Sexta-feira, 29 de novembro de 2013: um incêndio aconteceu no auditório do Memorial da América Latina, projetado por Oscar Niemeyer (1907 - 2012). Na época, uma tapeçaria da artista Tomie Ohtake (1913 - 2015) foi quase destruída. O processo de reconstrução do espaço e da obra custou R$ 42 milhões. Segunda-feira, 21 de dezembro de 2015: fogo atingiu o Museu da Língua Portuguesa e deixou uma pessoa morta. O espaço reabriu há poucos dias, depois de um investimento de R$ 85 milhões. Domingo, 2 de setembro de 2018: um incêndio de grandes proporções ocorreu no Museu Nacional, o maior equipamento de preservação da história natural do Brasil. Com previsão para finalizar as obras em 2027, mais de R$ 380 milhões devem ser destinados à restauração. Após um histórico contínuo de chamas que destroem a cultura e a memória do País, a última ocorrência foi em um galpão da Cinemateca Brasileira, na quinta-feira, 29 de julho.
No lugar, estavam presentes vários arquivos importantes para o setor audiovisual brasileiro. Havia, segundo manifesto da S.O.S Cinemateca Brasileira, rede de ex-funcionários da instituição, documentos da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), do Instituto Nacional de Cinema (INC) e do Conselho Nacional de Cinema (Concine). No acervo, também estavam registros relacionados ao cineasta Glauber Rocha, à Pandora Filmes e à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA - USP).
O Ministério Público Federal informou na última sexta-feira, 30 de julho, que os prejuízos ainda estão sendo constatados. Em nota, acrescentou que a prioridade é prevenir outra tragédia e implantar uma nova instituição gestora, mas que a Polícia Federal já está investigando o caso. Para o MPF, o problema foi a má transição da gestão entre 2019 e 2020: "Encerrou-se o contrato de gestão da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), sem que a União desse continuidade aos trabalhos técnicos internos da Cinemateca, assumindo-os diretamente ou por outro ente gestor. Tal transição está sendo finalmente implementada pela União, dentro de procedimento judicial de conciliação, com prazos e diretrizes estabelecidos por consenso e coordenados pelo juiz da causa", afirma.
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Apesar do Ministério Público atribuir o incêndio a esse motivo, Mário Frias, secretário especial da cultura, mantém o posicionamento que se tornou recorrente: a crítica aos governos anteriores. "O trabalho que estamos fazendo é de reconstrução dos equipamentos culturais, que foram completamente destroçados pelas antigas gestões, que visavam usar as verbas públicas da cultura para compra de apoio político da elite artística", manifestou-se nas redes sociais.
"Acho que nós estamos vivendo em um Brasil de tempos sombrios, com incêndios em nossa cultura e em nossa natureza. Não são incêndios aleatórios, são quase planejados. Não se pode imaginar que esse incêndio é obra do acaso. Existe uma ação de estrangulamento financeiro por parte da União", aponta Fabiano Piúba, secretário da cultura do Estado do Ceará. A situação, de acordo com ele, está relacionada à falta de políticas culturais. "Essa destruição do acervo afeta de maneira política e simbólica não só o audiovisual, mas a cultura e as artes do Brasil como um todo, sem deixar perspectivas de como pode melhorar", acrescenta.
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S.O.S Cinemateca
Em 2019, o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), não renovou o contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). A empresa, responsável pela gestão da Cinemateca Brasileira, cobriu algumas despesas com o próprio dinheiro, mesmo que ainda não houvesse negociação oficial. Mas, a partir de abril de 2020, os salários dos trabalhadores deixaram de ser efetuados por falta de verba.
Com isso, surgiram organizações de trabalhadores que reivindicam seus direitos. Entre elas, está a rede S.O.S Cinemateca Brasileira. O POVO entrevistou Ana Caroline Rodrigues, uma ex-funcionária que integra o movimento. Alguns funcionários também complementaram suas respostas.
OP: Quais são as principais reivindicações da SOS Cinemateca no momento?
Ana Caroline Rodrigues: Primeiramente e com urgência, que a Secretaria do Audiovisual (SAv) possa viabilizar a atuação de uma equipe especializada para avaliar os materiais remanescentes do incêndio de 29 de julho. É necessário documentar o que foi perdido e resgatar materiais. Até onde sabemos, não há, até o momento, ninguém com conhecimento técnico acompanhando o ocorrido, nem mesmo prestando algum tipo de consultoria. Que seja feito um contrato emergencial que permita contratação de equipe para o monitoramento do acervo enquanto uma nova Organização Social não for selecionada para a gestão da Cinemateca Brasileira, evitando assim outros sinistros. Em tal contrato emergencial, poderão ser realizados um relatório de danos e medidas de manutenção necessárias para fomentar as ações da equipe técnica. Também reivindicamos o pagamento dos salários e benefícios de cinco meses atrasados e as rescisões dos trabalhadores.
OP: Você pode explicar um pouco sobre o que está acontecendo com a Cinemateca, principalmente, desde o ano passado?
Ana Rodrigues: Depois das greves e atos que aconteceram em junho e julho do ano passado, não houve nenhum acordo entre Acerp e Governo Federal, o que culminou na demissão de todo o quadro técnico da Cinemateca Brasileira em agosto de 2020. A administração da Cinemateca passou a ser feita pela Secretaria Especial da Cultura: foram feitos contratos emergenciais com empresas de serviços essenciais de manutenção, limpeza, segurança e de bombeiros. Ao longo do segundo semestre de 2020 e desse ano, a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) se prontificou em assumir a gestão até que a nova Organização Social fosse escolhida. Assim os trabalhos não ficariam paralisados, mas isso não chegou a acontecer. Desde então a Cinemateca está sem funcionários e o edital para contratação para uma nova Organização Social foi publicado somente no último dia 30 de julho, após o incêndio, quase um ano depois das demissões. Vale ressaltar que, de acordo com o edital, a nova Organização assumirá a Cinemateca somente no final deste ano. Além de problemas graves no edital que possam acarretar no desvio da missão institucional, o orçamento anual está perigosamente abaixo do mínimo necessário para a manutenção da instituição.
OP: A Cinemateca já estava passando por um processo difícil no último ano, com troca de gestão, demissão dos funcionários, entrega de chaves… Como isso tudo, que culminou no incêndio, reflete o tratamento que o governo tem com seu patrimônio?
Ana Rodrigues: O atual Governo tem um projeto de aniquilação da cultura brasileira que represente a diversidade identitária de seu povo, enquanto exalta culturas estrangeiras e o facismo. Barra medidas, investimentos e boicota soluções que possibilitam a execução de projetos e funcionamento de instituições. Essas pessoas, que atualmente administram o país, sabem que promover um amplo acesso à cultura, à educação e à informação, faz com a população passe a questionar decisões que tenham sido tomadas e isso dificulta a manutenção de uma estrutura de poder que beneficia somente um grupo pequeno de pessoas.
OP: Na sua opinião, que medidas devem ser tomadas para evitar que isso aconteça novamente e para que a Cinemateca possa se reerguer?
Ana Rodrigues: As pessoas que trabalham com cultura e patrimônio precisam ser ouvidas quando dizem que é necessário haver garantias para a continuidade dos trabalhos e manutenção dos espaços a longo prazo, independentemente de trocas de governos, é necessária uma política de Estado para a preservação do patrimônio brasileiro. O orçamento destinado anualmente deve ser pensado para além da manutenção predial, deve haver investimento em quadro técnico (contratação e profissionalização de equipe) e também investimento em equipamentos e tecnologia. É necessário criar mecanismos de recuperação de danos de décadas de descaso e sinistros, como criação de políticas e programas. É necessário criar mecanismos de aproximação das instituições de patrimônio audiovisual e as universidades e a indústria do audiovisual.
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