Na metamorfose da vida, há tempos a humanidade rearranja suas rotas em ciclos. Tudo para traçar recomeços. Sujeitos atravessam momentos, costuram memórias, florescem no caminhar. Nesse percurso, criam rituais de passagem entre períodos, que convidam à valorização do processo, à conexão com o tempo, ao mergulho no incerto com propósito. Apresentam, ainda, estratégias para o porvir. Logo mais, o ciclo de mais um ano encerra. Com a pandemia da Covid-19, a humanidade se despediu de 2020 ainda com incertezas. Neste 2021, a ampla vacinação da população despertou o anúncio de um novo tempo.
Na canção "Rito de Passá", a cantora paulista MC Tha reverbera: "Cantar e dançar pra saudar/ O tempo que virá/ Que foi, que está/ Tocar pra marcar/ O rito de passá". Talvez a música, que une o ritmo do funk aos saberes da umbanda, seja adequada. A chegada do Réveillon traz à tona, quase de maneira inconsciente, o pensamento sobre o que aconteceu até aqui. Também possibilita fazer um balanço desta jornada, agradecer as tramas da vida, compreender a própria trajetória e reunir sonhos para a abertura de outro ciclo — como o do ano que finda para o início de 2022.
Florescer
Para Sy Gomes, historiadora e multiartista cearense, os rituais são "criações narrativas, emocionais e performativas". "Seja o ritual que programa uma sequência de ações para a produção de algo ou o ritual voltado para um sentido mais cotidiano, como os nossos hábitos e nossa rotina... Tanto esses quanto os mais extraordinários, mágicos e de passagem ou rituais com objetivos próprios são invenções. Isso, incluindo a faceta societária do ritual, é invenção. É a elaboração de um procedimento, de um motivo, de um desejo", analisa.
Neste período, Sy geralmente vai à praia. Com obras ligadas à elaboração de mundos (vegetais, humanos, espirituais), a artista conta: "Esse desligamento da cidade é importante pra mim". Neste Réveillon, além dos planos de "pegar sol", Sy pretende comprar plantinhas para o seu novo quintal (recentemente, mudou-se de Fortaleza para o Eusébio), desconectar das redes sociais e aproveitar sua família.
Na virada de 31 de dezembro para 1° de janeiro, em vez de falarem "Feliz Ano Novo" e soltarem fogos, Sy e os parentes cantam: "Eu fico com a pureza/ Da resposta das crianças/ É a vida, é bonita/ E é bonita". Segundo a artista, a família celebra a vida, em homenagem à uma tia, falecida há cerca de sete anos, que adorava a música "O Que É, o Que É?", de Gonzaguinha (1945-1991).
No início de 2022, Sy quer ficar "quietinha". Vai pintar em isolamento, para só depois vir a público. Ela compartilha desejos para este novo tempo: "Avancemos nos debates de arte contemporânea, com mais travestis, indígenas, pessoas pretas protagonizando não só exposições, mas também coordenações em artes. Que os centros culturais observem nossos talentos e nos convidem para gerir a cultura do Ceará, incentivem essas pessoas a conseguirem o seu melhor. Queria que esse estado de depressão coletiva fosse embora. Quero todo mundo bem".
Crescer como pessoa e espírito
Cacique Climério Anacé, da aldeia Japuara, é pintor indígena, escritor, babalorixá, artesão, raizeiro, rezador, palestrante e oficineiro. Sacerdote da umbanda, ele explica como as religiões de matriz afro-indígena entendem este ritual de passagem: "É a oportunidade de crescer como pessoa e espírito. O fim de um ciclo na umbanda representa a força da entidade em sustentar e garantir mais um ano de vida e prosperidade".
Com foco no levante financeiro e na saúde, Cacique Climério (@c.e.u_exutatacaveira) realiza banhos de ervas, firmeza e aconselhamento. Para este momento de recomeço, revela: "Na minha fundamentação, fazemos as oferendas de fim de ano agradecendo pelas graças alcançadas". Isso também tem a ver com as tradições indígenas: "O culto das oferendas está ligado, também, ao culto ao Caboclo, ao Oxossi, ao Caboclo Índio". Além do agradecimento, pede-se prosperidade para o ano que chega. Cacique Climério roga por força, "pois a luz, que é Deus, está em nós… A força depende também de nós".
Redescobrir o novo
"A vida é sempre um recomeço. Cada dia somos convidados a redescobrir o novo que vem ao nosso encontro" — diz o Padre Eugênio Pacelli, sacerdote jesuíta, mestre em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), diretor pastoral do Colégio Santo Inácio, diretor do Polo Universitário Santo Inácio e do Mosteiro Jesuítas.
Neste encerramento de ciclo, segundo Padre Eugênio, cristãos são convidados à novidade de Deus em suas vidas. "Descobrir o Emanuel que vem ao nosso encontro para despertar a força de vida, luz e sonhos que nos habita. Manter viva a conexão com Deus para ser capaz de descobrir suas novidades". A mensagem do Padre para 2022 é "permitir que Deus sonhe em nós e nos faça descobrir a força divina que nos habita. Nos faz sempre sonhar, desejar e lutar por dias e tempos melhores".
Tudo se metamorfoseia
Santo Agostinho (354 d.C - 430 d.C) sugeriu o hábito de, antes de dormir, revisar aquilo que se fez de bom ou não tão bom durante o dia. A proposta diária também se aplica ao fim de cada ano, segundo Luciano Klein, historiador, sócio efetivo do Instituto do Ceará e presidente da Federação Espírita do Estado. "A passagem no calendário gregoriano (calendário solar para a passagem dos anos, meses e anos) oportuniza o balanço do que podemos melhorar, para nos organizar mentalmente nesta nova etapa, embora saibamos que é a continuação de uma trajetória do ano anterior”.
Luciano alerta: “Nem sempre Ano Novo significa vida nova. É comum fazermos promessas de transição, como dieta e mudança de comportamento. Pouco depois, voltamos aos mesmos atos de outrora”. Para Luciano, é preciso lembrar dos ensinamentos do apóstolo Paulo: “Façamos morrer em nós o homem velho, símbolo do homem egoísta, para nascer em nós o homem novo, símbolo do autêntico, genuíno e verdadeiro cristão”.
Uma forma de celebrar a mudança é por meio da oração. “Saibamos agradecer e tenhamos um ano de paz e saúde, em prática para além do discurso; tenhamos a capacidade de perseverar e acreditar no porvir mais feliz. Quem conduz a embarcação chamada Terra é Jesus. Tudo passa, tudo flui, tudo se metamorfoseia”.
O que vou ser?
A filosofia enxerga momentos de passagem como um marco psicológico dos seres humanos. O ritual convida à consciência sobre o presente e à posse de um novo posicionamento de vida. Quem diz é Lúcia Helena Galvão, professora de filosofia da organização Nova Acrópole do Brasil. "Sabemos que o nosso calendário é um calendário ocidental, mas a realidade psicológica é tão importante quanto a factual. Esse marco cobra avaliar o passado, planejar o futuro, considerar o que faremos para um ano onde terminemos mais humanos. Que os nossos planejamentos sejam não apenas fazer, ter, se deslocar, mas 'o que vou ser'".
A professora costuma chamar todo 1º de janeiro de "Dia Internacional do Planejamento do Tempo". A ideia é criar um plano para 2022 e uma rotina de avaliação, como o ensinamento do filósofo pré-socrático Pitágoras: "Ele recomendava seus discípulos que fizessem um diário para avaliar o que vinham fazendo do seu tempo em relação ao seu grande propósito de vida".
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Lucia Helena também recorda o pensamento do poeta Khalil Gibran: “Que a aurora não nos encontre no mesmo ponto que o crepúsculo nos deixou”. “Esse pensamento é um pouco exigente, porque entre um crepúsculo e uma aurora vai um tempo bastante pequeno. Mas entre um ano e outro vai um tempo significativo. E 31 de dezembro não deveria nos encontrar no mesmo ponto que o último 31 de dezembro nos deixou”.
"Nós deveríamos ter um compromisso conosco para o nosso propósito. Só aí entramos na dimensão do tempo real. Se o tempo passa, a biologia cumpre o seu papel, ficamos mais velhos. Do ponto de vista do mundo psicológico, moral, espiritual, se não demos nenhum passo de superação de dificuldades, aperfeiçoamento da nossa ação no mundo e humanização, o tempo não existiu para nós. Daí, vivemos o tempo do relógio, não o tempo real", frisa a professora.
Despertar em 2022
Uma das maiores referências do budismo no Brasil, Monja Coen divide ensinamentos sobre plenitude, consciência, equilíbrio, autoconhecimento e propósito. Fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil e missionária da tradição zen budista Soto Zenshu, com sede no Japão, a líder espiritual lança o livro “Mãos em Prece” pela editora Citadel. Na obra, Monja versa sobre gratidão, valor das trajetórias, caminhos e descaminhos da vida.
Disponível em versões impressa e digital, “Mão em Prece” nasce a partir de textos publicados no jornal do templo Zendo Brasil. No lançamento, a autora ainda reflete sobre as possibilidades do pós-pandemia da Covid-19 e o sentido de viver em sociedade. Ao O POVO, Monja Coen dialoga essas ideias com o ritual de passagem do ano que finda para o início de um novo, repercute sua visão de mundo e deixa sua mensagem para 2022.
O POVO - Por que devemos reconhecer o valor das nossas trajetórias, especialmente atravessando este ritual de passagem que é a virada de um ano para o outro?
Monja Coen - Rituais de passagem são marcos importantes para nós, seres humanos. Tanto que dividimos as horas em minutos e segundos, os dias em semanas e as semanas em meses e os meses em anos. Se investigarmos profundamente, veremos que cada instante é único e jamais se repete. Cada instante é um novo ano, um novo momento. Entretanto, fizemos acordos internacionais para a celebração do Ano Novo no início de janeiro pelo calendário comum ocidental. Seria, na verdade, a celebração do final do inverno, do desabrochar da Primavera, nos países do Hemisfério Norte.
A chegada da Primavera é a renovação da vida. Durante o inverno, nos países do Hemisfério Norte, a terra fica coberta de neve, não há verduras, frutas frescas. Tudo foi
congelado e os alimentos foram guardados em conservas. A vida desabrocha nas ameixeiras brancas, cujos galhos e tronco parecem mortos e uma pequena flor surge trazendo fragrância e vida. Essa é a celebração de um novo ciclo, um novo ano. Por isso, as festas, o compartilhar de alimentos especiais e a oportunidade de um novo recomeço.
Na China, continuam celebrando mais adiante, depois das grandes neves de janeiro, geralmente em fevereiro. Festa da renovação da vida, do fim do isolamento causado pela neve e do reinício das plantações e cultivo. Nessas ocasiões, oramos para que a Sabedoria e a Compaixão sejam nossos guias. Agradecemos ter sobrevivido às intempéries e dificuldade de doze meses e nos posicionamos em atividade para cuidar com respeito e dignidade de toda a vida.
Nos templos japoneses budistas, um grande sino é tocado 108 vezes antes da meia noite do dia 31 de dezembro, nos lembrando a superar 108 possíveis obstáculos ao despertar da mente humana. Rogamos invocando os seres benéficos de todas as esferas que nos tragam sabedoria suficiente para lidar com o que o Ano Novo trouxer. Sabedoria e compaixão são os dois alicerces de uma vida saudável e plena. Assim como o cultivo agrícola necessita de cuidados com as sementes, o solo, correta irrigação,chuvas, sol, vento, insetos, pássaros e toda a biodiversidade, nós, seres humanos, precisamos também cultivar a inteligência e a ternura para termos colheitas fartas. Esse é o sentido dos rituais de passagem de ano.
OP - Com tantas conjunturas sociopolíticas adversas no mundo, pode ficar difícil agradecer a nossa jornada e ter uma visão otimista. Como fazer isso de uma maneira prática, sem ignorar ou romantizar tantas problemáticas sociais ao nosso redor?
Monja - Nem otimista, nem pessimista, mas realista. Desenvolver a capacidade de ver a realidade assim como é e atuar para minimizar dores e sofrimentos ao maior número de seres é o nosso compromisso. Para isso, investigamos a realidade, nos manifestamos de forma ética e nos tornamos átomos de transformação da sociedade e do mundo através da não violência ativa.
OP - Com a pandemia da Covid-19, vivemos um árduo 2020 no mundo. Em 2021, a chegada das vacinas trouxeram a ânsia por um novo tempo. O que isso representa para o “viver em sociedade”?
Monja - Somos seres gregários. Vivemos em grupos, tribos, famílias. Mas, precisamos sempre nos lembrar que somos da mesma família biológica, a humana. A nossa sobrevivência depende da harmonia entre inúmeras outras formas de vida. Se cuidarmos com respeito e dignidade, seremos cuidadas. A pandemia deixou bem claro para todos os povos e todos os grupos sociais que todos precisam ser vacinados, cuidados, se quisermos sobreviver como espécie. Não há redoma que proteja um grupo, uma comunidade, um hemisfério sem cuidar dos outros grupos. Será que finalmente iremos compreender que a solidariedade não é apenas um gesto de amor e afeto, mas uma necessidade de sobrevivência da espécie?
OP - Qual a sua mensagem para 2022?
Monja - Que todos possam despertar em 2022, todas as lideranças internacionais e todos os grupos sociais. Despertar para a consciência abrangente e plena de reconhecimento de que somos a vida da Terra e ao cuidar com inteligência e coração, com sabedoria e compaixão, podemos modificar o passado, o futuro e o presente, através do cultivo de um sistema educacional mundial na formação de pessoas responsáveis e livres, capazes de formar uma sociedade mais justa, inclusiva e terna. Que seja o início de uma nova era, com menos violências, guerras, abusos de toda e qualquer forma. Nosso DNA humano quer sobreviver. Podemos e devemos criar condições favoráveis para a vida na Terra.
Mãos em Prece
De Monja Coen
Ed. Citadel
393 pág.
Quanto: R$ 41,24 (impresso) e R$ 32,90 (digital)
Disponível em amazon.com.br
Lentilha da sorte
Se dizem que atrai sorte para o ano que inicia, confira receita com lentilha da plataforma Tastemade para a ceia de Ano Novo!
Ingredientes
1 colher de sopa de manteiga
1 cebola em rodelas finas + 1 cebola em cubos
1 colher de açúcar
500g de lentilha
1,5L de caldo de legumes
2 ramos de tomilho
1 colher de sopa de azeite de oliva
2 dentes de alho picados
120g de linguiça fininha picada
250g de costelinha defumada
Sal
Preparo
- Aqueça uma frigideira, derreta a manteiga e doure a cebola, em seguida junte o açúcar e cozinhe até caramelar. Reserve.
- Cozinhe a lentilha com o caldo e o tomilho até que os grãos estejam macios.
- Em uma frigideira, aqueça o azeite e doure a cebola e o alho.
- Acrescente a linguiça e a costelinha defumada e refogue por, aproximadamente, 5 minutos ou até dourar.
- Junte as carnes à lentilha já cozida e deixe cozinhar por mais 20 minutos.
- Corrija o sal da lentilha, caso necessário, e sirva com a cebola caramelada.
Contemplar o tempo
O Vida&Arte separou uma playlist na plataforma digital de áudio Spotify, com canções para contemplar o tempo neste momento de recomeço. Ouça!