Nova York, 1995. A negociadora de arte Glafira Rosales chegou na tradicional Knoedler & Company com obras do pintor expressionista abstrato Mark Rothko (1903 - 1970) no porta-malas do carro. Embrulhados em papelão, os trabalhos de um dos mais renomados artistas norte-americanos do século XX eram deslumbrantes: um dos quadros — formado por dois retângulos de bordas borradas, um preto e um vermelho, posicionados verticalmente sobre um fundo amarelo pastel — era um clássico exemplo do estilo de Rothko. Assinatura atrás, data e um acordo de confidencialidade que impedia a revelação nominal do proprietário das peças à venda. Ann Freedman, diretora da galeria à época, pensou: "Meu Deus, isso é um achado!".
Ao longo de quase 20 anos, Rosales vendeu para Knoedler quadros supostamente assinados por artistas como Mark Rothko, Jackson Pollock e Robert Motherwell. Todos falsos. Totalizando US$ 80 milhões arrecadados com as vendas de mais de 60 obras falsificadas para grandes colecionadores do mundo, o caso se tornou a maior fraude artística da história dos Estados Unidos. A galeria, que sobreviveu a duas Guerras Mundiais, fechou após o escândalo. Retratado no documentário "Fake Art: uma história real", lançado na Netflix Brasil em 2021, o golpe suscita debates sobre a obra de arte na era da reprodutibilidade.
No livro "O Roubo da Mona Lisa: o que a arte não nos deixa ver" (2005), o psicanalista britânico Darian Leader defende que a particularidade do desejo que o artista infunde à obra é a razão pela qual não apreciamos falsificações. "Visualmente, poderemos ser até incapazes de apontar qualquer diferença entre a cópia e o original, mas, apesar disso, ainda nos sentiremos ludibriados. Assim, o que um quadro aparenta ser não importa tanto quanto a natureza singular do desejo que está consubstanciado nele, sua assinatura individual. A ideia de falsificar um desejo é absurda e contradiz essa função básica da arte em seu contexto social. O que conta é de onde a obra veio", ressalta. O "de onde a obra veio" citado por Leader é designado de provenance.
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Em uma definição simples, provenance é o histórico da propriedade artística. Palavra de etimologia francesa, o termo abrange o conjunto de pesquisas que podem provar a origem da obra — a quem pertence, quem foram os proprietários, presença em exposição ou leilão, restauração… "Procedência é uma informação indispensável para a garantia da autenticidade de uma obra", defende o marchand, galerista e administrador de coleções Max Perlingeiro.
"A única via de aquisição de obras de arte com segurança é através de uma galeria notoriamente reconhecida", adiciona Perlingeiro. "As falsificações hoje estão presentes como nunca estiveram. Eu tenho uma teoria pessoal: existem falsificações porque existem compradores. Os valores das obras de arte hoje estão expostos na internet através do resultado de leilões públicos ou sites específicos. Se uma obra tem o seu valor médio de mercado em torno de 10 mil e é ofertada por dois mil, ou é roubada, ou é falsa", exemplifica o fundador das galerias Pinakotheke Cultural, Multiarte e Pinakotheke São Paulo.
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Com cerca de quatro mil obras — entre pinturas, esculturas e fotografias —, a coleção de Paula e Silvio Frota começou a ser construída ainda na década de 1980. Diretor do Museu da Fotografia Fortaleza, ele destaca que os processos de venda e compra de obras de arte são múltiplos: "Nós, por exemplo, compramos muito em leilões — onde você entra como convidado ou normalmente como comprador. Já nas galerias é diferente, é uma coisa muito pessoal. Ou nós visitamos as galerias e compramos, ou as galerias nos procuram", explica Silvio. "É como comprar qualquer bem durável. É uma negociação dura, você tem que negociar como se tivesse comprando um terreno. No meu caso, eu tenho muita paciência — por mais que eu esteja apaixonado por uma obra de arte, eu já tenho um preço fixo na minha cabeça, até quanto eu posso pagar. Eu não vou pagar por uma paixão, eu compro olhando primeiro o valor correto", aponta.
"Há praticamente leilões diários na internet, mas os grandes leiloeiros fazem dois leilões por ano: um no primeiro semestre, outro no segundo. Nos leilões nacionais não existem mais grandes obras sendo leiloadas, já que essas obras maiores estão todas em coleções", pontua Silvio. "É muito importante conhecer e confiar na idoneidade dos marchands e galeristas com os quais trabalhamos, é fundamental no mercado das artes. Muitos desses profissionais estudam profundamente as obras dos artistas e conhecem a provenance", sugere ainda.
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Para a produtora cultural Glaucia Andrade, a originalidade das obras de arte se destaca já nas pinceladas na tela. "Eu via muito isso no Picasso", pondera. Atuando também como marchand e curadora, Glaucia se interessou pela arte durante a infância — aos 10 anos, pintou sua primeira tela. Hoje, atua na relação entre artista e colecionador. A produtora já trabalhou com nomes como Zé Tarcísio, Eduardo Frota, Rian Fontenele e Zé Guedes. "A arte me mostrou como o mundo é vasto pelo impacto que ela causa e pela emoção que ela provoca", finaliza.
Sob o pseudônimo russo de Ivan Lermolieff, o médico e político italiano Giovanni Morelli provocou uma revolução nas galerias de arte da Europa entre 1874 e 1876 ao publicar uma série de artigos ensinando a diferenciar cópias e originais. Para intuir o escondido, Morelli destacou os detalhes subestimados: formato das unhas, lóbulos das orelhas, auréolas dos santos… Mas se os métodos para comprovar originalidade avançam, o mercado de falsificações se sofistica. A arte engana muito mais do que se imagina.
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