Mil dias significam menos de 2 anos e 9 meses de gestão. É tempo para consolidar um projeto, ter senhoridade sobre um problema, diagnosticar e agir. Ter domínio do leme, saber de onde o vento vem e aonde leva. Mas os barcos da educação e da cultura navegaram nesses dias sempre em tempestades permanentes e com comandantes que não deram tranquilidade. Foram quatro nomes no Ministério da Educação e cinco na Secretaria Especial de Cultura.
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A dança das cadeiras nas pastas reflete a tentativa constante do governo em manter as suas alas mais ideológicas no comando da cultura e da educação do País. É a negação do pensamento crítico. Como resultado, um bote na ciência concretizado, por exemplo, em uma queda de 89% no número de bolsas de doutorado no exterior entre 2018 (ano anterior a Bolsonaro) e 2020 (o segundo ano deste governo). Na Cultura, o declínio de recursos previstos para o setor no atual governo foi de 15,64%, em dois anos.
Leia o especial Bolsonaro 1.000 dias
Em vários cenários o desmonte é claro, é o que mostram os dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - entidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações - e que patrocina a pesquisa no Brasil. São números de 2001 a 2021, obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e em bases abertas do Governo Federal, levantados e analisados pelo DataDoc, o Núcleo de Jornalismo de Dados do O POVO.
No ensaio "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" (1973), o crítico e fundador da Cinemateca Brasileira Paulo Emílio Sales Gomes, referindo-se ao audiovisual, escreveu: "O subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado". A ideia aplica-se também à história das políticas culturais no Brasil, alcançando imbricação acentuada sob a égide do governo do presidente Jair Bolsonaro. Enquanto deputado e, depois, candidato à Presidência, o político tratou a cultura como segue tratando: entre ataques e desprezo. Numa paráfrase, é possível diagnosticar: na gestão Bolsonaro, subdesenvolvimento não é estado circunstancial, mas projeto.
De acordo com os dados do Siop, a queda na execução do orçamento na atual gestão federal é a mais expressiva: -38,26%. Isso quando se compara o segundo mandato do ex-presidente Lula e o primeiro de Dilma Rousseff. Somente o primeiro governo de Lula teve variação positiva no orçamento executado - a subida foi de 35,23%.
Todas as mudanças do primeiro para o segundo ano de orçamento planejado para a pasta foram para mais - até chegar em Bolsonaro. A queda de recursos previstos para o setor no atual governo foi de 15,64%. A maior variação ocorreu entre os dois primeiros anos do segundo mandato de Lula, quando o valor aumentou 79,17%.
Este episódio faz parte do especial "Bolsonaro 1.000 Dias", que traz reportagens especiais e conteúdos em diversas áreas. Para ler a reportagem de abertura dessa série, é só acessar este link. A programação do projeto, que abordará vários recortes dos dias com Bolsonaro, seguirá até 14 de outubro, antecipadas às terças e sextas no multistreaming O POVO Mais. No impresso, o conteúdo sairá às terças e quintas.
O que artistas e gestores sentem na prática se comprova pelos números levantados pelo DataDoc acerca da variação percentual de orçamento e posterior execução entre o primeiro e segundo anos de cada mandato presidencial. Apesar da série histórica disponível compreender seis governos (os dois de Lula, os dois de Dilma Rousseff, o de Michel Temer e o de Bolsonaro), o segundo mandato de Dilma e o governo de Temer não tiveram segundo ano de governo completo, inviabilizando a comparação. Entraram na comparação o primeiro e o segundo mandatos de Lula, o primeiro de Dilma e o governo Bolsonaro.
Cantora, atriz e coordenadora geral da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (Atrac), Yara Canta reforça a ideia da apartação entre o setor e a gestão. "Existe uma guerra contra nós, trabalhadores da cultura, declarada por este governo. O próprio secretário (o ator Mário Frias) também declarou guerra contra o Projeto de Lei Paulo Gustavo, que beneficiaria toda a classe", aponta.
"A instabilidade institucional da cultura, especialmente no âmbito federal, é uma constante. No governo atual, o que se mostra é um descaso com o setor", avalia a advogada e pesquisadora de Direitos Culturais Cecilia Rabêlo. "A política pública em vários países tem a cultura como um pilar transversal a todas as pastas. Aqui, a gente vê exatamente o contrário. Quando se tira a pasta da cultura do âmbito de ministério, é muito simbólico", avança a especialista.
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