Um baralho é comumente estampado com os símbolos espelhados. O rei, por exemplo, é representado assim: um duplo que aponta para lados opostos. Esta imagem parece representar bem um artista que muito cedo se dividiu entre o homem e o mito. Onipresente na cultura brasileira desde os anos 1960, ele está no rádio, na TV, no cinema, nas revistas, na missa, nos motéis, na sala, no quarto, na cozinha, num cruzeiro pela costa de Búzios, no estádio e no botequim.
É de tal forma que essa presença nos garante uma certeza: é impossível que alguém com idade suficiente para botar um LP na vitrola, dar play num aparelho de CD ou montar uma playlist em qualquer aplicativo de streaming nunca tenha ouvido o nome de Roberto Carlos.
O cantor e compositor que completa 80 anos neste 19 de abril construiu uma obra que tornou-se maior do que ele mesmo supõe. E não é fácil compreender esse fenômeno, se não entendendo que existem muitas faces na história construída por Roberto Carlos. Desde que saiu de Cachoeiro do Itapemirim, munícipio do interior do Espírito Santo, e foi para o Rio de Janeiro, seus caminhos foram se bifurcando entre um lado humano, táctil, real, e outro mágico, grandioso e estrelado. Talvez até para ele seja difícil compreender o tamanho dessa história e o quanto ela mexe com tantas histórias brasileiras.
Se não, vejam: desde os anos 1960, quando a Jovem Guarda transformou aquele rapaz de olhos melancólicos num ídolo da juventude, tudo que Roberto faz vira notícia. Seus romances, seus shows, seus filhos, sua intimidade, suas viagens, nada disso passa despercebido pelo público. Até relacionamentos que nem chegaram a existir ganharam manchetes em veículos de fofoca. Mas isso não o impediu de barrar na justiça uma biografia que reunia todas essas intimidades.
Escrita pelo jornalista baiano Paulo César de Araújo, “Roberto Carlos em Detalhes” é um hercúleo trabalho que consumiu mais de 10 anos de pesquisa e algumas dezenas de entrevistas. Mesmo sendo o autor um fã confesso que fez questão de revelar de onde tirou cada fio de informação, isso não comoveu o Rei, que foi até o fim da batalha jurídica, cuja conclusão foi a retirada dos livros das prateleiras.
Mas o mais curioso é que o biografado fez questão de dizer que nem chegou a ler o livro. Sim, ele apenas se incomodou de saber que sua história estava nas mãos de outra pessoa. Na verdade, essa história está nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na alma de muitas pessoas. Em suas canções, Roberto falou de sua terra, de seus pais, do trauma que sofreu ao perder parte de uma perna, da chegada da maturidade, da zoada que os filhos fazem dentro de casa e até do quanto a presença desses filhos pode interferir na vida de um casal.
Cantou ainda sobre amores feitos e desfeitos. Falando de si, ele invadiu a intimidade de uma nação e mostrou que entende muitos daqueles sentimentos a que muitas vezes não sabemos dar nome. E fez isso tudo usando palavras simples, compreensíveis, e aí reside outra face importante de sua obra.
Não é preciso muito esforço para entender uma frase como “detalhes tão pequenos de nós dois são coisas muito grandes pra esquecer”. Ou ainda “quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno”. E o que pensar de “você pensa que a verdade é o que sai da sua mente, mas se esquece que no amor tudo é muito diferente”? E não para por aí.
Ele já percebeu que esse não é o mundo de sonhos que queria; já quis voltar no tempo para consertar umas coisas; já celebrou aquele amigo de fé, irmão camarada; e até pensou em falar com aquela pessoa especial, mas evitou, e aqui ficou, sofrendo tanto a esperar. É bem verdade que, na contramão dessa simplicidade, ele cavalgou por toda a noite numa estrada colorida, mas com um pouco de maturidade você é capaz de entender onde Roberto chegou.
Tamanha simplicidade chegou aos anos 1990 empalidecendo uma obra que foi se mostrando repetitiva. A partir da segunda metade dos anos 1980, mesmo sem perder a majestade, Roberto foi migrando do popular para o popularesco. Nessa época, não pegava bem sair por aí dizendo que é fã do Rei. Ele virou algo brega, ultrapassado, um objeto para consumo de massa, algo de que já se sabia o que esperar. A banda é a mesma há décadas, sem alterações ou acréscimos. O tema amor é o mesmo de sempre, mas foi ganhando uma dose excessiva de açúcar. O figurino em tons de azul e branco virou farda. Até as capas de discos reproduziam esse quadro imutável.
Coube a Maria Bethânia reavivar a memória do grande compositor quando lançou o tributo “As canções que você fez pra mim” (1993). Com um repertório que cabia perfeitamente na sua dramaticidade, a baiana recuperou a sofisticação daquelas canções, criou um clássico e vendeu mais de um milhão de cópias.
No ano seguinte, outro marco: assinando como produtor, Roberto Frejat (Barão Vermelho) reuniu uma turma de roqueiros para celebrar a obra do grande ídolo da jovem guarda. O tributo “Rei” contou com nomes como Marina Lima, Blitz, Kid Abelha, Chico Science & Nação Zumbi, e é, até hoje, um trabalho referencial para fãs de Roberto.
Até Bethânia, raríssimas vozes tinham dedicado um disco inteiro a Roberto e seu parceiro Erasmo Carlos. A primeira foi a pernambucana Sonia Mello, que lançou dois volumes do seu “Sonia Mello interpreta Roberto Carlos e Erasmo Carlos”, em 1975 e 1979. Em 1978, foi a vez de Nara Leão lançar “E que tudo mais vá pro inferno”, com a mesma proposta. E assim ficou até 1993.
Depois de Bethânia, dedicar discos inteiros ao compositor de “As curvas da estrada de Santos” virou uma das fórmulas mais requisitadas da MPB. Cauby Peixoto, Waldick Soriano, Nando Reis, Roberta Miranda, Teresa Cristina, Ângela Maria, Lulu Santos são só alguns deles. Se a essa lista forem incluídos os nomes de quem se rendeu e gravou pelo menos uma música dele, aí haja espaço para tanta gente.
Mas também não é tão simples assim. Roberto costuma dar pitacos, fazer exigências ou pedidos que acabam sendo acatados. Por exemplo, Cauby trocou o nome do seu tributo de “Canta Roberto” para “Interpreta Roberto” a pedido do homenageado. Depois de Bethânia, “Emoções” também passou a ser música mais difícil de ser liberada. Oswaldo Montenegro até tentou em 1997, quando gravou o disco “Letras brasileiras”, mas não teve permissão e deixou um protesto registrado no encarte.
Mais recentemente, Nando Reis causou alguns desagrados quando lançou “Eu não sou nenhum Roberto, mas às vezes chego perto” (2019). Roberto, por exemplo, se incomodou com a versão instrumental de “Nossa Senhora” (Nando substituiu a letra por um “nananana” porque é ateu) e ainda teve que tirar algumas faixas da versão em LP porque Roberto não gostou de algumas liberdades tomadas pelo ex-Titã. Até aquele tributo lançado por Nara Leão sofreu corte quando foi relançado em CD e na página oficial da cantora. Por motivos religiosos, a faixa-título foi retirada das reedições.
Já o Roberto Carlos intérprete, uma única vez abriu mão da sua porção compositora para dedicar um disco inteiro a outro artista. A convite de Caetano Veloso, ele topou dividir um tributo a Tom Jobim para celebrar os 50 anos da Bossa Nova. Fora isso, ele até gravou muita coisa de muita gente. Isolda, Antônio Marcos, Benito di Paula, Djavan, Luiz Ayrão, Belchior, Tim Maia, por exemplo.
E aqui reside um conforto para quem quer homenagear Roberto, mas não tem autorização (ou verba) para regravar suas canções: é só fazer uma seleção das canções de outros que ele imortalizou e regravar. Foi assim, pegando essa tangente, que a grande paulistana Célia lançou o excelente “Outros românticos” (2011). Mas, voltando ao Roberto intérprete, nunca ele sozinho dedicou um disco inteiro a outro compositor.
O que seria interessante, uma vez que ele é um tipo raro de intérprete, que sabe muito bem trazer para si o que está cantando. Roberto Carlos aprendeu como poucos a usar a voz que tem, capaz de murmurar “Na paz do seu sorriso” e explorar regiões mais altas em “A ilha”, mantendo a mesma segurança.
Da mesma forma, ele consegue ser dramático em “O gosto de tudo”, convincente em “Eu e ela”, sedutor em “Não se afaste de mim”, teatral em “I love you”, bem-humorado em “Vista a roupa meu bem”, saudosista em “Jovens tardes de domingo” e até meio cafona em “Alô”.
É difícil precisar se é por excesso de zelo, por um esforço de autoralidade ou pelo Transtorno Obsessivo Compulsivo (Toc), doença da qual admite sofrer e que o prende a certas manias – que vão além de sempre sair pela mesma porta que entrou.
Mas, em mais de 60 anos de carreira, não foram só os tributos a outros autores que Roberto evitou em sua discografia. Roberto nunca teve outro parceiro além de Erasmo Carlos. Ele nunca veste roupa escura, mantém os mesmos padrões de figurino, e nunca altera o modelo de arranjos que faz para as suas músicas.
Ele até quebrou alguns padrões nos últimos anos. Por exemplo, se permitiu gravar um disco com o selo da MTV, quebrando uma exclusividade histórica com a rede Globo. Também se permitiu dedilhar um violão e um piano para seu público. Mas vai parando por aí. Quem sonha em ver Roberto Carlos acenando para os jovens compositores e até gravando nomes como Marcelo Jeneci, Arnaldo Antunes, Chico César ou Marcelo Camelo, pelo jeito vai seguir sonhando.
Mas, goste ou não, esse é o Roberto que conquistou o Brasil. Ou melhor, os Robertos. Tem o roqueiro Jovem Guarda, o crooner com ares de Sinatra, o ídolo palpável que canta para taxistas e mulheres de óculos, o sertanejo que acompanha caminhoneiros, o consciente que defende a Amazônia e as baleias, o artista indiferente que pediu favores à ditadura e o que pediu ao seu público que ficasse em casa e use máscara, o amigo camarada, o terror das mulheres, o pai de família, o homem de fé, o cantor, o compositor, o showman, o Roberto sucesso em tantas vozes, o Roberto ainda inédito na própria voz... São tantos e de tantas formas, que se você, leitor, ainda não encontrou o seu, não se preocupe. Um dia Roberto Carlos vai lhe encontrar e vai ter algo a lhe dizer.
As canções de Roberto continuam pulsantes entre corações admirados. De diferentes fases e facetas, o rei passeia por diversos episódios memoráveis. Ou mesmo nas sutilezas do cotidiano. Quando menos se espera, muitas de suas músicas se tornam trilha sonora do movimento ordinário da vida.
No abrir e fechar da porta de casa, sentar-se à mesa para um café ou simplesmente ao admirar a paisagem pela janela do ônibus. Sua obra interliga muitas histórias (direta e indiretamente) — seja de fãs, admiradores, curiosos ou mesmo alheios. Na cadência de quem tem fé no amor, há sempre mais emoções porvir.
Muito além do horizonte
Ao fim de cada domingo, quando já está na hora do sono, a agente de saúde Ângela Maria Sales, 58, põe o rádio para tocar. Ali perto, na cabeceira da cama, as canções de Roberto Carlos embalam o ritual dos sonhos. Os sentimentos regressam aos tempos de infância — a melodia passeia pelas memórias da casa de sua mãe, onde havia uma radiola que tocava quase sempre os discos do rei.
Influenciada pelas irmãs mais velhas, muito fãs de RC, Ângela cresceu ouvindo a discografia do artista. Naquela época em que tudo era possível, elas se reuniam para ouvir a programação da rádio com as canções de Roberto. O costume segue desde aí. “As canções de Roberto Carlos me deixam feliz, me trazem alegria, saudade e boas memórias da família e dos momentos agradáveis de toda minha vida”, lembra.
Tantas músicas de RC integraram momentos da vida de Ângela — desde as circunstâncias inesquecíveis às mais cotidianas. O trabalho do rei “ninou” seus três filhos. Agora, quem acompanha a tradição é o neto, de apenas 2 meses de idade, que adormece no colo da avó. Segundo Ângela, a coletânea de RC continua marcando novos episódios da sua trajetória.
É difícil definir uma música preferida, mas “Além do Horizonte”, do álbum “Roberto Carlos” (1975), transborda algo muito especial. Ao ouvir a composição de RC e Erasmo Carlos, sua mãe costumava dizer: “Além do horizonte há coisas boas para viver e ser feliz”. A filosofia de Dona Maura continua guiando o coração de Ângela.
Nas curvas das estradas...
Luane Tabosa, 23, — filha caçula de Ângela Maria — compartilha dessa relação afetiva com as canções de Roberto. A lembrança acha-se nas idas para a casa de sua avó materna. Aos domingos, a família se deslocava do bairro Messejana ao Presidente Kennedy para almoçar com Dona Maura. Atravessavam a Cidade de ônibus para passar o “domingão” juntinho à matriarca. Antes disso, o aparelho de som já estava nos embalos de RC.
Ângela ligava o rádio cedinho, preparava o café da manhã e toda a família se aprontava para a viagem de quase duas horas. Na morada de Dona Maura, mais canções de Roberto. “Ao chegar na vó, era aquele abraço super apertado e amoroso. Só saudades! Desde que ela se foi, há cerca de quatro anos, essa é a melhor memória que eu tenho de nós. O Roberto Carlos fez parte dessa história. Sempre que toca no rádio, essa memória me invade”, conta Luane.
Entre outras recordações, está ouvir Roberto nos especiais de televisão a cada ano que finda. O sentimento por trás das canções, contudo, não se restringe ao seio familiar. Ainda na escola, um dos melhores amigos de Luane cantou “As Curvas da Estrada de Santos”, faixa do LP “Roberto Carlos” (1969). Ela se encantou. Quando escuta a composição de RC e Erasmo, lembra com carinho do momento. E, certamente, das estradas que percorreu em tantas viagens de ônibus para ver sua vó.
Primeiro amor
Era década de 1980. Olhares aqui e ali, mãos entrelaçadas e a magia avassaladora do primeiro amor. “Eu pensei que pudesse ficar sem você/ Mas não posso/ Pois viver sem você, meu amor/ É difícil demais” — ouvia Sulling Lima, 55, no auge da adolescência. “Não Se Afaste de Mim”, faixa do álbum “Roberto Carlos” (1980), marcou o primeiro namoro da técnica em comercialização e logística aposentada.
À época, RC entoava aquela fase romântica, com canções que foram trilha sonora para múltiplos amores. “Meu primeiro namorado amava, era fã do Roberto Carlos. Acho que, de certa forma, eu aprendi a gostar por influência dele. Como eram músicas românticas e a gente estava começando o namoro e tudo mais, teve todo um clima para gostar do Roberto”, rememora Sulling.
Apaixonar-se foi o impulso para que ela passasse a acompanhar a música desse artista — que fala, dentre tantas coisas, sobre amar, ser amado, corresponder ou até sofrer por amor. Ao longo do tempo, conheceu outros tantos “Robertos”, como o da fase religiosa. Devota de Nossa Senhora, se emociona sempre que escuta a clássica “Nossa Senhora me dê a mão/ Cuida do meu coração/ Da minha vida, do meu destino”.
Amante dos discos de vinil, enquanto compartilhava sua história à reportagem, Sulling pôs a tocar a “música da sua adolescência”. Mais de dez LPs de Roberto Carlos integram a coleção presenteada por seu tio. Dentre tantas canções, as prediletas continuam sendo as românticas, que ecoam o sentimento do “amor, da paixão e do sexo”. Para Sulling, RC marcou — e ainda marca — gerações.
“Roberto Carlos é, sem sombra de dúvidas, o mais influente e importante artista da música popular em atividade. O impacto da obra dele, especialmente nos anos 1960 e 1970, definiu os rumos que a nossa música seguiu desde então”. A afirmação é do jornalista Jotabê Medeiros que se lançou ao desafio de contar a história do Rei na biografia “Por isso essa voz tamanha”, lançamento da Editora Todavia.
O livro de quase 500 páginas chega 15 anos depois de “Roberto Carlos em Detalhes”, biografia escrita por Paulo César de Araújo que desagradou o biografado, mesmo que este tenha assumido que nunca a leu. Esse desagrado terminou na justiça, que determinou a retirada da obra das prateleiras e rendeu um debate público sobre o impacto desse ato no mercado literário. A seguir, Jotabê comenta este episódio e como ele impactou no seu novo trabalho. “Por isso essa voz tamanha” vem depois de “Apenas um rapaz latino-americano” (2017) e “Não diga que a canção está perdida” (2019), biografias sobre Belchior e Raul Seixas, respectivamente.
O POVO – Como e quando nasceu a ideia desse projeto de escrever sobre Roberto Carlos?
Jotabê Medeiros – Sempre tive essa ideia, mas achava que não era possível. Desde 1986 cubro Roberto, shows, entrevistas, acontecimentos da vida dele. Na apresentação do livro sobre o Belchior, eu já falo um pouco desse sonho. Em 2019, quando concluí o livro do Raul Seixas, meu editor me chamou e disse: "E agora?". Ele sempre brinca comigo propondo uns desafios. Falou do Roberto, eu demorei para me dar conta que era sério. Mas logo vi que era, e para mim foi tipo me chamar para ir a uma sorveteria, eu que sou louco por sorvete. Já havia uma pesquisa que vinha desenvolvendo há alguns anos, mais minha experiência com coberturas de shows e entrevistas dele.
OP - Queria saber da sua história com o biografado. Lembra de quando ouviu o Roberto Carlos pela primeira vez ou a primeira vez que ele te chamou atenção?
Jotabê – Eu conto um pouco sobre isso no prefácio do livro. Lembro de tudo: a primeira vez que ouvi “O Portão”, eu quase chorei. Era lindo demais aquilo. Depois, eu fui decorando todas as letras que ouvia no rádio, era como se fosse uma roupa se amoldando ao corpo. Como repórter, já mais à frente, cobri Roberto em inúmeras situações: no Brasil, nos Estados Unidos, em Israel, no oceano, em seu cruzeiro anual. Sou um setorista de Roberto Carlos. Rs
"Só muito mais recentemente fui examinar o passado pioneiro dele, os anos 1960, e aí é absurdo: os 10 primeiros discos são sensacionais. Abrigam uma ideia de construção estética, social, musical, que é rara em qualquer artista do mundo."
OP - Roberto Carlos é um artista que passou por muitas fases, muitas épocas, muitos estilos. Qual o seu RC preferido e por que?
Jotabê – Rapaz, cada momento cabe um Roberto. Eu gostava muito da fase moteleira do Roberto nos anos 1980, canções como “Cama e Mesa”, “Côncavo e Convexo”. Com o passar do tempo, fui descobrindo a grandeza da música dele dos anos 1970, o disco fundamental de 1971, a diversidade e inventividade de 1978. Só muito mais recentemente fui examinar o passado pioneiro dele, os anos 1960, e aí é absurdo: os 10 primeiros discos, talvez com exceção do primeiro LP, são sensacionais. Abrigam uma ideia de construção estética, social, musical, que é rara em qualquer artista do mundo. Adoro também, como todo mundo, a fase black music, soul e funk.
"Eu tenho 35 anos de cobertura da atuação do Roberto, e usei essa experiência para fazer um livro que não tivesse uma abordagem enciclopédica ou meramente historiográfica."
OP - Queria que você contasse sobre a pesquisa. As fontes mais importantes, quanto tempo de pesquisa, por onde começou.
Jotabê – Fiz muitas entrevistas, li cerca de 40 livros, entrevistei umas 40 pessoas, mas acredito que a fonte mais importante fui eu mesmo. Eu tenho 35 anos de cobertura da atuação do Roberto, e usei essa experiência para fazer um livro que não tivesse uma abordagem enciclopédica ou meramente historiográfica. Há um componente de análise e de reflexão no livro que eu já venho utilizando em minhas biografias. Houve alguns acervos novos que foram abertos recentemente que ajudaram bastante na pesquisa, como a coleção de Gercy Volpato, a primeira fã do Roberto, a quem o livro é dedicado. É um inventário precioso dos passos dele.
OP - Você conseguiu entrevistar o próprio Roberto Carlos? Ou tentou?
Jotabê – Sim, tentei. A equipe dele foi muito solícita, encaminhou o pedido a ele, ele ficou de examinar. Mas não houve resposta até agora.
"Todos os temas relativos a Roberto Carlos, em minha opinião, estão presentes no livro, todos os fatos mais importantes da configuração da carreira dele."
OP - A primeira biografia escrita sobre Roberto acabou entrando pra história por ter sido censurada pelo próprio Roberto. Um imbróglio que se tornou público, manchou a imagem do Roberto e trouxe prejuízo pro biógrafo. Você não teve receio de fazer um novo livro sobre ele? Que cuidados tomou para não passar pelo mesmo problema?
Jotabê – Não tive receio. Também não fiz restrições ao meu próprio trabalho porque seria como admitir uma autocensura. Todos os temas relativos a Roberto Carlos, em minha opinião, estão presentes no livro, todos os fatos mais importantes da configuração da carreira dele. Ao mesmo tempo, aceitei ponderações de natureza jurídica para não contrariar as leis, não incorrer em afirmações que pudessem ser interpretadas como injuriosas. Acho que é preciso ponderar sempre, nunca ultrapassar a fronteira do respeito – mas, acima de tudo, há o jornalismo, que é feito de fatos e da busca da verdade.
"Meu livro tem algumas diferenças, a principal delas talvez seja de estilo, obviamente. Me dediquei bastante a garimpar histórias que pudessem conectar as diferentes fases da vida dele."
OP - O que você achou do livro “Roberto Carlos em Detalhes” e que importância ele teve para o livro agora escreveu?
Jotabê – O livro é uma pesquisa assombrosa, um trabalho de grande fôlego e uma contribuição historiográfica inestimável. É uma referência para todos que se dispuserem a escrever sobre Roberto Carlos, inclusive para mim. Meu livro tem algumas diferenças, a principal delas talvez seja de estilo, obviamente. Me dediquei bastante a garimpar histórias que pudessem conectar as diferentes fases da vida dele, porque em geral a gente acha que ele simplesmente surge cantando iê-iê-iê, ou soul, ou gospel, ou rock, e tudo tem uma cronologia, um desenvolvimento.
OP - A censura sobre o livro “Roberto Carlos em Detalhes” acabou tomando uma proporção midiática maior, tornando-se uma questão nacional que envolveu muito leitores e jornalistas. Mas ela não foi o primeiro caso. Já existiram problemas em relação a livros sobre Noel Rosa, João Gilberto e Garrincha, por exemplo. Pra você, que papel as biografias têm para o público?
Jotabê – A biografia (ou o perfil biográfico) ajuda a estabelecer relações entre os personagens públicos e seu tempo, evidencia suas motivações, seus relacionamentos sociais, artísticos, políticos, a construção de uma ética, uma moralidade, uma cena. É uma forma de preencher, com uma dose maior de humanidade, os vácuos entre as narrativas históricas. Como havia muito tempo que o impedimento judicial predominava sobre o gênero, o Brasil acabou ficando com uma lacuna muito grande em relação à literatura de outros países nesse campo. É como se estivéssemos tirando o atraso, para usar uma expressão popular, há bons livros sendo lançados, um esforço de redimensionar a grande contribuição cultural da MPB para o estabelecimento da identidade nacional.
OP - Uma curiosidade sobre a proibição de “Roberto Carlos em Detalhes” é que o livro acabou se valorizando no mercado de sebos e, mais do que nunca, o Paulo César de Araújo tornou-se uma figura inseparável da história do Rei. Qual sua opinião diante dessa proibição que tirou o livro do RC das prateleiras? Você acha que a atitude do Roberto acabou tendo um efeito inverso?
Jotabê – Acho que isso é parcialmente correto. O certo seria que o livro estivesse disponível para consultas e aquisições em todas as livrarias de todos os rincões do País. Não acredito que se possa traçar um paralelismo entre a literatura e a Lei Seca de Chicago, por exemplo, quando as bebidas eram proibidas e por isso mais cobiçadas – a literatura é consumida por poucos leitores, é um produto ainda muito pouco disseminado no Brasil.
"Foi integrante do seleto clube da bossa nova, no início, depois inventou a música jovem autoral brasileira, em seguida alargou as fronteiras dessa música, fundindo-a com elementos do tropicalismo, da soul music."
OP - Que importância o Roberto Carlos tem para a cultura brasileira?
Jotabê – Roberto atravessou os últimos 70 anos da música brasileira, 60 deles como um profissional. Foi integrante do seleto clube da bossa nova, no início, depois inventou a música jovem autoral brasileira, em seguida alargou as fronteiras dessa música, fundindo-a com elementos do tropicalismo, da soul music, do funk norte-americano, foi fundamental no desenvolvimento do conceito de grande espetáculo musical para multidões, reinventou a música romântica nacional. Creio que é uma contribuição muito extensa e diversa.
OP - Essa é a terceira vez que você escreve sobre um artista da música. Antes teve Belchior e Raul Seixas. Quais as semelhanças e principais diferenças entre esses três personagens?
Jotabê – Não foi deliberado, mas olhando hoje eu vejo que pode ser considerada até uma trilogia de artistas que estão nas fundações do que a gente conhece como música popular moderna. Belchior foi o poeta com grande habilidade literária, um intelectual na música; Raul foi o deflagrador de uma ação contracultural, de rebelião, de insurgência; e Roberto é o artista das multidões, capaz de reunir tendências diferentes da música, de aproximar opostos, e é um dos mais longevos cantores em atividade.
"Eu mergulhei muito fundo na pesquisa e na apuração jornalística. Roberto Carlos é outra coisa: como se trata de um artista de múltiplas facetas, de carreira muito longa, era preciso exercitar a análise."
OP - E o que mudou em seu trabalho como biógrafo desde o primeiro livro? Seu método de pesquisa e escrita mudou de lá pra cá?
Jotabê – Sim, mudou. Com “Belchior - Apenas um rapaz latino-americano”, eu buscava transplantar para um trabalho que eu julgava de maior fôlego jornalístico uma predileção artística, uma paixão cultural – Belchior. Com Raul Seixas, houve um aprofundamento da pesquisa devido à própria expectativa dos admiradores de Raul, que é um culto underground nacional, quase uma religião. Eu mergulhei muito fundo na pesquisa e na apuração jornalística. Roberto Carlos é outra coisa: como se trata de um artista de múltiplas facetas, de carreira muito longa, era preciso exercitar a análise, buscar explicações e o estabelecimento de relações entre os fatos e os personagens que nutriram a música dele. Cada artista pede uma resposta do biógrafo.
OP - Mesmo sendo um artista extremamente popular e tudo sobre ele ganhe repercussão, RC sempre tentou cuidar da própria imagem e evitar que outros contassem sua história. Que prejuízo você acha que a censura à primeira biografia trouxe pra ele?
Jotabê – Acredito que Roberto não se preocupe tanto com isso, porque as ações de proteção à privacidade que ele empreende estão enraizadas também em suas próprias obsessões, seus medos e sua história psicológica. Mas devo concordar que cresceu a desconfiança em relação a ele da parte de muita gente, o que certamente abalou um pouco a imagem do artista.
"O que impressiona é descobrir que ele calculou cada passo, que nada foi aleatório em sua carreira, tudo que ele fez, desde que era recusado em programas de auditório, foi fruto de uma impressionante tenacidade e convicção."
OP - Um compositor que passou da música adolescente ao ídolo adulto. O homem casado tantas vezes. As relações com a ditadura. O vendedor de discos pelo mundo. O homem de tantas manias. Pra você, quem é o Roberto Carlos que completa agora 80 anos? Qual é o resultado dessas histórias todas?
Jotabê – Roberto Carlos é, sem sombra de dúvidas, o mais influente e importante artista da música popular em atividade. O impacto da obra dele, especialmente nos anos 1960 e 1970, definiu os rumos que a nossa música seguiu desde então. O que impressiona é descobrir que ele calculou cada passo, que nada foi aleatório em sua carreira, tudo que ele fez, desde que era recusado em programas de auditório, foi fruto de uma impressionante tenacidade e convicção. Minha busca não teve a intenção de julgar Roberto, mas de mostrar todas as implicações de suas escolhas ao longo da carreira e da vida. Entretanto, não deixei de fora nenhuma das suas decisões, fossem elas boas ou não.
Livro “Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha”
De Jotabê Medeiros
Editora Todavia
483 pág.
Quanto: R$72,20 (impresso) e R$44,91 (e-book)
Reportagem especial mostra como o rei Roberto Carlos e sua obra se espraiaram pela cultura brasileira. Famosos e anônimos indicam o seu Roberto preferido: o da jovem guarda, o da religião, o das canções românticas...