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Max Perlingeiro: "A arte pública está posta"
Vida & Arte

Max Perlingeiro: "A arte pública está posta"

Galerista e curador Max Perlingeiro escreve ao V&A sobre as relações das obras de Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) com o espaço público
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O Monumento ao Saneamento Básico, ou Interceptor Oceânico, fica na Avenida Beira Mar de Fortaleza (Foto: Gentil Barreira / divulgação)
Foto: Gentil Barreira / divulgação O Monumento ao Saneamento Básico, ou Interceptor Oceânico, fica na Avenida Beira Mar de Fortaleza

A trajetória do artista Sérvulo Esmeraldo seguiu um padrão adotado pela maioria dos grandes artistas que tem a sua origem fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Do Ceará a partir da primeira metade do século XX vieram: o pintor e professor Raimundo Cela (1890-1954), prêmio de viagem à Europa no Salão Nacional de Belas Artes em 1917 e introdutor do ensino da gravura em metal no Brasil; o paisagista Vicente Leite (1900-1941), o melhor amigo de Candido Portinari na Escola Nacional de Belas Artes, também prêmio de viagem à Europa em 1940, porém não podendo usufruir devido à guerra; e Antônio Bandeira (1922-1967), que vai para o Rio de Janeiro e logo em seguida, como bolsista do governo francês, vai para Paris em 1946 permanecendo até a sua morte em 1967. Paris era o centro das atenções dos artistas e intelectuais.

Nas décadas de 1950 e 1960, a arte brasileira passa por grandes transformações. Neste período, os artistas saem do Brasil em busca de formação e vivência em um novo ambiente. A maioria tem o destino final Paris e alguns Nova York. Por questões políticas ou por questões artísticas, encontravam-se em Paris neste período: Lygia Clark (1920-1988), Sergio Camargo (1930-1990), Flavio Shiró (1928), Rossini Perez (1932-2020), Arthur Luiz Piza (1928-2017) e Sérvulo Esmeraldo (1929-2017), entre outros.

Sérvulo, após uma breve experiência no meio artístico em São Paulo (1951-1956), viaja para Paris em 1957 como bolsista do governo francês e lá reside até 1980, sempre participando ativamente da vida artística no Brasil. Exímio gravador, participou de inúmeras exposições individuais e coletivas, em instituições públicas e privadas. Participa também da V Bienal Internacional de São Paulo com grande destaque.

Seguindo a velha tradição dos grandes escultores, produziu ao longo do tempo dezenas de maquetes de esculturas que um dia seriam executadas. A partir de 1976 suas esculturas monumentais saem do ateliê para o espaço urbano. Em 1980 fixa residência em Fortaleza, onde permanecendo produzindo com o mesmo vigor da juventude suas novas esculturas e objetos, obstinado pela "invenção" e pelo desenho.

Sua obra pública com características monumentais vem sendo estudada há décadas. A escultura do "Monumento ao Jangadeiro" foi recentemente restaurada e retornou após um período de ausência na requalificação da orla de Fortaleza.

As obras instaladas na Sede Administrativa do Banco do Nordeste do Brasil, na Secretaria Regional II, "Portão/Mural" (1980), "Observatório" (1991), no Parque do Cocó, "Quadrados" (1987), no Campus do Pici da Universidade Federal do Ceará, entre muitas, outras fazem parte do cotidiano da cidade de Fortaleza.

O historiador, crítico de arte e curador suíço Hans-Michael Herzog, curador da exposição na Pinakotheke São Paulo, "Sérvulo Esmeraldo: 90 2", comenta no livro editado para a mostra: "A escultura mais espetacular e extraordinária de Sérvulo Esmeraldo é e continua sendo, na minha opinião, seu 'Monumento ao saneamento básico de Fortaleza', localizado na praia do Náutico e terminado em 1977. Sua radicalidade era inédita no Brasil. Até então, os espaços públicos exibiam apenas estátuas de dignitários falecidos, ou seja, memoriais. Em vez disso, o artista apresentou uma escultura composta por dois canos cilíndricos que se erguem lateralmente para ambos os lados como um 'v' assimétrico a partir de uma base, como se um grande e longo cano tivesse sido dobrado sobre essa base. O choque que a obra produziu não foi devido apenas ao inesperado comprimento de 34 metros, mas principalmente ao material, que se correspondia totalmente ao seu título: canos grossos, destinados à coleta e transporte do esgoto de Fortaleza. Desse modo, o artista transformou em arte os canos de canalização — uma novidade absolutamente revolucionária!"

Ao mesmo tempo, Sérvulo Esmeraldo criou uma obra do "realismo abstrato": "A minha escultura levou as pessoas a terem uma ideia dessa obra grandiosa que era subterrânea e ninguém via. A escultura chamou a atenção da cidade. E o objetivo era esse. Eu compreendi o momento histórico e projetei algo também grandioso. Se tivesse pensado de forma acanhada, ninguém ia se preocupar" (Sérvulo Esmeraldo, "A linha e a luz". Fortaleza, 2015, p. 131.).

A escala, o tamanho e a posição de esculturas não transportáveis são fixadas pelas relações topográficas de seu local de destino, seja urbano ou rural. Idealmente, as obras passam a integrar esses lugares e modificam sua organização, tanto do ponto de vista conceitual como da técnica de percepção. Elas não devem decorar o lugar, mas ser independentes — e dele também se tornar inseparáveis. Sua forma deveria surgir a partir da análise das condições específicas do contexto existente, nas quais são abrangidas também as relações sociais e políticas, de modo que a escultura interaja de maneira crítica com o conteúdo e o entorno de seu lugar de destino, provocando um diálogo do observador com o entorno. Tudo isso foi alcançado aparentemente sem maiores esforços na realização dessa obra de Sérvulo Esmeraldo. É como se o artista, com sua acentuada inteligência intuitiva, tivesse internalizado ao longo dos anos todas as máximas da realização de arte em espaço público citadas acima!

Por fim, o que torna o monumento de Sérvulo Esmeraldo tão significativo em Fortaleza é sua postura intelectual profundamente democrática: "A obra em espaço público é uma forma de democratizar a arte. (...) A arte pública está posta, à disposição, ao alcance de todos para olhar, tocar, sentir, interagir (Sérvulo Esmeraldo, "A linha e a luz". Fortaleza, 2015, p. 127.).

Desse modo, o artista se afasta explicitamente das necessidades de representação do capitalismo tardio, internacionalmente mais presentes desde os anos 1960: esculturas que brotavam do chão no centro das cidades, à semelhança de cogumelos, para festejar — como emblemas e marcas registradas da modernidade e do irrefreado avanço econômico — a ideologia capitalista. Sérvulo Esmeraldo se voltou tacitamente contra essa usual "plaza art", que serve apenas como decoração e não tem qualquer relação com os contextos nos quais é inserida. "Plaza art" são objetos sem pertencimento formal a algum lugar, que, desamparados, tentam afirmar que são "arte moderna" e que em sua figuração abstrata assumem um caráter de logotipo qualquer.

Sérvulo Esmeraldo alcançou exatamente o oposto com sua escultura única dedicada ao saneamento básico da cidade de Fortaleza — essa escultura modificou fundamentalmente o espaço público, que quase passou a ser compreendido em função dela.

Max Perlingeiro é marchand, galerista, curador, administrador de coleções e fundador das galerias Multiarte (Fortaleza), Pinakotheke Cultural (Rio de Janeiro) e Pinakotheke São Paulo

Sérvulo 90 + 2

O Crato e a internet recebem até o final de setembro a programação do Festival Sérvulo Esmeraldo 91, que homenageia a obra do artista nascido no município. Apesar do "91" no nome, porém, Sérvulo teria na verdade completado, em fevereiro de 2021, 92 anos. É por esse mote que o galerista Max Perlingeiro organizou, em colaboração com a galeria Raquel Arnaud, a exposição "Sérvulo Esmeraldo (1929-2017): 90 + 2", que abre nesta segunda, 13, na Pinakotheke Cultural de São Paulo. A mostra chegará também, depois, ao Rio de Janeiro e a Fortaleza.

Com curadoria de Hans-Michael Herzog, a exposição traz 90 obras do artista feitas entre as décadas de 1950 e 2000. Para Dodora Guimarães, presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo e companheira de vida do artista, o destaque da mostra é o panorama da produção francesa de Sérvulo.

"O trabalho do Esmeraldo na Europa é ainda pouco conhecido no Brasil. Essa é a importância dessa exposição: apresentar as gravuras, os objetos e, sobretudo, os excitáveis", destaca, citando por último as obras criadas por ele que se baseavam na energia eletrostática e que o popularizaram na França junto ao movimento da arte cinética.

A exposição traz mais de 20 excitáveis de produzidos na França nos anos 1960 e 1970. Apesar do caráter inovador, o artista não desenvolveu o gênero quando voltou ao Brasil, nos anos 1980, por conta das condições de umidade do País, que afetariam a construção das obras.

"É uma obra tipicamente europeia. A exposição reúne esse conjunto de 23 obras dessa natureza, o que é uma coisa fabulosa para a arte brasileira, e também pinturas dos anos 1960 que nunca foram expostas no Brasil, objetos do mesmo período", adianta Dodora. (João Gabriel Tréz)

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