Logo O POVO+
"Musa, deusa, mulher": Belchior na voz das grandes cantoras brasileiras
Vida & Arte

"Musa, deusa, mulher": Belchior na voz das grandes cantoras brasileiras

Da intérprete mais celebrada do País à filha mais jovem de Belchior, uma das marcas da obra do compositor cearense é a forte presença no repertório de cantoras brasileiras
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Cantor e compositor Belchior  (Foto: Divulgação/TV CULTURA/)
Foto: Divulgação/TV CULTURA/ Cantor e compositor Belchior

A partir de 1975, Belchior consagrou-se em todo o Brasil pela interpretação de suas canções feita por Elis Regina, que imortalizou "Como nossos pais" e "Velha roupa colorida", no antológico show e disco "Falso brilhante". Quinze anos mais tarde, a conterrânea Lúcia Menezes junta-se a luxuoso rol de intérpretes femininas de Belchior, que inclui Vanusa, Vânia Bastos, Leny Andrade e Margareth Menezes, ao lançar o álbum "Divina comédia humana", com músicas do artista.

Nas duas últimas décadas, Belchior também tem estado fortemente presente no repertório de um grande número de intérpretes brasileiras, dos mais variados estilos.

É evidente que a ausência pública de Belchior, a partir de 2007, na medida em que deixava os fãs e admiradores sedentos de seus concertos vigorosos, motivou uma série de releituras de sua obra, como forma de compensar, junto ao público, o vácuo deixado pela voz e corpo do letrista e cantor.

Já em 2007, a cantora pop-rock Márcia Castro chegou a incluir "Coração selvagem" no setlist inicial de seu primeiro disco, "Pecadinho". Apesar de a música não ter sido lançada, na versão final do álbum, a baiana não deixou, em outras oportunidades, de interpretar a canção, como nos shows de seu segundo disco, "De pés no chão" (2011), e nos espetáculos em que acompanhou Mercedes Sosa, por ocasião da última turnê da argentina, com shows na Alemanha, Itália e Brasil.

Em 2008, Zélia Duncan interpretou ao vivo, na Baía de Guanabara, a canção "Paralelas", inspirada na versão feita por Vanusa, momento registrado no DVD "Um barzinho, um violão - Novela 70", divulgado no mesmo ano.

Três anos depois, foi a vez da cearense Mona Gadelha prestigiar Belchior. No CD "Praia lirica - Um tributo à canção cearense dos anos 70", a talentosa roqueira, revelando versatilidade, gravou a voz e a piano, com Fernando Moura, as canções "Galos, noites e quintais", "Paralelas" e "Sensual".

Em 2013, outra cearense, a cantora Jord Guedes, no espetáculo intitulado "40 anos de Pessoal do Ceará - Uma divina comédia humana falando da vida", no qual homenageou Belchior e outros artistas do Estado consagrados nacionalmente na década de 1970, escolheu para compor seu show também "Galos, noites e quintais", além de "Como nossos pais", "Divina comédia humana", "A palo seco", "Mucuripe" (parceria com Fagner) e "Chão sagrado" (composta com Rodger Rogério).

Mostrando novamente que a obra de Belchior ultrapassa limites regionais, a cantora Ana Carolina, no show #AC, que estreou em 2014 em São Paulo, interpretou de forma enérgica a composição "Coração selvagem", um dos pontos mais altos do espetáculo junto à plateia - reação que se repetiu nos outros estados pelos quais passou. Ao alterar o verso original "Coma um cachorro-quente" para "Depois do meu beijo quente", a mineira repetiu o gesto de Elis que, ao cantar e gravar "Como nossos pais", trocou os possessivos de proximidade "meu" e "minha", dando outra interpretação ao original de Belchior, como lemos no trecho: "Para abraçar seu irmão / E beijar sua menina na rua / É que se fez o seu braço / O seu lábio e a sua voz".

Em 2017, no ano da partida de Belchior, junto a apresentações na internet e em palcos pelo País, a carioca Daíra lançou o CD "Amar e mudar as coisas", com a releitura de 10 canções assinadas por Belchior.

Igualmente inspiradas na canção-título de "Alucinação" e com as mesmas força e delicadeza de Daíra, vimos reunidas Karina Buhr, Marisa Orth e Taciana Barros, no espetáculo "Amar e mudar as coisas - Canções de Belchior", que aconteceu em 2018, no Sesc Rio.

Em 2020, no contexto da pandemia, a cantora e compositora Ana Cañas realizou live, exclusivamente com interpretações de músicas de Belchior. O projeto deu origem ao álbum "Ana Cañas canta Belchior", em tributo ao cearense, que inclui "Coração selvagem" e "Alucinação", com videoclipes lançados previamente nas redes, onde vemos Ana cantar e dançar as músicas de Belchior.

Também na pandemia, vimos nascer "Sandra Pêra em Belchior", álbum no qual a atriz e integrante do grupo musical Frenéticas interpreta clássicos como "Velha roupa colorida", "Na hora do almoço", "Paralelas", "A palo seco" e "Sujeito de sorte", com arranjos de Cristóvão Bastos, Jorge Helder e Jamil Jones.

No ano de 2021, enriquecendo de forma singular essas releituras, conhecemos Vannick Belchior, que se lançou como artista interpretando, com seu sangue e alma, célebres canções do seu pai.

Essa lista pode ser engrossada tanto com outras interpretações da clássica "Como nossos pais" feitas por Maria Rita e Sandy, bem como com tantas outras realizadas por inúmeras cantoras, que se repetem a cada noite, seja pelos sons de barzinhos brasileiros, seja pelas redes da internet.

Para entender o fenômeno, podemos perguntar: "Por que as canções de Belchior vêm sendo, ao longo de quase 5 décadas, interpretadas por tantas mulheres?"

Buscando respostas nas pesquisas do teórico francês Dominique Maingueneau, vemos que, se a posição de todo artista, por estar à margem da sociedade, o leva a identificar-se com a figura feminina, é natural que o que dizem as canções (letra e música) de Belchior, cancionista que tanto abordou figuras marginalizadas em nosso país, ajuste-se tão harmoniosamente no dizer interpretativo de cantoras.

Ao escolher Belchior para cantar, ao mesmo tempo em que defendem e constituem um lugar feminino no mundo da música, essas cantoras questionam espaços sociais de exclusão da mulher.

Amalgamada à voz de todas essas "musas, deusas, mulheres, cantoras e bailarinas", como resume a canção "De primeira grandeza", vemos ecoar uma das principais posturas incorporadas por Belchior: a resistência, fundadora da própria natureza tanto do artista quanto da mulher, ilustrada no verso "Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer 'Não!', eu canto.".

Josy Teixeira Carlos é professora e pesquisadora de música popular

Tenha acesso a todos os colunistas. Assine O POVO+ clicando aqui

 

O que você achou desse conteúdo?