"Somos paridos por meio da frase, da palavra que se fala e da que se cala, da palavra que se manda calar, do significado a impor limite à pele sintática até que se possa reduzir alguém a uma definição confortável". O discurso cria o mundo. O vocabulário – que agrega novas expressões regularmente – é o responsável por definir os universos particulares. Mas, diferente do que Anita Deak escreveu no livro "No fundo do oceano, os animais invisíveis", sua narrativa não se restringe a uma explicação cômoda. Pelo contrário, ela inquieta. A partir do realismo fantástico, a obra acompanha um personagem fictício durante várias fases da vida e dialoga com o contexto de um Brasil por vezes esquecido da memória.
O narrador-protagonista Pedro Naves nasceu na pequena cidade fictícia Ordem e progresso (com "P" minúsculo). "Existe um discurso conservador no País que se elege pela ordem. Mas, muitas vezes, a ordem está dissociada do progresso. O maiúsculo mostra o ideário da ordem, que, na prática, continua do mesmo jeito de sempre", explica a autora sobre a escolha. E, no lugar que "sofrer era desvio de caráter", o personagem prossegue com uma infância comum a tantos brasileiros: frequenta a igreja, ajuda na fazenda do pai e é de uma família tradicional.
Já adolescente, muda-se para continuar os estudos. Conhece Sara e aprofunda a leitura de livros "proibidos" da biblioteca do pai dela. Após vários conhecimentos inéditos, aquele garoto, com sua visão unilateral, ingressa na faculdade e se engaja nas ações da esquerda durante a Ditadura Militar (1964 - 1985). Entre muitas adversidades que enfrenta, o ponto principal surge quando é enviado para a Guerrilha do Araguaia. Criado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o movimento ocorreu na região amazônica e durou anos. Durante o período, poucos guerrilheiros sobreviveram aos combates contra as Forças Armadas.
Com uma essência de realidade, o enredo não se limita a ser somente um romance histórico porque foca nas memórias de Pedro Naves. E, assim como as lembranças, a história passa pelo imaginário e pela verdade. "Não tem apenas a Guerrilha do Araguaia, mostra também a infância dele em Ordem e progresso e o jeito que esse personagem percebe a realidade", comenta a escritora. Mesmo com uma história linear, o tempo ganha uma intercessão entre passado, presente e futuro. "Eu quis mostrar a angústia, a dificuldade e uma série de outras coisas que a gente precisa olhar sobre aquele período. Precisamos ver tudo junto. A ação política e o nosso ideário estão sendo moldados agora. Então, o futuro é agora. Mas se o futuro também estiver atrás de nós?", questiona.
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A manipulação da temporalidade não é o único destaque. Também existe a utilização de vários tipos de narrativa. Em determinadas partes, a visão do personagem norteia o discurso. "A primeira pessoa acontece quando o protagonista já passou por aquelas situações, mas ele ainda se aproxima do tempo vivido. É uma memória", indica Anita Deak. Em outras, o texto está em terceira pessoa para ampliar o foco. "Mostra a relação do homem com a natureza. Quando o homem acha que está no centro de tudo, ele perde o controle e bate nas fronteiras. O objetivo é expandir essa discussão sobre sempre acharmos que somos a grande motriz", complementa. Além disso, há um momento em que o leitor deve construir a própria sucessão dos fatos. "Gosto de trabalhar com subcamadas de interpretação. Apesar da obra ser criada pelo escritor, é o leitor que vai definir várias coisas", diz.
Uma intensa pesquisa foi realizada para a produção do livro. "Li mais de 50 livros sobre a Ditadura Militar, mas não abordo esse período detalhadamente. Acompanho Pedro Naves desde o nascimento e coloquei as informações que caberia para a história", comenta Anita Deak. Além disso, estudou sobre a fauna, a flora, o vocabulário e os indígenas da região que descreve. O processo durou três anos, mas a ideia do livro surgiu quando esteve na Floresta Amazônica tempos antes. "A gente entende a natureza como algo pacífico, mas é absolutamente assustador. Quando dá 16 horas, fica escuro e faz um barulho enorme. Imagine alguém que combateu na guerrilha e precisou aprender a lidar com o ambiente. Muitos recrutas nem sabiam o que estavam fazendo", elucida.
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Em "No fundo do oceano, os animais invisíveis", a palavra é a chave para a descoberta de um personagem que cria, ao mesmo tempo, empatia e desgosto. Ao descrever as muitas fases dessa trajetória, a escritora revela um universo fantasioso com fatos que beiram o esquecimento na mente dos brasileiros. Contar a história a partir do desenvolvimento de uma vivência específica se torna uma estratégia para perdurar nas recordações de quem lê porque, como o livro mesmo revela: "Às vezes, demora a vida para descobrir o que se herda".
No fundo do oceano, os animais invisíveis
Editora Reformatório
172 páginas
Quanto: R$40 (compras no site litterae.com.br)