Indicada três vezes ao Oscar - com "Colheita Amarga" (1985), "Filhos da Guerra" (1990) e "Fuga Na Escuridão" (2012) - ao longo de 50 anos de carreira, a polonesa Agnieszka Holland, de 72 anos, pode ser indicada uma vez à estatueta dourada, no dia 15 de março, quando saem os concorrentes à festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, mas, desta vez, como representante da República Checa.
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Sucesso por onde passa, entre o público e entre a crítica, desde sua exibição inaugural, no Festival de Berlim 2020, "O Charlatão" (Charlatan) revê os feitos do herborista Jan Mikolásek, um curandeiro que salvou centenas de vidas na Europa da primeira metade do século 20 usando poções à base de ervas e da fé no mistério da natureza. Sua luta contra a intolerância vem arrebatando elogios por onde passa à força de uma direção de arte impecável ao recriar a Checoslováquia em diferentes momentos do século 20, em especial o período do avanço nazista, na Segunda Guerra Mundial, e na opressão stalinista.
Durante a Berlinale, onde foi considerado o melhor trabalho da diretora desde os anos 1990, o filme foi definido por alguns como uma alegoria do heroísmo picaresco, ou seja: seu protagonista é alguém que usa a esperteza para ludibriar seus antagonistas à base da lábia. Mas, pelo que contou ao Estadão, na Alemanha, Agnieszka fez uma história de amor, com todos os impasses morais possíveis: de gênero, de ideologia, de momento histórico.
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"Nunca houve um posicionamento oficial declarado de países como a Checoslováquia ou a minha Polônia acerca da homoafetividade em um momento histórico de avanço comunista e Stalin sempre se esquivou sobre o tema, ao falar sobre o povo contemplado pela Revolução de sua URSS. Mas o que me chamou a atenção, quando li o roteiro com a vida de Mikolásek, foi o fato de vivenciar uma história de amor gay, contada com um intimismo silencioso e lírico, mas cercada por uma dimensão épica capaz de dar conta de todo o preconceito do Velho Mundo, que ainda está por aí", disse Agnieszka. "É redutor classificar 'O Charlatão' como um 'filme político', porque isso esvazia esse rótulo, uma vez que meu foco aqui são os afetos. O que há de político nele são as esferas do poder que castram os oprimidos, os necessitados. Quem tem fome, quem tem dor, não pensa em política. Mas a política pensa sobre eles".
Interpretado por um muso do cinema checo Ivan Trojan, de 56 anos, Mikolásek dedicou sua vida a cuidar da saúde alheia desde menino, quando demonstrou inusitadas habilidades de cura no trato com elementos naturais à sua volta, mesmo cercado pela pobreza. A cada mudança no controle dos governos europeus, suas perícias vão sendo questionadas: para alguns, ele é um farsante; para outros, um milagreiro. Mas as mais intolerantes células militares comunistas de seu país não estão preparadas para o fato de ele ser apaixonado por seu assistente, Frantisek (Juraj Loj), que corresponde seu amor, mesmo numa relação
às escondidas.
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"Mikolásek salvou pessoas e isso faz com que se aplique o rótulo 'herói' nele, o que considero como um uso banal dessa palavra. Fica mais banal ainda quando se considera a hipótese de ele ter dons sobrenaturais em seu saber. O heroísmo passou a ser associado, no cinema, àquilo que é sobre-humano e não ao que é humanista, com compaixão. Não vou por aí. Eu vejo mais coragem do que heroísmo nos atos de Mikolásek", disse Agnieszka. "Fazer aquilo que se ama não é heroico, é ético. E Mikolásek amava ajudar pessoas doentes. O ponto aqui é partir dele para discutir a história e não o ideal de heroísmo. O problema da história é ela se encontrar em um ciclo perverso de erosão, em que exemplos como o desse curandeiro são esquecidos. É por isso que eu faço filmes históricos."
Um ano antes de exibir "O Charlatão" na Berlinale, Agnieszka esteve lá, em competição, com "A Sombra de Stalin" (2019), que, inédito em circuito nacional, chegou ao Brasil via plataformas digitais como a Looke. Sua trama é uma visita da cineasta ao que classifica como "um império do efêmero ideológico, disfarçado de utopia política": a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991). No longa, chamado "Mr. Jones" no original, a URSS é registrada nos cliques e nas palavras do jornalista galês Gareth Richard Vaughan Jones (1905-1935) como se fosse o cenário de um thriller de horror.
"Não quero causar polêmicas com rótulos, mas tenho fatos que me horrorizam. Minha indignação com Stalin e seu projeto de bloco de nações não é contra a ideia de um sistema socialista de governo. Jamais. Meu incômodo é com os crimes cometidos por Stalin para silenciar aqueles que se opuseram a seus ideais e contra toda uma população que amargou um dos mais cruéis castigos: a fome", disse Agnieszka, que vem vivendo um dos momentos de maior prestígio no cinema, depois de um longo período envolvida com séries de TV, como "The Killing" e "House of Cards".
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"A política matou o cinema checo. Estudei cinema em uma época em que a Nova Onda Checa estava no auge. Ali, havia o que existia de mais sexy e ousado do cinema mundial, com diretores como Milos Forman renovando fórmulas. Eu me reportei a esse movimento ao filmar em solo checo agora, mas de um modo bem orgânico, pois as referências desses filmes nunca me saíram da cabeça", disse Agnieszka. "Mostrar aquela velha Europa me deixa jovem".
V&A Viu: Nem celebrar, nem condenar
Apesar do título frontal e aparentemente definitivo, "O Charlatão" evita fechar-se em certezas muito irredutíveis. A pecha de charlatanismo colada no fitoterapeuta e herbalista tcheco Jan Mikolasek (1889-1973) não é posta nele pelo filme, mas, sim, por oponentes que temem e julgam os poderes de cura do protagonista tanto quanto os desejam. O longa da cineasta polonesa Agnieszka Holland apresenta um retrato biográfico complexo e zeloso de um homem, seu dom, seus afetos e os contextos políticos que atravessaram a eles ao longo da primeira metade do século XX.
Interessado na multidimensionalidade do protagonista, o filme - que aborda a história real de Mikolasek lançando mão de várias licenças poéticas fictícias - apresenta os impactos dos contextos políticos na atuação de cura dele entre a ocupação nazista ocorrida na República Tcheca entre o fim dos anos 1930 e a metade dos anos 1940 e a posterior implementação do regime comunista no País.
Na imbricação entre os diferentes recortes de vivências pessoais, profissionais e políticas, "O Charlatão" retrata a multidimensionalidade possível de uma mesma figura ao compor um complexo panorama do protagonista que busca evitar condenações ou celebrações planas e reducionistas. (João Gabriel Tréz)
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