Quantas vidas cabem dentro de um livro? Na obra "Olhos D'água", escrita por Conceição Evaristo, os quinze contos retratam a vivência de mulheres negras brasileiras e transpassam temas como racismo e feminicídio. Os alunos da Escola de Ensino Fundamental e Médio Aloysio Barros Leal (ABL), localizada no bairro Barroso, em Fortaleza, leram o exemplar no projeto "Vozes Mulheres", idealizado pela professora de literatura Camile Baccin, e traduziram o emaranhado de sentimentos da leitura em 420 cartas.
Dessa experiência nasce a obra "Cartas Para Conceição: Relato de mediações de leituras afro-brasileiras na escola pública", que reúne os escritos estudantis. Assinado por Camile em parceria com a professora Sarah Maria Forte Diogo, o livro será lançado nesta quinta-feira, 11, e será disponibilizado gratuitamente para o público.
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"O ontem - o hoje - o agora / Na voz de minha filha / Se fará ouvir a ressonância / O eco da vida-liberdade", diz o trecho do poema "Vozes-Mulheres", de Conceição Evaristo, que serviu como inspiração para o nome do projeto realizado com os alunos do ensino médio do ABL. Camile, após passar cinco anos em Salvador, percebeu a necessidade de incluir a literatura negra e feminina nas escolas públicas e particulares de Fortaleza. De acordo com a professora, a capital baiana aplica efetivamente a lei 10.639/03, que torna obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana na rede de ensino.
Ao voltar para o Ceará, Camile iniciou a estruturação de uma iniciativa que pudesse trazer reflexões sobre gênero, classe e raça aos seus alunos. Para a professora, promover a leitura de autoras negras desperta a consciência crítica estudantil e funciona como "terapia, desabafo e cura". "Quando eles veem essas histórias contadas na literatura, eles se enxergam como protagonistas", explica. O projeto de leitura "Vozes Mulheres" teve como fio condutor a escrita de Conceição Evaristo, mas também introduziu os estudantes às obras de Angela Davis, Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro, Chimamanda Ngozi, Grada Kilomba, Carla Akotirene, entre outras.
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O que começou como uma roda de conversa entre professora e alunos ao debater um poema tomou proporções cada vez maiores. Os alunos se dividiram em quatro etapas durante o ano letivo para conhecer e desenvolver produções com base nas leituras. "Eu respirava esse projeto", conta Camile. Movida por essa força inserida na iniciativa, Camile decidiu encontrar Conceição Evaristo durante uma viagem programada para a Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2019. Quase como em um enredo literário, o encontro entre a escritora e a professora desencadeou uma sequência de acontecimentos. Conceição estaria presente na XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, que aconteceria no mês de agosto e, após convite feito pela professora do ABL, marcou presença na escola E.E.F.M Aloysio Barros Leal no dia 24 do mesmo mês.
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Neste meio tempo, os alunos realizaram a leitura do livro "Olhos D'Água, distribuído nas escolas públicas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Assim, a "revolução leitora", como descreve Camile, aconteceu nos alunos e reverberou em suas mães, avós e tias após o material ser levado para as suas casas. "Os alunos começaram a dizer para as mães deles que elas estavam no livro. Rolou uma comoção muito grande porque elas pegaram o livro pra ler, foram à escola, debateram, me procuraram. Elas foram absolutamente agradecidas, receptivas, se emocionaram", relata.
A identificação e o pertencimento encontrado nas páginas no livro potencializaram a veia artística dos estudantes. No dia 24, um "divisor de águas", Conceição teve a oportunidade de ver as produções dos alunos que envolviam música, literatura e performance, além de receber o portfólio completo das cartas. Ao se deparar com o conteúdo escrito pelos alunos durante o projeto, Camile teve uma epifania e decidiu reunir o "ouro" em um livro. "Quando eu comecei a ler, tinha muita dor, muita experiência, muita vivência, muita verdade, muita felicidade. A carta é um gênero pessoal, a função emotiva está muito presente porque é um texto em primeira pessoa", relata.
Após um período de produção que durou entre outubro de 2019 e junho de 2020 o livro “Cartas para Conceição: Relato de mediações de leituras afro-brasileiras” será lançado nesta quinta-feira, 11, pelo Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (Inesp). De acordo com a autora, o livro é um relato exitoso de mediação e poderá instrumentalizar ações pedagógicas, tanto na rede particular, quanto na rede pública. "É um compartilhamento coletivo dessa experiência de pensar a quebra do cânone ocidental literário, de pensar a literatura não branca, não masculina. O trabalho docente é valorizado a partir do momento que coloca o aluno como protagonista", reflete. A obra será disponibilizada gratuitamente em formato PDF e a mesa redonda sobre o lançamento, que acontece às 16 horas no ABL, será transmitida através do aplicativo Zoom.
Lançamento "Cartas para Conceição: Relato de mediações de leituras afro-brasileiras"
Quando: Quinta-feira, 11, às 16 horas
Onde: Pelo aplicativo Zoom, através do link: https://bit.ly/2OaOfJM