen"), recusou prestar um serviço padrão nela. Mas ela passava por cima de tudo isso", afirma Mazé Torquato Chotil.
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Sua trajetória mudaria drasticamente na década de 1970, após sobreviver a um acidente de carro. Com a situação, decidiu migrar para a música popular brasileira porque não precisaria manter o mesmo ritmo que as apresentações ao vivo exigiam. Neste estilo, também foi popular. Ao todo, gravou mais de 20 discos que perpassam os dois estilos. Sua voz era tão marcante que o escritor Jorge Amado chegou a citá-la como: "a grande voz do Brasil, profunda e bela, escoando em Paris, marcando a presença do nosso canto, de nossa poesia, refletindo nossa face de povo". Também ganhou um poema de Carlos Drummond de Andrade em sua homenagem. "Tua voz, d'Apparecida, é aparição fulgurante, sensitiva, dramática e vem do fundo negroluminoso de nossos corações e vai, e volta e vai", escreve. Enaltecida por muitos, um dos maiores exemplos de sua presença está nas obras do pintor surrealista francês Félix Labisse (1905 - 1982). Considerada a musa do artista, foi retratada em mais de uma dezena de quadros, como "Maria D'Apparecida" (1960), "La fille D'Yemanjá" (1961) e "La Diane des tropiques" (1961).
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Parte da memória da cantora que marcou a década de 1960 permanece perdida. O sonho dela de escrever a própria biografia apenas foi realizado com o lançamento do livro de Mazé Torquato Chotil. "O livro foi feito a partir do que eu tinha em mãos, como artigos das imprensas francesa e brasileira. Também tive contato com amigos dela, mas muitos já estavam mortos", lembra. Existe, porém, a possibilidade de um trabalho contínuo. Desde seu falecimento, de causa desconhecida pela biógrafa, formou-se o grupo "Amigos da Maria d'Apparecida", que solicita na justiça o acesso aos objetos que estavam em sua casa e que foram retirados após a venda do imóvel. O grupo também luta para cumprir outro desejo dela: ser enterrada ao lado de Labisse.
O processo de esquecimento da cantora é uma situação comum em um país que costuma ignorar sua própria história. "A gente, no Brasil, é um país que não guarda memória. Existe, nesses últimos tempos, um movimento de recuperação da memória, mas ainda é muito incipiente. Em São Paulo, por exemplo, se algo é velho, destroem. A preocupação está vindo agora", reflete. Apesar da falta de várias informações, Maria D'Apparecida deve ser lembrada. "Maria D'Apparecida tinha uma força de vontade incrível. Tinha força para chegar aonde queria, apesar das adversidades. Ela mostrou a qualidade da música brasileira para o exterior", finaliza a autora.
Maria D’Apparecida: negroluminosa voz
Editora Alameda
185 páginas
Quanto: R$ 48