"Falavam que eu tenho sorte. Eu disse-lhes que tenho audácia." Célebre, a frase de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) atravessa toda a sua obra e vida. Da favelada em São Paulo, às voltas com cotos de lápis e a fome espetanto, até a publicação de "Quarto de Despejo" e dos dias que se seguiram.
A trajetória da autora, revelada em "Casa de Alvenaria", ganha novas cores com a dupla edição de seus diários. Em conversa com O POVO, a escritora Conceição Evaristo, uma das responsáveis pela curadoria dos "Cadernos de Carolina" pela Companhia das Letras, ajuda a retraçar o itinerário artístico e humano presente na obra de Carolina.
O POVO – Como foi a organização de “Casa de alvenaria”, os dois volumes dos diários da Carolina Maria de Jesus que saem agora pela Cia das Letras?
Conceição Evaristo – O conselho editorial foi formado com aval da filha da Carolina Maria de Jesus, Vera Teresa. Era muito importante pra gente ter a presença desse conselho, que começa formado por ela. Uma das preocupações do conselho era como a gente iria lidar com esse material, de modo que a publicação saísse o mais próximo e fiel ao texto original de Carolina. Essa foi a maior preocupação da gente, queríamos o texto de Carolina. Foi muito discutido que a transcrição seria bem fiel ao original, e depois então a gente discutiria, no momento da publicação, esse trabalho com a editora. E assim foi feito.
O POVO – A transcrição foi feita dos materiais manuscritos no arquivo em Minas?
Conceição Evaristo – Foi feita a partir do material que já se encontrava arquivado em Sacramento (MG), tinha muita coisa. Tinha um material que veio dos próprios cadernos originais. E o material de Carolina está espalhado, a gente encontra ele no Museu de Sacramento, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, no Instituto Moreira Salles, na Biblioteca Carolina Maria de Jesus, no Museu Afrobrasileiro e com pesquisadores. Porque Carolina saía dando esse material dela.
O POVO – Quando a senhora fala de fidelidade ao texto da Carolina, se refere ao teor das ideias, mas também ao aspecto de natureza escrita, gramática e grafia.
Conceição Evaristo – Isso. É a possibilidade de aproveitar a própria grafia de Carolina. Por que aproveitar essa grafia e essa gramática? Porque tem um processo de Carolina, que é muito interessante, falo disso no texto de apresentação, que é a versatilidade de Carolina. Para mim, é uma das autoras mais versáteis da língua portuguesa, e sei que isso causa uma interrogação. Porque as pessoas pensam a versatilidade só a partir da norma culta, mas quero dizer justamente isso: são os vários trânsitos que Carolina percorre na linguagem. Carolina, em determinados momentos, vai usar o português arcaico, a norma culta, a gramática do cotidiano, que é essa linguagem do dia a dia, que é linguagem produzida na urgência da fala. E a gente queria acompanhar esse processo. Porque se se corrige o texto dela, anula-se o próprio esforço e a compreensão que Carolina tem que de que está trabalhando com a arte da palavra. Carolina queria atingir toda a competência que a língua portuguesa exige para ser escritora. Tem momentos em “Casa de Alvenaria” em que ela fala que vai voltar pra escola, voltar a estudar. E a competência linguística dela, e o processo de letramento de Carolina, se dá desde a leitura de Camões... Carolina leu “As mil e uma noites”, os poetas românticos, leu jornal, ela escutava a “Hora do Brasil”. Ela tem um processo de letramento muito diverso e autodidata também, porque na escola mesmo ficou até o 2º ano primário, no interior de Minas. Mexer no texto de Carolina é inclusive não possibilitar a quem lê acompanhar esse processo dela, que é riquíssimo. Qual é o mal? As pessoas confundem a carência material que Carolina viveu. A tendência então é ler o texto dela pensando na pobreza de Carolina. É uma outra história. O fato de ela ter passado por carência material muito grande não significa que ela tivesse uma carência criativa.
O POVO – Nesse texto de abertura, a senhora fala que Carolina alterna registros e brinca com o clássico e essa “gramática do cotidiano”. Ela cria praticamente uma linguagem, é isso?
Conceição Evaristo – Ela cria praticamente uma linguagem. Agora, eu sempre me pergunto o seguinte: por que, para determinados autores, a criação de uma outra linguagem é considerada estética? Ninguém critica Guimarães Rosa porque ele cria neologismos. Quer dizer, parte do pressuposto de que, pra pessoa criar linguagem, neologismo, ela tem que ter o domínio da norma culta, que eu tenho dito que é o domínio da norma oculta da língua, porque pessoas têm esse domínio total. Se é liberdade de trabalhar a língua, ela tem que ser tanto de um sujeito com formação acadêmica como de uma pessoa que tem essa formação dessas experiências do cotidiano da linguagem.
O POVO – Falando um pouco do formato do diário. Carolina se notabilizou por isso, embora tivesse ambições muito maiores, que contemplava teatro, poesia. Como avalia isso? Houve uma tentativa de limitar Carolina como uma escritora favelada registrando seu dia a dia?
Conceição Evaristo – É, eu acho que essa primeira imagem que foi criada de Carolina, como a escritora de “Quarto de despejo”, a favelada que escreveu, a analfabeta que escreveu um livro, essa imagem foi muito necessária na época e foi a imagem que vendeu Carolina, tanto no Brasil quanto para o mundo. De certa forma, Carolina ficou engessada nessa imagem. Mas quem lê o primeiro livro, “Quarto de despejo”, e quem for ler agora “Casa de alvenaria”, já percebe a tendência de Carolina para a ficção. O grande desejo de Carolina era a ficção e a poesia. Essa imagem de Carolina cumpriu determinado propósito, que foi justamente de pensar que uma mulher analfabeta podia escrever um livro. Mas é uma imagem que hoje precisa se esvaziar, acho que tem outras leituras que pretendem esvaziar ou tirar a Carolina desse espaço onde ela ficou fixada.
O POVO – Havia uma queixa dela em relação ao Audálio Dantas de que ele pedia insistentemente que ela escrevesse diários, e ela não queria.
Conceição Evaristo – Sim, inclusive em “Casa de alvenaria” tem isso. Quem ler vai deparar com o desejo de Carolina, muitas vezes explicitado, de que ela queria escrever ficção. Vamos encontrar esse desejo várias vezes no próprio “Casa...”, que é um livro que ela escreve também justamente em consequência do sucesso do primeiro. Como foi um sucesso muito grande o “Quarto de despejo”, havia inclusive uma expectativa pública de que Carolina produzisse outro diário.
O POVO – E como foi a recepção de “Casa de alvenaria”?
Conceição Evaristo – Não foi uma recepção estrondosa como foi de “Quarto de despejo”. Nesse intervalo, há essa expectativa, mas quando publica, e já publica bem independente de Audálio, não tem realmente o efeito que o primeiro diário produziu.
O POVO – Quais são as principais diferenças e marcas desses dois diários?
Conceição Evaristo – Talvez a principal a principal diferença é o fato mesmo de “Casa de alvenaria” já ser uma obra em consequência da primeira. Se em “Quarto de despejo” Carolina escreveu de uma maneira mais livre, em “Casa...” ela sabe que está cumprindo uma função, ela está atendendo um desejo. Mas, mesmo assim, mesmo atendendo um desejo e quando diz que está escrevendo um diário e não quer escrever mais, e Carolina não era uma pessoa obediente, o fato de estar verbalizando isso dá também uma característica muito particular ao livro. Não dá pra ler “Casa...” pensando que é um segundo capítulo de “Quarto...”. A gente vê em “Casa...” uma Carolina até muito mais crítica. Mas a gente também não sabe o que foi selecionado pra sair em “Quarto de despejo”, não sabemos isso. Tanto que há também um projeto de rever o que foi publicado de “Quarto...”, porque o que foi publicado não abarcou realmente tudo que Carolina escreveu. Em “Casa...”, temos então uma Carolina que está refletindo sobre o boom que causou “Quarto...”, ela já está refletindo sobre o que a figura dela significava depois disso. Talvez a gente possa pensar em “Casa...” como esse momento de reflexão, de tomada de consciência de Carolina, do que significou “Quarto de despejo” e qual era o papel dela como escritora num meio muito diferente do dela. Hoje, quando falamos em escritoras negras, temos mais. Pode pensar em Ana Maria Gonçalves, além de mim e outras e outras. E, de certa forma, a gente se encontra. Carolina Maria de Jesus, não. Ela surge como única mesmo, e ela tem percepção disso.
O POVO – Desde “Quarto de despejo” fica claro que aquilo fazia parte de um projeto literário, de algo que ela pretendia desenvolver.
Conceição Evaristo – Sem sombra de dúvida. Carolina tinha um projeto de escrita, ela sabia o que queria em termos de arte, em termos de literatura. E ela era uma pessoa muito múltipla, fez letras de samba, gravou discos, queria fazer teatro, gostava de música. Ela era muito diversa na sua possibilidade de arte. E sabia que estava fora de um lugar comum. Portanto tinha um projeto, sim, ela tinha um encantamento pela poesia e pela ficção.
O POVO – Como percebe a leitura da obra de Carolina hoje e como a reedição de “Casa de Alvenaria” traz a escritora para os nossos dias?
Conceição Evaristo – Hoje eu vejo uma possibilidade maior de ter um público leitor que entenda realmente o que foi Carolina. Acho que o momento em que Carolina explodiu era um momento em que as pessoas tinham muita curiosidade em relação ao que uma mulher pobre e favelada poderia estar escrevendo. Hoje temos um público muito diverso e pesquisadores e pesquisadoras muito diversos também, que estão muito mais interessados no processo criativo de Carolina e na escrita do que nessa imagem de Carolina, de mulher negra, pobre, que escreveu livro e coisa e tal. E temos também uma juventude muito veemente, uma apropriação da escrita, da palavra literária, que é feita pela periferia – não gosto dessa palavra. Esse público que se apropria da literatura e produz literatura a partir de outro lugar social, de outra experiência, esse é um público também que, com muita avidez, procura Carolina, procura o que tem Carolina como musa inspiradora. Então o leque de compreensão do texto de Carolina se ampliou muito, e se ampliou porque saiu desse espaço engessado que é o espaço acadêmico. O espaço acadêmico se sente à vontade para trabalhar com os canônicos, ele não é muito versátil, não é muito aberto em relação a uma nova escrita. Como Carolina extrapolou esse campo, e tem um público que produz independente do aval da academia, isso amplia o leque de leitura, isso produz outra leitura.
Novos livros iluminam a obra
Abra-se "Casa de alvenaria" ao acaso. Em 7 de dezembro de 1960, por exemplo. Carolina Maria de Jesus escreve naquele dia: "Levantei de manhâ e limpei a casa. Não vou fazer almoço. Comprei frutas para os filhos: abacaxi e frutas maduras, ao natural. Eles comiam so as frutas que encontravam no lixo. Tem hóra que eu penso que morri e estou no céu" (grafia da autora mantida).
O registro do espanto com um cotidiano que havia se alterado depois do terremoto causado por "Quarto de despejo", fenômeno de leitura e de vendas publicado naquele mesmo ano.
Agora, Carolina, mulher negra e favelada, escritora vasta e audaciosa, como fazia questão de dizer, reflete sobre a mudança pela qual passava. O novo estatuto. Afinal, tinha deixado para trás o barraco de Canindé e passara a morar na "sala de visita". Uma transposição de mundos vencida a custo.
As edições de "Casa de alvenaria", com amplo material inédito, na íntegra e fiel aos manuscritos, inauguram o projeto "Cadernos de Carolina", da Cia das Letras, editora detentora de boa parte do catálogo da escritora mineira, nascida em Sacramento em 1914, criada em São Paulo e morta em 1977, aos 62 anos, sem saber de si que escrevia não para o presente, mas para o futuro.
Poeta, romancista, autora de sambas, Carolina chega no plural. "Casa de alvenaria", dividido em dois volumes (Osasco e Santana), revela trechos dos diários que cobrem o período de agosto de 1960 a dezembro de 1963. A eles devem se seguir outras obras da autora. O baú de Carolina começou a ser revisitado.
Livros
Casa de alvenaria (volume 1): Osasco
Cia das Letras
232 páginas
R$ 39,90
Casa de alvenaria (volume 2): Santana
Cia das Letras
520 páginas
R$ 59,90
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