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Especialista explica legislação do destombamento de patrimônios
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Especialista explica legislação do destombamento de patrimônios

O conceito tem legislação prevista no Brasil desde 1941, mas decreto-lei que o estabeleceu é marcado por anacronismos, explica especialista
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O imóvel, que pode ser destombado, já sediou a Câmara Municipal de Maranguape (Foto: DATADOC/O POVO)
Foto: DATADOC/O POVO O imóvel, que pode ser destombado, já sediou a Câmara Municipal de Maranguape

Em 2022, o decreto-lei que estabeleceu no Brasil o instrumento do tombamento completa 85 anos. Neste mesmo ano, chega aos 81 anos o decreto-lei que previu, em contraponto, o cancelamento de um tombamento. Menos reconhecido que a ação afirmativa, o ato do destombamento é regular, mas casos recentes em níveis nacional e estadual apontam para receios quanto à salvaguarda de patrimônios culturais do País e abrem espaço para a discussão do tema. No âmbito federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional cancelou o tombamento de pelo menos três bens desde outubro de 2021. Já no Ceará, o casarão centenário de Maranguape que vem sendo centro de embates judiciais envolvendo seu destombamento acendeu alerta entre especialistas.

O professor e advogado Humberto Cunha Filho explica que tanto a legislação do tombamento (decreto-lei nº 25) quanto a do destombamento (decreto-lei nº 3.866) foram instauradas sob a presidência de Getúlio Vargas. Ambas, segue o professor, tiveram mudanças de compreensão e interpretação especialmente por conta, destaca, "do advento da democracia e do fortalecimento do federalismo". "Eles modificaram muito (as compreensões) sem que tenha havido muitas alterações redacionais", afirma Humberto.

Ambos os decretos-leis dizem respeito ao âmbito federal, centralizando as decisões, inclusive, na figura do presidente. "Com o advento da democracia, a Constituição Federal de 1988 e o fortalecimento do federalismo, os estados e os municípios puderam passar a fazer tombamentos com a União editando as normas gerais e eles complementando para operacionalizar essas normas", aponta Humberto.

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O professor explica que a legislação do destombamento é marcada por "anacronismos", como só prever o cancelamento de um tombamento feito por parte do presidente. "Também podem (cancelar) as pessoas que ocupam cargos de chefia do executivo nos estados e municípios", aponta. Outra defasagem está "no sentido democrático".

"Não podemos esquecer que (o decreto-lei) é da época que o presidente era o Getúlio Vargas numa ditadura, com o congresso fechado. Ele não prevê, por exemplo, a oitiva do conselho consultivo. Isso não está escrito, mas é perfeitamente razoável entender que, hoje em dia, em âmbito federal, estadual ou municipal, se escute o órgão patrimonial antes de decidir sobre o cancelamento de um tombamento", aponta.

A vigência do decreto-lei que estabeleceu o destombamento, explica Humberto, começou porque Getúlio Vargas estava empenhando obras de modernização no Rio de Janeiro. No projeto de construção da Avenida Brasil, havia uma igreja tombada no curso do que se tornaria a ser a via. "Ela estava íntegra, não tinha perecido, o processo de tombamento estava normal, mas precisava ser demolida para poder passar a avenida. Como só ele legislava, ele mesmo criou o decreto-lei permitindo cancelar o tombamento em alguns casos", contextualiza.

Outro caso de destombamento ocorrido no Brasil foi com os arcos da Glória, que precisaram ter parte derrubada para passar uma tubulação de esgoto numa crise de febre amarela no Rio. "Entenderam, no contexto, que a questão sanitária prevalecia sobre a integridade do bem cultural. O destombamento existe, portanto, quando aparece um valor que supera aquele que determinou o tombamento", resume Humberto.

Ressaltando não ser possível avaliar diretamente o caso de Maranguape, por ser necessário o acesso ao processo, o professor ressalta que uma decisão de destombamento propriamente estabelecido não pode ser efetuada por um juiz, ponderando a possibilidade — já aventada pela promotora Sheila Pitombeira — de uma falha processual no tombamento. "Se o juiz tiver atuado como chefe do poder executivo, entendido que o bem não tinha valor, isso não pode e é passível de correção através de recursos judiciais", reforça.

 

Valor histórico e usos

O casarão de Maranguape, informa o professor e arquiteto Romeu Duarte, tem características que o aproximam de somente outro prédio existente no Ceará: a casa de Neutel Maia, empresário e tio do compositor Lauro Maia, onde hoje é a sede do Instituto de Previdência do Município de Fortaleza. "São imóveis com o ecletismo do final do século XIX, mas que guardam muita coisa da arquitetura neoclássica", aponta.

O uso do imóvel semelhante na Capital demonstra, então, a possibilidade de utilizações do casarão de Maranguape que respeitem a preservação dele. "A casa é uma espécie de salão de aparato, onde há eventos e cerimônias, e o de trás, moderno, é onde está o trabalho. Isso é perfeitamente possível, não há problema", ressalta Romeu.

Conforme o presidente da FMAC Ednaldo Vieira do Nascimento, o casarão de Maranguape, apesar dos diferentes usos ao longo do tempo — sendo o mais recente a sede da Guarda Municipal da cidade —, está atualmente desocupado. "Ele é mais ocupado por vendedores ambulantes. Por ser no centro da cidade, muitos deles guardam os materiais lá", afirma.

Para Romeu, falta ao imóvel justamente um uso. "Falta nesse caso o que falta às prefeituras do Ceará e do Brasil, que é colocar o patrimônio como um elemento ligado à dinâmica econômico-financeira do município, fazer com que os bens tenham usos", ressalta. "Nos últimos tempos, por conta da chegada de fábricas e da mudança do perfil econômico de Maranguape, o pessoal começa a ver o patrimônio como obstáculo. Muito pelo contrário. Na sua valorização, é mais uma força para a dinâmica da cidade", defende.

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