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Trocando cartas com Gilmar de Carvalho
Vida & Arte

Trocando cartas com Gilmar de Carvalho

Professor americano Ralph Della Cava — um estudioso do Ceará e do Brasil —, autor do clássico "Milagre em Joaseiro" escreve para Gilmar de Carvalho
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FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-03-2015: Gilmar de Carvalho, professor de culturas populares, pesquisador e escritor, posa ao lado da réplica do Bode Iôiô, no Museu do Ceará. Aniversário de Fortaleza 289 anos. (Foto: Sara Maia/O POVO) (Foto: O POVO)
Foto: O POVO FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-03-2015: Gilmar de Carvalho, professor de culturas populares, pesquisador e escritor, posa ao lado da réplica do Bode Iôiô, no Museu do Ceará. Aniversário de Fortaleza 289 anos. (Foto: Sara Maia/O POVO)

Desde que recebemos a notícia da morte de Gilmar, estamos Olga e eu em pleno luto. Escrevo para você umas poucas horas depois do triunfo de justiça no caso de George Floyd e o chamado que nos chega que a igualdade seja uma realidade para todos os nossos cidadãos. Acho que Gilmar teria aplaudido o veredicto do júri. Em novembro de 2020, ele me escreveu este mail seis meses depois do assassínio de George Floyd em Minneapolis: "Mataram um negro cliente de um supermercado Carrefour, em Porto Alegre.

Lamentavelmente, só com estes fatos de impacto, chegamos ao mundo. Lamentável, sob todos os aspectos. Lamentáveis, também, os pronunciamentos das autoridades brasileiras. Negar o racismo no Brasil é uma piada de mau gosto." Respondi falando com otimismo do movimento 'Black Lives Matter' que se espalha pelo mundo inteiro, ao mesmo tempo que denunciava a volta do 'Jim Crow-ismo' empurrado pelo Trump e o mal que este semeia no País. Verdade o veredicto de hoje é só um primeiro passo numa luta de 400 anos contra a escravidão, de direitos desiguais e do excesso do "privilégio dos brancos".

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Carta para Gilmar

Uma Lembrança e uma Homenagem

Para aqueles de nós para quem o Nordeste Brasileiro é uma veia inesgotável de um passado rico e um presente em mutação, assim como nossa segunda casa, a morte de Gilmar de Carvalho na noite de 17 de abril de 2021 aos 71 anos de idade é uma irreparável perda.

Autor de mais de cinquenta obras que abrangem a cultura popular e as artes vivas da região - desde as gravuras e poesia de cordel aos mestres luthiers de violões e violinos e suas canções, dos artesãos e mulheres do barro, da cerâmica e da madeira; tecelagens, pinturas, impressão e publicação; e das esculturas, as sacras e as profanas - Gilmar tornou-se seu maior historiador e seu mais assíduo e incessante pesquisador e conservador.

Uma década antes de sua morte devido à pandemia que varreu o Brasil, ele começou a legar seu trabalho de uma vida ao 'Acervo do Escritor Cearense' (AEC) da 'Biblioteca de Humanidades' da Universidade Federal do Ceará. O acervo mencionado, foi o resgate real de livros, documentos, fotografias, correspondência, relatórios jornalísticos e manuscritos relativos à memória de importantes personagens da cultura cearense, muitos dos quais, devo assinalar, foram e são de origem humilde.

No décimo aniversário da doação de Gilmar, ele falou por muitos de nós que, ao longo de uns quarenta anos de pesquisas, enfrentamos o dilema do descarte de uma coleção - ou de sua feliz preservação.

"Muitas vezes, quando alguém que possui uma fortuna tão crítica morre, o material é jogado fora. As famílias nem sempre apreciam seu valor. Eu, não tendo herdeiros diretos nem filhos, portanto, devia cuidar e me proteger. Não poderia haver melhor lugar, concluí, do que o Acervo do Escritor Cearense para eu trazer esse material e vê-lo tão bem cuidado, conservado e bem utilizado".

Gilmar e eu nos encontramos pela primeira vez na casa de um Cearense no Rio de Janeiro, numa das raras ocasiões em que ele viajou de avião e para algo longe de seu amado Nordeste. Foi quase inevitável que relembrássemos nossas respectivas experiências em Juazeiro do Padre Cícero.

Foi em 1998, que uma tese sua premiada sobre aquela cidade e seu fundador confirmou para mim o brilho, a engenhosidade de Gilmar, seu incomparável domínio das artes populares e sua compreensão de seu poder transformador.

Com efeito, ao recontar o passado de Juazeiro, Madeira Matriz demonstra como a "xilogravura e o cordel" construíram e ancoraram a narrativa ora mítica, ora narrativa de uma cidade sagrada e seu santo patrono.

Volume após volumes, vários enriquecidos pelas fotografias do seu colaborador e amigo, Francisco Sousa, não houve tema, arte ou personagem que deixasse de fascinar. Patativa do Assaré, o grande poeta do sertão, Mestre Noza, o grande escultor de Juazeiro, e os Rabequeiros do Ceará estão entre os artistas que Gilmar homenageou.

Gentil, de fala mansa, nunca orgulhoso, Gilmar foi o modelo entre os verdadeiros grandes eruditos desta terra, um campeão do povo a quem chamamos de 'sal da terra', e o historiador e conservador desse museu de quase tudo, suas artes vivas, esses vasos inspirados de todas as humanas aspirações.

Ele fará falta e sempre será lembrado.

Ralph Della Cava

Carta de Gilmar

Gilmar de Carvalho lançou olhar amplo às manifestações culturais. Nunca raso, sempre curioso, o professor dividiu com a jornalista Teresa Monteiro escritos sobre o movimento Hip Hop em outubro de 2020. Ex-aluna e orientanda de Gilmar, Teresa conta que, em 1998, tentava definir o tema de sua monografia e o professor lhe sugeriu pesquisa sobre os Racionais MC's. À época, emprestou seus próprios CDs do grupo para Teresa e, juntos, construíram o trabalho.

Recentemente, o pesquisador voltou ao tema. Até compartilhou com ela um "primeiro esboço" de um texto que estava escrevendo sobre rap. Sempre na busca por uma pesquisa completa e rica, compartilhou com Teresa que estava em busca de exemplos de artistas para enriquecer o material. Confira trechos do textos que Gilmar estava desenvolvendo:

HIP-HOP, cena musical que junta ritmo & poesia (RAP), grafite, dança de rua (break) e DJ, com direito a mestre de cerimônias, é bem singular e difere de todas as outras cenas musicais.

Ela é fruto de uma politização forte, resultado de políticas afirmativas, de inserção no circuito cultural de vezes que foram silenciadas durante tanto tempo. É uma música das "quebradas", que cantou, durante muito tempo, a transgressão e se abre para novas propostas, sem perda do vigor, nem a proposta inicial de ser a vocalização dos vulneráveis, dos que sofreram preconceitos de cor, misoginia, homofobia.

É um canto livre, solto das amarras e que chega ao mercado pela força das redes sociais. Este canto brota nos lugares onde os contrastes são maiores e o desejo e a necessidade de uma denúncia se faz mais forte.

Não trabalha com a mesma acepção de sucesso de outros gêneros, não busca arrastar milhares para shows e apresentações. O que se quer é deixar as pessoas cientes de que a música pode ser uma reação ao que está aí e é bastante incômodo para os que foram segregados e conseguem se fazer ouvir, apesar das restrições, dos preconceitos e das acusações de fazerem uma música sem fronteiras, que é do mundo todo e dos que sabem que a maioria dos mortos das ações policiais é constituída por negros, jovens e moradores das periferias.

O Ceará é respeitado, hoje, nesta cena, por conta de manifestações que saíram de jovens que não buscavam sucesso, não tinham espaços na mídia, mas souberam abrir trilhas e pavimentar veredas por onde ecoaram suas vozes incômodas, desafiando o "coro dos contentes", com rapidez e energia.

Este respeito foi conquistado com muita luta e contra o preconceito que caia sobre a maioria dos artistas do RAP daqui por serem pardos e não negros, havendo, nestes casos, desconsideração pela herança indígena.

(...) Na força, no suor, no grito, este povo de valor faz seu som, recorre a estúdios improvisados, sampleia sucessos, faz uma colagem de sons que dão certo no final. É uma música que podemos chamar de contemporânea, porque irônica, redundante em alguns trechos, distorcida ou extremamente sonora, dizendo o que os jovens de hoje têm para dizer, quando não silenciados como antes, pautando outras discussões.

É um produto do nosso tempo, das nossas perplexidades e medos, dos nossos sonhos e desejos.

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