Um dos 93 bens listados pela lei de tombamento de Maranguape, de 2003, o casarão conhecido como Solar dos Motta, ao número 154 da rua José Fernandes Vieira, é o centro de um embate judicial que corre desde 2014 e que, de forma ainda não explicada, resultou numa decisão que declarou a "ineficácia do tombamento do imóvel", dispensando os proprietários "de qualquer obrigação decorrente dos efeitos do tombamento". O caminho até a determinação é envolto em dúvidas, mas o fato acende o alerta, para especialistas e membros da sociedade civil, acerca de uma potencial abertura de precedente para casos futuros.
O caso repercutiu no município cearense e foi notificado ao Vida&Arte pelo professor da Universidade Federal do Ceará e arquiteto Romeu Duarte. Na avaliação dele, Maranguape tem movimentação de preservação de patrimônio culturais "superior à cidade de Fortaleza e outros municípios", o que ressalta o "absurdo" do potencial cancelamento do tombamento do imóvel. "Se isso tiver validade, todo e qualquer proprietário de bens tombados pode requerer o mesmo tratamento. Abre um precedente e uma jurisprudência tremenda", avalia.
Além de ter sido residência particular, o casarão abrigou órgãos públicos como a Câmara e a Guarda municipais de Maranguape. Mesmo salvaguardado pela lei de tombamento da cidade, sendo inclusive exemplar da principal categoria de preservação prevista, o imóvel vem há quase uma década sendo palco de embates públicos acerca da sua manutenção.
Em 2014, o imóvel quase foi demolido, como registra a edição do O POVO de 11/2 daquele ano, o que foi evitado após campanha popular capitaneada pela Fundação Mata Atlântica Cearense (FMAC). A notícia da época informa que os "proprietários cogitaram demolir partes do casarão e vender o prédio - mas a gestão municipal embargou qualquer intervenção que possa trazer danos à estrutura".
Em entrevista por telefone concedida ao Vida&Arte na sexta-feira, 11, o presidente da FMAC, Ednaldo Vieira do Nascimento, explicou que, à época, a mobilização popular descobriu que um dos passos previstos na lei — a notificação, por parte da prefeitura, aos proprietários dos prédios listados — não havia sido feito.
"Quando vi essa prerrogativa da lei, fizemos o movimento e descobrimos que, dos quase 100 imóveis listados, nenhum tinha sido notificado", relembra. A falta justificaria a demolição na época, mas com a mobilização popular o imóvel passou pelo processo devido. "Na luta, nós conseguimos salvaguardá-lo. Agora, com a recente decisão na justiça, sentimos que há um risco, outros proprietários podem se apegar nesse precedente para fazer o que quiser", teme.
Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Ceará e professora da Universidade de Fortaleza, Sheila Pitombeira elucida que o primeiro processo do imbróglio ligado ao imóvel foi uma ação civil pública movida pelo próprio MPCE contra o município de Maranguape e os proprietários do imóvel, para que eles o restaurassem.
"No meio da ação, houve um detalhe que a gente não sabe explicar qual foi, porque a gente não está conseguindo ter acesso ao processo. Foi promovida, pelo dono do imóvel, uma ação para destombar o casarão", avança a procuradora.
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No Sistema de Consulta Processual Unificada (SCPU), é possível, pelo número do processo da ação civil pública, ter acesso a apenas parte das movimentações do processo referido, sem detalhes. As informações acessíveis, porém, revelam que o processo de nulidade do tombamento e a ação original foram apensados em setembro de 2018, até serem desapensados em abril de 2021. No campo "Situação", consta "Em grau de recurso".
A partir do acesso às movimentações do processo inicial, chega-se ao número do processo de nulidade e, no mesmo SCPU, é possível ver que ele foi aberto originalmente em abril de 2015. Pelas informações que constam na plataforma, o julgamento da procedência do pedido de ineficácia do tombamento do casarão ocorreu em setembro de 2018. Consta que a situação dele está, também, "em grau de recurso".
A impossibilidade de ter acesso ao processo se dá porque, como explica Sheila, o MP "não foi intimado em nenhum momento". "A ação do destombamento transcorreu sem que o Ministério Público tivesse tido oportunidade de vista. Nós não pudemos recorrer da ação porque não sabíamos dela", reforça a procuradora.
Pelas informações obtidas, o pedido de destombamento teria sido "amparado na quebra de alguma formalidade que está estabelecida na lei de tombamento de Maranguape. Como a gente não conseguiu ter acesso ao processo, não sabemos porque a tese do destombamento foi acolhida pela justiça", afirma Sheila.
A procuradora informa, ainda, que o processo do destombamento segue no Tribunal de Justiça aguardando ser julgado, o que possibilitaria ao Ministério Público argumentar sobre a questão. "Ele está no TJ e ainda vai ser objeto de julgamento, então o MP poderá atuar agora no segundo grau e tentar anulá-lo, porque ele não teve oportunidade de se manifestar quando o processo ainda estava em Maranguape", afirma.
Por vias não judiciais, uma saída aventada é a de — no caso de confirmação da tese de que a decisão pela ineficácia do tombamento passou por alguma falha no rito formal — a prefeitura "retombar" o imóvel atendendo as formalidades devidas. Outra possibilidade levantada pela procuradora é a do Ceará buscar realizar o tombamento estadual de todas as casas onde funcionaram câmaras municipais, o que abarcaria o casarão.
A reportagem contatou a Prefeitura de Maranguape demandando detalhes sobre o caso, mas até o fechamento dessa edição não houve retorno.