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80 anos de Nara Leão: a trajetória da artista ao lado de Roberto Menescal
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80 anos de Nara Leão: a trajetória da artista ao lado de Roberto Menescal

Em entrevista exclusiva ao O POVO, o músico Roberto Menescal compartilha a história de vida ao lado da cantora Nara Leão, sua amiga desde a adolescência e grande parceira profissional
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Roberto Menescal e Nara Leão se conheceram na juventude
 (Foto: Paulo Ricardo/arquivo pessoal )
Foto: Paulo Ricardo/arquivo pessoal Roberto Menescal e Nara Leão se conheceram na juventude

"Eu acho que a coisa já estava escrita", responde o músico Roberto Menescal ao ser questionado sobre a amizade com a cantora Nara Leão. Vitorienses radicados no Rio de Janeiro, os dois se aproximaram na pré-adolescência e continuaram amigos até a morte dela, no dia 7 de junho de 1989. Eles se encontraram no início da vida, numa fase repleta de descobertas, e, ao lado de outros artistas, transformaram o cenário musical brasileiro.

O ponto de partida da história de Roberto e Nara é o aniversário de 15 anos do músico. A mãe de um amigo estava organizando uma festa para celebrar a data e pediu para convidar mais pessoas. "Eu achava que era mais conhecido do que eu realmente era", brinca ao relembrar. Foi numa praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, que o convite chegou a Nara, então desconhecida. A jovem, que devia ter por volta dos seus 12 anos, surpreendeu ao comparecer no evento com um vestido longo. "Eu fiquei impressionado, como ela sabia das coisas. Eu não sabia de nada. Ficamos amigos, ela me perguntou se eu não queria escutar uns disco de jazz, eu não sabia nem o que era".

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Anos depois, eles estreitaram a familiaridade com a música ao mesmo tempo, embora Roberto estivesse no auge dos 17 anos e Nara apenas com 14. "Juntamos nós dois e começamos a chamar umas pessoas que tocavam violão também, o Carlinhos Lyra, Ronaldo Bôscoli, foi aí que a gente realmente fundou a bossa nova". O "clube da bossa nova", como nomeia Roberto, se reunia no apartamento de Nara, localizado na Avenida Atlântica, na orla da capital carioca. "Por isso 50% das músicas que a gente fez tinha referência ao mar", conta. Por lá passavam, diariamente, nomes como Tom Jobim e João Gilberto. "Era um ponto de encontro de músicos, de cantores, de artistas. Ela fala que ela era a mascote, que a gente não dava muita bola, e é verdade. Ela escrevia muito rápido, tinha muito bom ouvido, tocava violão também. Até que um dia, a gente fez um show e ela cantou pela primeira vez na vida. E foi assim", recorda Menescal.

Durante o período, a "musa da bossa nova" - título repelido por Nara - namorou o jornalista Ronaldo Bôscoli, repórter influente e um dos mais velhos do grupo. Ele, de acordo com Roberto, "namorava a Nara, mas saía com um montão de cantoras". Em uma viagem a Buenos Aires, na Argentina, Bôscoli se envolveu com Maysa, um fenômeno da época. O combinado era que o caso iria ficar apenas em terras estrangeiras. Entretanto, a artista o anunciou como noivo para a imprensa assim que desembarcaram no Rio. "É importante este fato porque Nara falou: 'Roberto, só tem um jeito de parar com ele, é largar vocês todos'. E mudou a vida dela. Ela saiu da bossa nova, descobriu as canções de morro, fez o show Opinião, descobriu os grupos de esquerda", pontua o músico.

A ocasião trouxe a possibilidade de novos trajetos. "Nós que fazíamos parte da bossa nova levamos primeiro um susto, mas começamos a entender. A Nara foi a porta para a Música Popular Brasileira (MPB), ela trouxe os sambistas, o pessoal que fazia teatro. Ela abriu a música brasileira muito mais que a bossa. A gente aceitou o pessoal da Tropicália, o Chico Buarque, o Ivan Lins, toda essa geração que veio depois e isso fez nossa música ficar muito maior", manifesta. Ao mesmo tempo, o Brasil operava no sombrio contexto ditatorial. As declarações polêmicas de Nara iam de frente com o governo em vigor e estamparam as manchetes dos principais jornais do País. "Eu falava que era perigoso para ela e ela respondia que não tinha nada a perder, e de repente tinha. Ela falava tão abertamente, tinha essa liberdade de falar as coisas que nós não tínhamos. Teve uma hora que eles quiseram prender a Nara, mas o próprio Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica muito bonita pedindo que não". Nos versos, Drummond delineava: "Nara é pássaro, sabia? / E nem adianta prisão / para a voz que, pelos ares, / espalha sua canção".

Mas, em certo momento, a pressão se tornou quase insuportável. Na década de 1970, ela seguiu para Paris com o cineasta Cacá Diegues, decidiu que não queria mais "essa coisa de ser artista" e começou a se aprofundar na área da psicologia. Voltou ao Brasil, já sendo mãe de Isabel - logo mais viria o caçula, Francisco - , para morar em um apartamento vizinho ao de Roberto. Novamente, os dois estavam lado a lado. Menescal tinha deixado de tocar violão e atuava como diretor da gravadora PolyGram, mas continuou incentivando a produção musical da amiga. "Eu conseguia dar muito ânimo nela para produzir, ela adorava Roberto Carlos, eu falava para gravar com o Roberto. Gravou com o Fagner, também. Ela falava: 'Eu quero fazer o que eu quero'. Não era banca de pessoa besta, era banca de quem sabia o que queria".

Assim, a dupla gravou mais cinco discos juntos, como "Um cantinho, Um Violão" (1985), transitando entre o acústico e até mesmo ensaiando o retorno ao movimento da bossa. Por volta de 1986, Nara tomou conhecimento do diagnóstico que lhe causava alguns dos sintomas que sentia desde, aproximadamente, 1979. Ela tinha o que Roberto chama de "apagões". Estava com tonturas, lapsos de memória e fraqueza. O motivo era um tumor irreversível no cérebro. "Fomos para os médicos e nos deram a verdade: três meses de vida. Eu falei para a Nara que era barra pesada, mas ela falou: 'É o que eu tenho, vamos tocar, sair por aí'", conta. O músico logo pensou em outras saídas, ainda incertas, para a doença. Levou em consideração outros profissionais, medicamentos, até mesmo "trabalhos de cura". "Ela falava: 'até quando der, tá, Roberto?'. E a gente animava. Eu, Miguel Bacelar, empresário e um cara essencial que cuidou muito da Nara". Após ser internada no Rio, Nara partiu "muito tranquila, em paz".

Roberto confessa que segue com a presença da amiga até hoje. "Ela era muito inteligente, sagaz. A gente sente muito. Quantas vezes eu não escuto uma música e penso que a Nara a cantaria maravilhosamente bem", comenta. Para o compositor, um contraponto da tristeza da morte precoce da cantora é que o público terá sempre a imagem jovial da artista. "Ela está sempre jovem. Ela fez tanta coisa boa nesse curto tempo de vida, que eu acho que valeu".

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