"Com todo respeito que eu tenho à Academia (Brasileira de Letras), ela tem que tomar cuidado, porque senão perde o bonde da história", afirmou a escritora Conceição Evaristo em setembro deste ano. Vencedora do Prêmio Jabuti e autora de livros como "Becos da Memória" e "Olhos d'água", ela se candidatou em 2018 à cadeira 7 da Academia e, eleita, seria a nona mulher e primeira negra a compor a instituição criada em 1897 e primeiramente presidida por Machado de Assis, escritor negro embranquecido pela historiografia oficial. Ela recebeu um voto.
A candidatura da escritora é um marco do recente debate nacional sobre formas de acesso e diversidade na ABL — questionamentos que perpassam não somente os campos da literatura ou cultura, mas o próprio País —, que se reacendeu com o atual momento da Academia, que vem passando por sucessivos processos eleitorais.
Até agora foram quatro, com os dois primeiros vencidos pela atriz Fernanda Montenegro e pelo cantor e compositor Gilberto Gil. O terceiro foi marcado pela primeira candidatura de um escritor indígena, Daniel Munduruku, mas vencido pelo médico Paulo Niemeyer Filho. O quarto foi vencido pelo advogado José Paulo Cavalcanti Filho e uma última vaga será ocupada em dezembro. Equilibrando-se entre a manutenção do status quo e a busca por "não perder o bonde da história", a ABL acena para maior abertura, mas de forma limitada.
Inspirada na congênere francesa, a Academia Brasileira de Letras foi fundada em 20 de julho de 1897, no Rio de Janeiro. Resguardar a história e reconhecer os valores da produção literária brasileira constam como intenções primeiras da instituição.
O caso de Conceição Evaristo provocou intenso debate na instituição e na sociedade e é reconhecido por Michele Fanini, doutora em sociologia pela USP com a tese "Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003)", como o estopim do debate sobre representatividade na ABL. "Seu não ingresso muito nos diz sobre o modo como funcionam as políticas de indicação e candidatura, suas liturgias e rituais engessados", inicia.
"A história da ABL é repleta de 'lacunas institucionais'", define Michele, utilizando o termo para destacar a "política de ingresso seletiva e excludente" da Academia. Raça e gênero foram constantes "barreiras simbólicas" para o ingresso na instituição desde literalmente o princípio. "O primeiro 'não ingresso' feminino na ABL coincide com o próprio período de criação da instituição", ensina.
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) foi uma das intelectuais que compôs a gênese da Academia e teve seu nome incluído por Lúcio de Mendonça (1854-1909), um dos idealizadores da ABL, em uma lista extraoficial de membros. Na oficial, porém, o nome dela foi excluído e, no lugar, foi colocado Filinto de Almeida, marido dela.
"A escritora não ingressou por ser mulher", atesta Michele. "À época, a ABL não chegou a assumir explicitamente sua postura misógina, tendo atribuído a ausência feminina ao fato de a instituição ter sido concebida à imagem e semelhança da Academia Francesa de Letras, que restringia o ingresso aos 'homens de letras'", explica, termo que se tomava em sentido literal.
A primeira eleição de uma mulher à ABL só ocorreu 80 anos depois da exclusão de Júlia Lopes. Em 1977, a cearense Rachel de Queiroz tornou-se imortal. O ingresso da autora é relevante não somente pelo peso simbólico, mas, como aponta Michele, "pelo que seus bastidores nos revelam acerca das relações de força que uma candidatura pode encerrar".
Além do "indiscutível mérito literário" de Rachel, o jogo político foi essencial para a eleição da autora. Prima de Humberto de Alencar Castelo Branco (presidente no início da ditadura militar, entre 1964 e 1967), ela foi convidada por ele para compor o Conselho Federal de Cultura junto de amigos que já eram membros da ABL, como Vianna Moog e Aurélio Buarque.
O desejo por um nome "literariamente prestigiado, politicamente influente e que mantinha laços estreitos com muitos acadêmicos" como o de Rachel de Queiroz se sobrepôs ao fato dela ser mulher. A octogenária proibição de candidaturas femininas, tanto simbólica quanto oficial, foi derrubada em duas reuniões internas da ABL para possibilitar o ingresso da cearense.
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