Cem anos de Amor
No mítico território de Mondubim Velho, Estrigas e Nice, que há muitas décadas se inscreveram como protagonistas na História da Arte no Ceará, recebiam os visitantes e artistas como Araquém em sua cabana: com fidalga simplicidade. Lá, todos nós éramos amigos do rei – e da rainha! Lá, apreciávamos o pôr-do-sol filtrado por folhas de antigas mangueiras e picturais cajueiros, provando os doces preparados por Nice e ouvindo suas sempre graciosas histórias de pequenos aprendizes de arte. Lá, podíamos ver a arte se fazendo: uma tela que Nilo ainda estava pintando ou um desenho que Nice estava bordando. Lá, encontrava Nilo pintando um livro – sim, uma pintura em cada página! - e escrevendo sobre pintura e pintores de ontem. Lá se encontravam os que amam a arte e os que fazem a arte ser amada.
Para esta neta do Dr. César Rossas, conceituado médico, que morava com sua mulher, Laís Pompeu Rossas, no Sítio Angela Pompeu, que pertencera, aos pais de Laís, Thomaz e Angela Pompeu e era situado em frente ao sítio dos Firmeza, passar férias ou mesmo morar, com seus pais Angela e Luciano Mota, com toda a família, por alguns anos, naquele paraíso, era como viver no Sítio do Picapau Amarelo, com a facilidade de visitar Nilo e Nice, bastando, para isso, descer um barranco e subir uma escadinha para alcançar a casa dos amigos queridos de toda a família.
Desse modo, Nice é, desde sempre, para mim, habitante do afeto da menina Jan, depois moça, que esperava o trem passar para atravessar os trilhos que a separavam da casa hospitaleira onde podia comer carambola, manga rosa, doce de caju e ver Nice e Nilo arquitetando e construindo arte e bondade.
As obras do casal Firmeza, ao longo do tempo, fui conhecendo-as aos poucos na própria casa dos artistas e, posteriormente, vendo em seu conjunto em exposições e, mais adiante no tempo, ainda, promovendo-as e apresentando-as no Museu de Arte da UFC, como Diretora do Instituto de Cultura e Arte da UFC, em parceria com o Diretor do MAUC e amigo, Pedro Eymar Barbosa. Aí começou um novo período de minha vivência com a arte do casal porque a convivência de amizade continuou a mesma, meu nome sempre foi Jan ou Janzinha para eles e Oswaldo, meu marido, sempre foi o amigo querido e médico do casal.
Entre as exposições do casal no MAUC, lembro aqui a de obras criadas entre agosto de 2006 a início de 2007, Pinturas e Desenhos de Estrigas e Nice, que teve curadoria do dedicado e talentoso Diretor, com colaboração de alunos da Bolsa Arte ICA/MAUC, por ele orientados. Essas obras mostram o esplendor da maturidade artística dos dois pintores tão próximos e tão diferentes. Enquanto Nice alegra nossos corações e nossos olhos com o éclatante colorido de suas pinturas, com a inundante presença de crianças e flores, Estrigas convida à reflexão, com seus traços cartesianos, com a pureza de suas linhas, com a paz de seus tons pastéis.
Àquela época, convidei os presentes, como convido agora os leitores, a reverenciarmos sem pudor, os mestres de Mondubim, a relembrarmos as mangueiras do sítio acolhedor: Nice, com uma flor no cabelo, oferecendo sorrisos, flores e frutos de sua arte e Nilo, a seu lado, mostrando as linhas e cores de seu talento. Fechemos os olhos e entremos, ninguém precisa pedir licença para entrar nesse paraíso da memória de amor.
É, no entanto, em seu encontro de amor com Nilo que a completa integração de Nice com as forças e belezas da natureza encontra seu ápice, como revelam linhas do seu texto em prosa “Naquele dia...”:
“Você me pede para falar naquele dia feliz, em que nos distanciamos da terra e nos aproximamos de Deus. [....] Deixei de ver o céu, ou melhor, penetrei nele, não ouvi mais o murmúrio do mar, você era a única coisa que eu via e sentia. Naquele dia senti um prazer desconhecido, agora acredito que nada mais me falta.”
Recordo as palavras de texto escrito de Nilo, o marido, doublé de Estrigas, depois de ressaltar a Nice artista, referindo-se a Nice labirinto: “E nesse emaranhado, onde existe o sim e o não, eu me perdi e me encontrei, e nele fiquei e fico, porque compreendo que em um labirinto ninguém entra nem sai, ninguém se perde nem se encontra, todos estão nele e vivem.”
Se a arte preencheu a vida da Nice, não esqueçamos, porém que, com Nilo, Nice alcançou a plenitude de ser. Comemoremos esse amor e o amor à vida e à arte, tesouros que Nice nos legou.
Angela Gutiérrez, Jan, é escritora, Membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará e Professora Emérita da UFC
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Transbordando o popular: pintar, bordar e cozinhar
O campo das artes plásticas no Ceará é pleno de produções e agentes que conhecem diversos níveis de consagração. Nice, artista cearense, faria 100 anos em 18 de julho. É certo que o centenário de qualquer artista oferece a oportunidade de olhar a obra produzida como um conjunto, em diálogo com os principais desafios de seu tempo. No entanto, o reconhecimento do papel de Nice no campo da arte parece depender não só do decurso dos anos, mas também da elaboração de uma perspectiva de análise capaz de contemplar o valor próprio de seu universo plástico. Passada quase uma década desde a sua partida, uma questão persiste: como perceber a singularidade de sua produção? A apreciação centrada na qualidade formal presente em suas obras revela limites na apreensão das múltiplas dimensões de suas criações.
Embora recorrente na recepção de imagens artísticas, a apreciação formal, especializada, depurada pela frequentação regular a exposições de arte, alimenta o distanciamento entre o olhar na arte e no cotidiano. Esse exercício do olhar puro se revela na lógica que estruturou os espaços expositivos, os quais resguardam o público de interferências externas em face da experiência oferecida por obras modernas. No entanto, ele deixa à sombra o singular corporificado por sensibilidades artísticas como a de Nice, cuja prática somente ganha dimensão própria quando pensada como obra ampliada.
De fato, a arte moderna aproxima vida e obra de forma bem específica: acrescentando à recepção de formas plásticas o conhecimento de dados biográficos dos artistas. A vida dos artistas aproxima-se assim da relação que a sociedade tem com a vida dos santos ou dos gênios, singularizando o artista e intensificando o sentido excepcional de suas obras. Mas o trabalho de Nice realiza um movimento diverso, cuja base é a da simplicidade do popular. A artista converte em obra cada pequeno gesto no cotidiano, por meio de uma relação sensível com todas as coisas. A vida que une o espaço de sua casa e o entorno natural do sítio no qual fixou sua morada conformaram assim uma obra que provoca uma compreensão integradora.
O percurso feito ao longo de 91 anos de vida, de Aracati a Fortaleza, aponta a extensa produção de um estilo particular que, tendo-se iniciado na década de 1950, foi celebrado no universo da pintura naif. Porém, a fim de apreender o modo como opera a sensibilidade plástica de Nice, é preciso considerar os delicados fios que ligam dois importantes pontos de sua trajetória pessoal: o casamento com o também artista Nilo de Brito Firmeza (o Estrigas, 1919-2014); e sua fixação em uma propriedade bucólica, no bairro Mondubim.
Na trama tecida pela vida de Nice e Estrigas, o sítio, hoje convertido em casa-museu, constituiu um universo no qual ela cultivou a si mesma, como o fez com a paisagem plena de jasmins, manacás, roseiras, orquídeas, mimos do céu, brincos de princesa, bugaris, samambaias e cecílias. Por anos, aquela morada converteu-se em cenário perfeito para fazer com que cada momento vivido unisse em composição sua pintura e as invenções de um cotidiano praticado na simplicidade do bordar e de cozinhar.
A dinâmica orgânica do todo Nice-Estrigas-sítio coloca então o desafio de considerar a contribuição individual de Nice para a arte cearense. De fato, a história da arte no Ceará, de modo confortável, destaca dessa dinâmica, a pintura, a produção bibliográfica e o trabalho memorialístico de Estrigas na constituição do minimuseu Firmeza. No entanto, a posição precursora de Nice na SCAP dos anos 1950 e a maneira como esta promessa artística se realizou demandam um olhar mais detido sobre seu papel na estruturação de valores fundamentais ao universo das artes.
Afinal, o talento para lidar de modo inventivo com a matéria-prima do cotidiano já valeu a Nice reconhecimento público. Em 2007, ela foi nomeada Mestre da Cultura Tradicional Popular pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), por referenciar as práticas do bordado e da culinária nordestina. Portanto, sua disposição poética na criação de “pinturas à linha” ou na elaboração de doces e bolos de frutas extraídas do sítio foi tão valorizada quanto na arte. Espírito artífice, Nice fazia bem-feito manuseando qualquer instrumento: pincel, agulha ou colher, os quais atravessavam sutilmente fronteiras simbólicas ao fundir o olhar artístico àquele de caráter “banal”.
Assim, a mão da artista converteu seu entorno, unindo cores, flores e sabores. Tal conversão transbordou das técnicas e materiais empregados convencionalmente em pintura, para outras instâncias da experiência de vida. Por isso, a chave de compreensão da produção múltipla de Nice, sensível ao popular, deve abraçar a singularidade de sua criação plástica a partir da dimensão cultural. Nesse caso, é a cultura, como processo que evidencia a obra como um todo ampliando, ao mesmo tempo em que aponta os limites estabelecidos por um dado olhar sobre a arte que se legitima, sobretudo, pelo conhecimento de obras concebidas como produtos.
Kadma Marques é colunista do Vida&Arte, doutora em Sociologia com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Uma artista e seus mil afetos
Achava curioso sempre que lia sobre Nice e o Minimuseu Firmeza e lá estava a palavra afeto. Como compreender essa dimensão poética? Não tive o privilégio de ir ao sítio no Mondubim, ganhar uma flor no cabelo e apreciar a arte e os doces, com Nice e Estrigas. Nem tampouco participei de rodas de bordados debaixo das mangueiras... Não sei em que planeta eu andava. Como pesquisadora que prepara uma dissertação, tenho muitas questões: Qual o lugar do afeto dentro de um museu? Como esse espaço era compartilhado por artistas e não artistas?
No conto "A avó, a cidade e o semáforo", o escritor moçambicano Mia Couto escreveu que "cozinhar é um modo de amar os outros". Vejo Nice nessa frase, ao transbordar suas gentilezas no preparar de doces e bolos para o amado Estrigas e para recepcionar os visitantes. Me aproprio e afirmo: bordar também é um modo de amar os outros. Já imaginou quantas horas e cuidados para bordar roupas para presentear, como ela fazia? O sentimento ganhava forma de várias maneiras e a arte-educação também foi uma delas, refletiu nas cenas de crianças de muitos dos seus quadros.
Me vejo tentando categorizar, conceituar, e a arte & vida apenas é. O Minimuseu foi o projeto de arte mais importante na vida de Nice e Estrigas. Eles estavam juntos nessa cadeia operacional museológica, cada qual com sua função, complementavam-se. Individualmente seguiam sua arte, estilo próprio e técnica, com respeito às diferenças.
Para ser artista, Nice não esteve à sombra de ninguém: ainda solteira, quando quis fazer o curso de arte da SCAP e soube que o irmão Humberto reclamaria, buscou um emprego. Virgínia Woolf, no ensaio "Um teto todo seu", escreveu que para as mulheres que pretendiam escrever ficção fazia-se necessário um lugar sossegado para produzir, ter independência financeira e validação social. Partindo de uma perspectiva lúdica, pode-se pensar: Nice precisava de um jardim colorido e sem limites. Com talento e muito trabalho ela conquistou tudo isso. Viva a Nice e seus afetos!
Luiza Helena Amorim é jornalista e mestranda em História (UFC)