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Ícone LGBTQIA, travesti Cintura Fina ganha biografia
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Ícone LGBTQIA, travesti Cintura Fina ganha biografia

Na obra "Enverga, mas não quebra", pesquisador mineiro Luiz Morando narra a vida da travesti cearense Cintura Fina, ícone vanguardista da historiografia LGBTQIA
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A travesti cearense Cintura Fina, conhecida como a
Foto: Divulgação A travesti cearense Cintura Fina, conhecida como a "Marilyn Monroe dos detentos" pela imprensa, ganhou biografia de Luiz Morando, professor da UFMG

A navalha, faca de corte rápido, estratégico e quase que cirúrgico, é um objeto marginal repleto de simbolismos — compõe o imaginário das entidades de religiões de matriz africana; é ferramenta de trabalho dos mais tradicionais barbeiros; é instrumento de defesa das prostitutas nas noites desertas das cidades insones; é jogo nos dedos firmes de antigos e rebeldes capoeiristas. Nas mãos da travesti cearense Cintura Fina, que viveu radicada na provinciana Belo Horizonte nos idos de 1950, a navalha foi recurso de sobrevivência. Conhecida como "Marilyn Monroe dos detentos", o ícone da historiografia LGBTQIA ganha a biografia "Enverga, mas não quebra", escrita pelo pesquisador Luiz Morando.

"Cintura Fina chegou a Belo Horizonte em maio de 1953, com 20 anos de idade, e permaneceu aqui (na capital mineira) até o final dos anos 1970. Durante esse período de quase 30 anos, ela se tornou um tipo muito popular e inesquecível na cidade, referenciando-se como uma espécie de lenda pela sua destreza por saber manejar a navalha como autodefesa, pela proteção que ela oferecia às trabalhadoras do sexo, pelo respeito que conquistou entre as pessoas da zona boêmia", explica o biógrafo mineiro Luiz Morando. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Morando é especialista em memória LGBTQIA e autor também da obra "Paraíso das Maravilhas: uma história do Crime do Parque".

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A origem de Cintura Fina, ressalta Morando, ainda é incerta — ela sempre relatou ter nascido em Fortaleza ao 3 de maio de 1933, mas o pesquisador solicitou informações ao cartório de registro civil mais antigo da Capital e não obteve sucesso. Para cartografar a vida de Cintura, o biógrafo acessou notícias e entrevistas na imprensa recolhidas entre 1953 e 1995, 18 processos judiciais a que ela foi submetida e relatos de pessoas que a conheceram. "Sua mãe biológica morreu no momento do parto de Cintura. Eu suspeito que ela tenha nascido em alguma cidade que hoje faz parte da região metropolitana de Fortaleza, mas que tenha sido criada por três tias", compartilha.

Em 1947, segundo apuração do biógrafo, Cintura Fina estava matriculada em um seminário de Fortaleza onde conheceu e se apaixonou por dois primos. Nesse ambiente, os três se envolveram sexualmente e, após descobertos, apenas Cintura foi expulsa. Envergonhada, a jovem de 14 anos mudou-se para a zona de meretrício da Cidade, conhecida como Curral das Éguas. Aos 17, partiu para Natal e seguiu viagem por Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. "Ela nunca retornou a Fortaleza, embora tenha deixado registrado em uma entrevista seu amor pela cidade que ela considerava de origem", explica Morando.

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"Desde os 14 anos de idade, quando saiu de casa, Cintura Fina teve uma atitude constante de enfrentamento em um meio social que sempre foi hostil à sua pessoa e à sua identidade de gênero. Ela precisou se virar para sobreviver e para conviver com sua experiência de estar à margem: era uma pessoa racializada, pobre, periférica e uma dissidente de gênero. A consciência desse lugar sempre exigiu uma disposição para ser constantemente resistente. Por isso, precisou aprender a lutar e se defender por conta própria. Era temida pela polícia e por quem conviveu com ela", continua Morando. "Por outro lado, foi reconhecida por acolher e defender pessoas mais vulneráveis, principalmente as trabalhadoras do sexo e homossexuais afeminados. Tornou-se também uma costureira elogiada, além de uma pessoa com trato cordial, bondosa, prestativa".

Na primeira ocorrência que gerou inquérito policial, nos idos 1953, Cintura Fina foi detida em Belo Horizonte já performando o que se compreende como feminilidade: usava vestido, sandália, sobrancelhas pinçadas, unhas esmaltadas e uma leve maquiagem. "Era assim o seu modo de trajar, fosse dia ou noite, o que já demonstra seu pioneirismo em explicitar sua dissidência em gênero em um contexto em que um padrão cis-heteronormativo era imposto e no qual todas as pessoas que não se enquadrassem nesse padrão eram reprimidas. Respondendo a um inquérito, em junho de 1964, ela declarou a um delegado: 'Eu sou mulher, e nasci mesmo foi para os homens'", ressalta o biógrafo.

Acolhida nos anos 1960 por uma senhora a quem tratava como mãe, Dona Naná, Cintura Fina desenvolveu com ela um lado espiritualista ao se dedicar à umbanda e ao espiritismo. A vanguardista travesti cearense passou os últimos 15 anos de sua vida em Uberaba, na região do Triângulo Mineiro, onde faleceu em 1995. Para Luiz Morando, o trabalho de resgate da memória  LGBTQIA no Brasil é fundamental. "Dentro desse segmento, o público de travestis e pessoas trans é o mais vulnerável. Face a isso, é importante ressignificar e revalorizar a trajetória de vida dessas pessoas, devolvendo a elas uma parcela de humanidade que lhes foi tomada. Além de propiciar a releitura do passado e o reposicionamento sociocultural dessas pessoas e da mentalidade que as cercava, o resgate dessa memória reflete nas gerações mais novas, que passam a ter a oportunidade de se ver no passado, de perceber que aquelas outras que as precederam ajudaram a abrir caminhos que são desfrutados hoje", finaliza.

Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte, de Luiz Morando

340 páginas

Quanto: R$ 58,00

Editora O Sexo da Palavra

Disponível em: www.osexodapalavra.com

 

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