"Na Fortaleza dos anos 1950, predominavam as casas, não os prédios. Zanzando pelas calçadas, o menino ouvia Orlando Silva cantando numa varanda, Ataulfo Alves numa cozinha, Chico Alves no jardim, Moreira da Silva no quintal, Silvio Caldas no botequim da esquina. Quem mais? Eram tantos...". A passagem da biografia de Raimundo Fagner ("Quem me levará sou eu", 2019) mostra que sons ele, o tal menino, ouvia quando morava na rua Floriano Peixoto, 1779, Centro. Tinha ainda seu irmão Fares com boa voz, fama de seresteiro e que cantava com Evaldo Gouveia, gigantesco compositor brasileiro, que morava na casa da frente.
De diferentes formas, o novo disco de Fagner volta a esse tempo. "Serenata", estreia pela gravadora Biscoito Fino, alinha canções que, em sua maior parte, foram compostas nas primeiras décadas do século passado e transformaram-se em clássicos das serestas. Quase todo o repertório é reconhecível e teve inúmeras regravações, como "Lábios que beijei", "Deusa da minha rua", "Rosa" e "Malandrinha". Mas todas elas fazem parte das memórias do cearense de 71 anos, que já se devia esse álbum há um tempo.
"Quando eu comecei a gravar com outros artistas, logo veio de gravar com Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, por causa disso. Eu tinha um pouco essa leitura. O primeiro show que fiz na rádio Iracema, estava lá o Cauby", conta Fagner que, anos depois, pode conviver, gravar e compor para esses e vários nomes que admirava desde a infância. "O Cauby vinha aqui em casa, e já entrava cantando. 'Eu adoro a sua casa', ele dizia, e ia na geladeira. E eu só com o gravador seguindo", lembra.
A dívida com essas memórias foi bem paga. "Serenata" faz questão de cumprir tudo o que pede uma boa seresta. A começar pelo acompanhamento que reúne estrelas como João Lyra (violão), Dirceu Leite (clarinete), Cristovão Bastos (piano) e João Camareiro (violão). O trabalho chegou a ser concluído em março, mas teve o lançamento atrasado por conta da pandemia. "Eu fiquei meses com dor de cabeça pra refazer as vozes. Aí refiz todas, pra ficar com tempo de refletir cada letra, cada música, cada melodia", conta Fagner que teve o apoio, mais uma vez, do produtor José Milton.
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"Eu poderia fazer de várias formas, mas com essa sensibilidade, só com ele. Nós botamos uma mesinha de bar aqui na sala de casa pra discutir o roteiro. Acho que dele vingou umas duas (músicas), por que eu sugeria outra com uma leitura do que era melhor de eu cantar", lembra Fagner. E foi por insistência de Milton que "Mucuripe" foi escolhida para encerrar "Serenata". "Ele é que forçou, até que eu coloquei. Nós só pensamos ela em formato de seresta. O formato, quando eu fiz, era outra coisa. Hoje, ela deve ser cantada em muitas serestas", comenta.
Mas, no fim, regravar sua clássica parceria com Belchior foi só mais uma forma de reunir lembranças num disco feito, basicamente, delas. Como um dueto inédito com Nelson Gonçalves em "Serenata" ("Essa com o Nelson, com certeza, foi um momento de reflexão. Era o cantor da minha infância, depois ficamos amigos"). Tem ainda "As rosas não falam", já gravada pelo cearense no álbum "Eu canto" (1978). Ainda o disco "Demais" (1993), outro trabalho de intérprete em que cantou bossa nova e samba canção ("No 'Demais' teve alguns arranjos mais caprichados. Esse agora é mais intimista"). E "Chão de estrelas", clássico maior de Silvio Caldas, que Fagner chegou a trazer para um show em Fortaleza.
Embora não esteja como compositor, a lembrança de Evaldo Gouveia também paira no repertório ("Eu tinha uma relação com ele de família. Era uma pessoa além do mito da canção brasileira, que tinha uma história grandiosa"). E se há a lembrança de Evaldo, há também a do irmão Fares. "Estou com a consciência tranquila por ter feito essa homenagem ao Fares. Esse disco é pra ele", encerra Fagner.
Sem arrependimentos
Nas primeiras entrevistas que deu sobre "Serenata", chamou a atenção as críticas que Fagner fez ao governo de Jair Bolsonaro, a quem havia declarado apoio. "Incomoda, mas hoje em dia tem que se falar. Por mais que isso me incomode", comenta o cantor sobre o fato da política ter chamado mais atenção que a música. "Estou no meio desse tiroteio. Não me sinto bem, tenho amigo dos dois lados. Já fui muito aconselhado a não falar, mas eu sou cabeça dura", completa ele que, por um lado, deixa claro que não há arrependimentos em relação aos seus posicionamentos políticos. "Não me arrependo por que fiz consciente. Eu me sinto no dever de criticar, até por ter votado".
Sobre o período de quarentena, Fagner precisou ficar afastado do filho e dos netos, mas não deixou de se cuidar, fazer suas caminhadas. Num primeiro momento, foi para uma fazenda no interior de Minas Gerais. "A qualidade do lugar já me deu ajuda. Era um lugar bucólico e eu não me senti abandonado em nenhum momento", lembra. Embora tenha feito apenas duas lives, ele também não diminuiu o ritmo de trabalho. "Estou numa dinâmica de trabalho como poucas vezes, mas à distância", completa.