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Eleições à ABL são marcadas pelo debate sobre diversidade
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Eleições à ABL são marcadas pelo debate sobre diversidade

Historicamente constituída por maioria de homens brancos, a ABL teve eleições seguidas e recentes com a diversidade como pauta principal
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Michele Fanini realizou pesquisa sobre a trajetória das mulheres na ABL (Foto: CHRISTINA RUFATTO)
Foto: CHRISTINA RUFATTO Michele Fanini realizou pesquisa sobre a trajetória das mulheres na ABL

Apesar de ter entre os fundadores uma mulher e dois homens negros — além de Machado de Assis, José do Patrocínio também foi membro-fundador —, a Academia Brasileira de Letras é historicamente constituída por uma maioria de homens brancos. Por isso, chama a atenção que as três últimas eleições tiveram a diversidade como pauta principal, com as vitórias de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil e a candidatura de Daniel Munduruku. À cadeira que o escritor indígena concorreu, foi eleito o médico Paulo Niemeyer Filho.

"É importante destacar que, pela primeira vez, temos como resultado de pleitos sucessivos o ingresso de representantes de grupos historicamente invisibilizados pela ABL", destaca a pesquisadora Michele Fanini, referindo-se aos ingressos de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil na Academia.

Na avaliação da pesquisadora Michele Fanini, as entradas de Fernanda e Gil "soam como um aceno da ABL a uma maior diversidade". "Ambos os ingressos parecem sinalizar um movimento de renovação, uma possível intenção de ampliar a diversidade do seu quadro de membros e, com isso, se aproximar do Brasil, digamos, real, que é tão plural e profuso", compreende.

Apesar deste "aceno", velhos hábitos da Academia se mantiveram, como comprova a não inclusão de Daniel Munduruku na instituição. Autor de mais de 50 livros infanto-juvenis e duplamente finalista da atual edição do Prêmio Jabuti, o escritor teve a candidatura apoiada por mais de cem escritores em uma carta aberta divulgada às vésperas da eleição. Ele, porém, recebeu nove votos contra os 25 destinados ao neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho — autor do livro de não-ficção "No Labirinto do Cérebro", lançado em 2020.

"A presença de Daniel Munduruku teria um inegável peso simbólico, reforçando a direção desse movimento que a ABL parece realizar, de afastamento dessa imagem passadista, que remonta a um Brasil colonial", avalia Michele, complementando: "Há uma pressão popular por maior representatividade a qual a ABL não é completamente indiferente, mas não a vejo como fator definidor de uma eleição".

A pesquisadora destaca, porém, o efeito "pedagógico" das recentes discussões provocadas pelas candidaturas mais diversas à ABL. "Se não a ponto de produzir impactos futuros na dinâmica interna da ABL, trazem-nos certamente para o debate público, na medida em que, tomando a instituição como uma espécie de microcosmo de nosso campo artístico/literário, nos possibilita jogar luz sobre temas como a raça/etnia e o gênero", aponta.

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Daniel Munduruku é autor de mais de 50 livros infanto-juvenis
Daniel Munduruku é autor de mais de 50 livros infanto-juvenis

"Quero crer que posso ser um vetor para mudança"

 

OP - Como foi o seu processo da campanha à ABL?
Daniel - Um dos conselhos que recebi foi o de não achar que eu era conhecido o suficiente para acreditar que seria eleito sem a apresentação do meu trabalho aos acadêmicos. Segui o protocolo que os ingressantes devem cumprir: mandei a carta, escrevi e-mails personalizados para cada acadêmico, enviei duas levas de livros que apresentassem a diversidade de minha produção e telefonei para os que aceitaram receber minha ligação. A grande maioria me deu devolutiva muito simpática e alguns retornaram minha ligação ou tomaram iniciativa própria de me telefonar. Depois foi apenas esperar o resultado.

OP - Recentemente, houve três eleições: a que você participou e as que elegeram Fernanda Montenegro e Gilberto Gil. O que você achou da entrada deles na ABL?
Daniel - Achei maravilhoso. Os dois são ícones da cultura nacional. A ABL tem esta função na sociedade brasileira de dar visibilidade à diversidade de expressão. Os dois são dois grandes nomes do universo da cultura do nosso país. Merecem estar ali.

OP - A mineira Conceição Evaristo se candidatou a uma cadeira da ABL em 2018, não foi eleita e, depois disso, disse que não iria tentar novamente e que esperava que outras pessoas negras o fizessem. Você tentaria de novo?
Daniel - Estou na fila. Acho que há uma necessidade imperiosa de dar visibilidade às pautas indígenas para além da luta política pela demarcação das terras. Temos que nos apresentar à sociedade brasileira dentro daquilo que sabemos fazer. Talvez haja, e certamente há, muitos escritores e escritoras negras capazes de competir a uma cadeira na ABL. Mas, com toda franqueza, não há muitos indígenas com a mesma capilaridade. Temos que usar as armas que estão ao nosso dispor. Acho que sou a arma mais moderna para que isso aconteça.

OP - Conceição Evaristo afirmou em setembro que a ABL poderia "perder o bonde da história". Como você avalia a questão da ainda ausente diversidade na instituição?
Daniel - Ela reflete o que a sociedade brasileira tem sido ao longo do tempo: branca, elitista, masculina e tradicional (no pior sentido do termo). Não significa que não possa mudar. Creio que levará um tempo para que isso ocorra de forma radical, mas vai acontecer. Não quero achar que eu sou a lenda responsável por esta mudança. Quero crer que posso ser um vetor para que ela ocorra, ainda que seja apenas provocando o debate, como Conceição Evaristo fez.

OP - O que você tira da experiência dessa candidatura?
Daniel - Gosto de pensar que tudo serve para nosso amadurecimento humano. Saio do jeito que entrei: feliz. Não esperava um comportamento diferente. Se tivesse entrado, continuaria o mesmo, provavelmente. Neste sentido estou bem tranquilo porque o resultado foi muito positivo: dei visibilidade à causa indígena; levantei uma discussão em torno da literatura; uni diferentes vozes para um propósito nacional; fiz a alegria de muitos amigos; fui reconhecido e admirado por pessoas que não faziam parte do meu círculo e que agora me acompanham... O que mais poderia eu querer? Ah, a imortalidade!!!... Brincadeirinha.

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