Em cima do palco, por trás da empanada, a vida ganha outro sentido. Renasce nas distintas silhuetas dos bonecos que se materializam por meio do corpo e da voz de artistas. Há mais de 40 anos, Augusto César Barreto de Oliveira, o Augusto Bonequeiro, estuda com maestria os mamulengos e marionetes, um brincante apaixonado pelo magnetismo de suas criações. Aos 70 anos, celebrados no último 2 de abril, compreende que se não fosse pelos bonecos, também não seria tão humano.
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"Eu tenho uma frase muito simples: eu sou o que sou pelo o que eu faço", esclarece. Com bagagem no teatro de palco, Augusto poderia ter seguido a profissão de ator. Mas insiste que lida melhor com os objetos do que com os colegas de profissão e prefere "mil vezes" ser bonequeiro. "Os bonecos têm nomes, preferências, linguagens. Tem aqueles que você trabalha mais, desenvolve mais, quase trata ele como se fosse gente, é uma criatura", explica.
Nacionalmente celebrado nesta terça-feira, 27, o teatro de bonecos é uma linguagem artística completa para o profissional. "Ela se sobressai porque tem a escultura, a pintura, o texto, todas as características de um personagem e a apresentação é muito teatral", explica. Não há quem escape do feitiço. As crianças se entregam no primeiro vislumbre do brinquedo em cena, enquanto os adultos demoram longos "dez minutos" até retornarem à infância.
Nascido na cidade de Escada, em Pernambuco, ele transitou entre a profissão de bancário e o teatro. A aproximação com os bonecos veio enquanto ministrava aulas de educação artística em escolas públicas no Recife e foi suficiente para que ele se dedicasse profissionalmente à arte de botar boneco, afinal, "não existe nada mais especial do que dar vida a algo que não tem". Augusto fez parte do Teatroneco e ajudou a fundar o Grupo Folguedo de Teatro de Bonecos, o Grupo Bonecos e Mamulengos e o núcleo cearense da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos.
Residente de Fortaleza desde o início dos anos 1980, firmou sua importância como mestre com trabalhos culturais de destaque nacional e internacional. "Isso tudo me dá a certeza de que eu não fui um artista em vão, eu fiz parte da formação de dezenas de artistas, educadores, de gente ligada à cultura", pontua. A metamorfose entre a imaginação de Augusto e as criaturas resulta no protagonismo dos personagens no palco. "Você tem que se livrar um pouco da fantasia de aparecer. Isto para os atores é um tapa na cara. Depois ele descobre a magia e não se importa mais em aparecer", conta.
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O imaginário desta linguagem é um afago na rotina de isolamento em que o profissional vive há mais de um ano. Na maioria dos dias, Augusto brinca com um dos quase 100 bonecos em seu acervo pessoal mesmo com as limitações psicomotoras adquiridas após o diagnóstico de Parkinson. A arte, destaca ele com leveza, o sustenta na superação das adversidades técnicas porque "a fantasia passa por cima da dificuldade", explica.
Com a alma brincante e o riso como pano de fundo, a sua cabeça funciona a mil por hora. Augusto trabalha com Zilda Torres, companheira de ofício durante anos no Grupo Folguedo, na montagem de material em comemoração aos 40 anos de formação. É uma das estratégias para manter os desejos do bonequeiro nestes 70 anos de existência. No presente, ambiciona a lucidez e a produção contínua. Para o futuro, a esperança é retornar aos palcos assim que possível para seguir encantando com os bonecos.
Ao mestre dos bonecos
Memórias de criança parece que marcam bem mais. E eu tenho a de bonecos heróis e vilões, que faziam parte de quase todos os fins de semana de diversões e imaginários lúdicos da minha infância. Vizinha de rua da artista Ângela Escudeiro, que trabalhava com Augusto Bonequeiro, eu era imersa neste mundo das apresentações, dos sonhos, das fantasias.
Meus pais levavam a mim e a minha irmã mais velha para assistir o show de bonecos. Do mesmo modo que os pequenos de hoje ficam vidrados nos desenhos, éramos nós de olhos brilhando para histórias que muitas vezes se repetiam.
Lembro-me da sensação de ver o boneco mocinho perdido, enquanto o vilão vinha atrás. Todas as crianças gritavam (muito) alertando do perigo, mas de nada adiantava, e o personagem bonzinho era capturado para, no fim do enredo, vencer o mal.
É viva na memória, daquela que traz a risada, a lembrança de um dos bonecos que no meio da apresentação assustava a todos, pois tinha um mecanismo de esticar enormemente o pescoço, e nas horas mais inesperadas. Como ser criança é bom. Acreditar que aquilo era real... Mas foi para mim uma realidade na formação do meu lado criativo, que me ajuda a equilibrar minha forte personalidade analítica.
Augusto Bonequeiro nem tem ideia da importância dele e de sua turma em minhas caixinhas de recordações e em todas as alegrias que até hoje estes momentos me proporcionam quando paro para contar. Descrevo tudo isto como um pedacinho da mágica que a vida me deu a oportunidade de vivenciar. Parece pouco, mas tudo isto se transforma em gratidão na vida adulta. Ao mestre dos bonecos, então, o meu muito obrigada!
Beatriz Cavalcante, jornalista do O POVO
Ao mestre dos bonecos
Memórias de criança parece que marcam bem mais. E eu tenho a de bonecos heróis e vilões, que faziam parte de quase todos os fins de semana de diversões e imaginários lúdicos da minha infância. Vizinha de rua da artista Ângela Escudeiro, que trabalhava com Augusto Bonequeiro, eu era imersa neste mundo das apresentações, dos sonhos, das fantasias.
Meus pais levavam a mim e a minha irmã mais velha para assistir o show de bonecos. Do mesmo modo que os pequenos de hoje ficam vidrados nos desenhos, éramos nós de olhos brilhando para histórias que muitas vezes se repetiam.
Lembro-me da sensação de ver o boneco mocinho perdido, enquanto o vilão vinha atrás. Todas as crianças gritavam (muito) alertando do perigo, mas de nada adiantava, e o personagem bonzinho era capturado para, no fim do enredo, vencer o mal.
É viva na memória, daquela que traz a risada, a lembrança de um dos bonecos que no meio da apresentação assustava a todos, pois tinha um mecanismo de esticar enormemente o pescoço, e nas horas mais inesperadas. Como ser criança é bom. Acreditar que aquilo era real... Mas foi para mim uma realidade na formação do meu lado criativo, que me ajuda a equilibrar minha forte personalidade analítica.
Augusto Bonequeiro nem tem ideia da importância dele e de sua turma em minhas caixinhas de recordações e em todas as alegrias que até hoje estes momentos me proporcionam quando paro para contar. Descrevo tudo isto como um pedacinho da mágica que a vida me deu a oportunidade de vivenciar. Parece pouco, mas tudo isto se transforma em gratidão na vida adulta. Ao mestre dos bonecos, então, o meu muito obrigada!
Beatriz Cavalcante, jornalista
Personalidades bonequeiras
Cocorote, Tiridá, Benedito... As inúmeras criações de Augusto seguem vivas na cultura popular. Entre os tantos personagens, três se destacam pela singularidade.
O Fuleiragem, por exemplo, é uma "obra de arte para os bonecos". Criado em 1989, ele virou piadista e até cantor. Com cabelo de crina de cavalo e a boca articulada, Fuleiragem deu projeção ao artista pelo trabalho com ventriloquia. O jeito "imoral e performático", nas palavras de Augusto, captura o público.
Já o Seu Encrenca, de 1992, foi o maior salto profissional do bonequeiro. Falava sobre o cotidiano, a cidade, era "um crítico político muito forte" e tinha presença renomada ganhando, inclusive, uma entrevista ping-pong com o O POVO em 1993.
O Salomão Chibata veio logo após o Seu Encrenca e ficou no ar por anos na TV Tambaú, veiculada na Paraíba. Foi por meio do "ombudsman de João Pessoa", como era conhecido, que Augusto recebeu o título de cidadão recifense.
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