Adaptado para o teatro, cinema e agora para os quadrinhos, Luzia-Homem é um clássico da literatura naturalista nacional. Publicado em 1903, retrata os pesares dos habitantes do sertão cearense em um dos momentos mais adversos da história do nordeste brasileiro, entre os anos de 1877 e 1879. Em 2021, essa história é republicada em forma de HQ pelo escritor Zé Wellington e pela ilustradora Débora Santos, em uma parceria com a Editora Draco.
O quadrinho possui um total de 86 páginas em que se distribuem, além da trama principal, um glossário sobre expressões da linguagem da época, curiosidades sobre as localidades mencionadas no livro e um mapa de Sobral. Zé Wellington, quadrinista responsável pela adaptação do texto integral, afirma que Luzia é a versão da história de Domingos Olímpio com mais "extras" no mercado.
Sobre a escolha do nome, o autor detalha que houve uma mudança em relação ao título original devido ao apego que ele e a ilustradora tiveram pela protagonista depois de quase três anos trabalhando com ela, o que explica também a razão pela qual a capa destaca tanto a personagem. "Achamos que não seria justo manter o nome 'Luzia-Homem' na capa do nosso livro", expressou o autor, em referência ao "bullying" que faziam com ela.
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Zé Wellington destaca que a ideia de adaptar essa história faz parte do processo voltado ao realce de sua ligação com o município de Sobral, onde nasceu. "Boa parte da vontade de trabalhar esse livro, veio do fato de o autor ser conterrâneo meu", relaciona. O artista conta que realizar o projeto "Luzia" foi um mergulho nas geografias do local onde nasceu, pois o romance tem uma conexão íntima com os cenários da cidade.
"Para fazer os quadrinhos, comecei realizando um trabalho de leitura e foi bem legal poder perceber essa relação muito forte com Sobral, para onde veio muitos retirantes da seca. Ver locais que hoje eu frequento, que piso na minha cidade, sendo narrados numa situação que aconteceu há 150 anos foi bem interessante.", pondera.
O autor narra ainda ter convidado Débora Santos devido à "admiração" que tem pelo trabalho dela. A ilustradora já havia realizado uma série de trabalhos internacionais, mas até então não tinha publicado oficialmente uma obra longa no Brasil. "Ela deu um olhar todo diferenciado para a personagem e para a trama como um todo. Um olhar de mulher. Como eu estou afastado desse lugar de fala, ela veio contribuir de forma singular para a concepção da obra", reflete.
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Os desenhos presentes no HQ Luzia são todos em preto e branco por uma questão de logística. Segundo a ilustradora, que trabalhou durante um ano nos desenhos, se as páginas fossem coloridas, a entrega do projeto demoraria mais tempo. Sobre a inspiração visual para a construção da identidade do livro, Débora afirma que suas memórias de infância no interior do Ceará, fotos da família, referências que Zé colheu durante a pesquisa e o filme sobre Canudos foram relevantes.
"Em relação à capa, que é colorida, eu tinha a ideia inicial de deixar Luzia com os cravos que Alexandre dá pra ela na história com o cenário da serra da Meruoca ao fundo. Mas nas conversas com Zé e com os editores chegamos a composição atual. As plantas são a flor da barriguda (árvore do bioma caatinga que flora na seca, sem folhas) e as flores brancas são comumente encontradas em canteiros e calçadas de sobral.", comentou a desenhista.
Seca de 1877 e outros contextos
A Grande Seca, como ficou conhecida, foi um fenômeno de estiagem marcante da história do País. Foram três anos sem chuvas, sem plantio, sem colheita, com perda de gado, culminando no despovoamento do sertão. Acredita-se que foi responsável pela morte de até 500 mil pessoas (das quais 200 mil residiam no Ceará) e pela migração de 188 mil nordestinos para a Amazônia e demais regiões.
Nessa época, o município de Aracati, que abrigava cinco mil habitantes, passou a ter mais de 60 mil pessoas. Fortaleza, de 21 mil habitantes, de acordo com o censo de 1872, passou a ter 130 mil. Para piorar o quadro de calamidade, uma epidemia de varíola matou milhares de pessoas. "A peste e a fome matam mais de 400 por dia!", disse Rodolfo Teófilo, em "A Fome" (1890).
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Esse cenário inspirou a escrita de Domingos Olímpio. Em seu romance, em meio aos milhares de retirantes que deixavam o sertão, destaca-se a protagonista Luzia, jovem que sonha em melhorar de vida. Por ter músculos fortes e traços masculinizados, foi apelidada de Luzia-Homem. Mesmo imersa em uma realidade difícil, ao passo que cuidava da mãe e lidava com o assédio de um soldado, a protagonista vivencia uma amizade e um grande amor em uma trama turbulenta.
A obra se configura como literatura naturalista, movimento artístico expresso também no teatro e nas artes plásticas. Textos dessa natureza abordam uma perspectiva determinista sobre a realidade em concordância com a teoria evolucionista de Charles Darwin. No Brasil, o movimento tem como marco inicial a publicação do romance "O Mulato" de Aluísio de Azevedo em 1881, cujo tema central é o racismo.
Luzia
Roteiro: Zé Wellington
Arte: Débora Santos
Obra original: Domingos Olímpio
Páginas: 96 páginas
Quanto: R$ 31,90
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