"Se tudo fosse diferente, eu não teria essa vontade de correr, de ir embora, que bate o tempo todo. Mas se fosse assim, eu não seria quem eu sou. E essa não é uma opção". Arlindo está ajoelhado em uma pista de corrida quando questiona como seria viver outra realidade. Diante de suas reflexões sobre o passado, percebe que precisava enfrentar as situações exatamente da forma como aconteceram. Caso contrário, não teria se tornado ele mesmo. Impulsionado por esse orgulho repentino, corre em uma direção que o leitor - e talvez até o personagem - desconhece o destino. Assim começa a história do quadrinho online que conquista o público nas redes sociais desde 2019. Finalizada no início deste ano, a webcomic "Arlindo", de Luiza de Souza, ganha formato impresso pela editora Seguinte.
Nascido em Currais Novos, no interior do Rio Grande do Norte, o personagem tem uma trajetória que se assemelha a de tantos jovens brasileiros. Em meados dos anos 2000, ele lida com os problemas de conviver com um pai homofóbico, que fere diretamente a existência do próprio filho. Esses conflitos familiares são uma parte do enredo, mas não são as únicas situações vividas pelo garoto. Fã de Sandy & Junior, o adolescente encontra conforto no dia a dia com suas duas melhores amigas. Dentro do contexto escolar, Arlindo ainda sofre bullying e experimenta os sentimentos da primeira paixão.
"A gente está acostumado com histórias de personagens LGBTQIA sendo unidimensionais, caricatas, com histórias sempre girando em volta apenas da sexualidade e dos estigmas sociais. Eu queria contar a história do Arlindo. E, para falar dele, precisava falar da cidade onde ele vive, da família, dos amigos, da rotina, dos amores, dos sonhos e das aflições", explica a ilustradora. Segundo a autora, as primeiras ideias para a construção da narrativa surgiram durante a eleição presidencial de 2018, que resultou na posse de Jair Bolsonaro (sem partido). "Eu tinha feito algumas tirinhas na intenção de mostrar como o discurso de ódio que rondou a campanha eleitoral e que está entre nós até hoje era nocivo para as crianças que ouviam. Isso se tornou um estudo sobre um adolescente que precisava ser mais do que o reflexo desse discurso de ódio", afirma.
O lugar em que a webcomic acontece também tem um motivo simbólico: é a cidade em que Luiza de Souza nasceu. "Passei boa parte da minha vida achando que as coisas só iam começar a acontecer de verdade depois que eu saísse de lá - porque nenhuma narrativa que eu consumia se passava onde eu morava. Os cenários eram sempre grandes centros e capitais no Sudeste ou fora do País", indica. A partir dos vários tipos de representatividade que "Arlindo" proporciona, a ilustradora encontra uma forma de conceder espelhos a públicos diversos. "(Quando era criança), nunca conseguia me ver refletida em lugar nenhum e ficava pensando: 'Tem algo errado comigo? Será que não tem ninguém como eu por aí?'. Alguma coisa nessa sensação me inspirou, então, resolvi que era minha missão criar alguns espelhos para que crianças, como a que eu fui, não se sintam monstruosas como me senti".
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Essa possibilidade do quadrinho se conectar com tantas trajetórias individuais explica o sucesso do personagem na comunidade virtual autodenominada de "arlinder". Até o momento de produção desta matéria, o perfil no Twitter da autora, conhecida também como @ilustralu, tinha aproximadamente 50 mil seguidores. Em pré-venda na plataforma de financiamento coletivo do Catarse, a campanha para as tiragens impressas, que serão publicadas pela Seguinte, já atingiu mais de 260% da meta. O projeto pode ser apoiado até 17 de fevereiro e, caso chegue em 300%, terá capa dura. "O objetivo da campanha nunca foi arrecadar dinheiro para viabilizar a edição do livro, já que ele seria lançado de qualquer forma. A ideia era celebrar a comunidade e recompensá-la pelo apoio que a história recebeu ao longo dos anos", explica a editora Nathália Dimambro.
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Entre várias decisões editoriais que foram tomadas para adaptar a webcomic às páginas de um livro, uma das mais importantes se refere ao cuidado com o público. A capa inicialmente rosa se tornou azul escura. "Depois de muitas conversas com a Luiza de Souza e sua agente, Taissa Reis, concordamos que, se a capa fosse no tom de rosa característico da webcomic, muitos leitores adolescentes que sofrem LGBTfobia dentro da própria casa não poderiam ter acesso ao livro", explica Nathália. Agora, a mensagem da ilustradora pode chegar a mais pessoas: "Arlindo está no mundo para mostrar que a gente não está só, nunca esteve, mesmo quando achou que estava. Nossas histórias se costuram sempre, mesmo quando a gente não percebe. Acho que eu só quero que as pessoas tenham a chance de ler e se sentir como um Arlindo na vida, dignos de todas as coisas boas e do amor do mundo todinho", finaliza a autora.
Arlindo
Quando: campanha até 17 de fevereiro
Onde: catarse.me/arlindo
Mais informações: no Twitter @ilustralu